O acidente de Niki Lauda em 1976 é, sem dúvida um dos momentos mais marcantes de toda a história do automobilismo. O obstinado piloto austríaco vinha brigando ao longo de toda a temporada com o mulherengo e descolado James Hunt, e a rivalidade entre os dois acabou sendo também o primeiro grande embate entre Ferrari e McLaren. Foi uma temporada tão intensa que virou filme – “Rush: No Limite da Emoção”, foi lançado em 2013 e já é considerado um clássico obrigatório para qualquer um que se considere entusiasta do automobilismo.
A parte mais importante do filme é, sem dúvida, o acidente de Lauda durante o Grande Prêmio da Alemanha. Além de obviamente ter marcado para sempre a vida do piloto – que ficou marcado fisicamente, pois perdeu boa parte do cabelo e quase toda sua orelha direita, e teve as pálpebras e os cílios queimados –, o acidente mudou para sempre a Fórmula 1: depois de 1976, nunca mais o Norschleife recebeu a Fórmula 1. Em 1977, o GP da Alemanha foi realizado no circuito de Hockenheim, e assim foi até 2006. A exceção foi 1985, quando o circuito grand prix de Nürburgring recebeu a F1. Desde 2007, os dois circuitos revezam anualmente.
É fácil de entender o motivo pelo qual a FIA decidiu que Nürburgring era perigosa demais: estamos falando de um circuito de 23 km de extensão, 73 curvas, com asfalto irregular e pista estreita… e ainda eram os anos 70, com carros que eram quase tão rápidos quanto são hoje, mas nem de longe tão seguros quanto são hoje.
Niki Lauda, fora um dos que defenderam o boicote do Grande Prêmio de Nürburgring, pois já considerava que uma corrida em um circuito de 23 km com infraestrutura precária, montado em vias públicas, era um risco desnecessário à vida dos pilotos. Para começar, a extensão de um circuito como Nürburgring exigia cinco vezes mais fiscais de prova, equipes médicas e veículos de apoio do que um circuito comum de Grand Prix, e o governo alemão simplesmente não tinha condições de fornecer tais recursos. Além disso, a própria natureza de Nürburgring tornava impossível colocá-lo no mesmo nível de segurança dos outros palcos da Fórmula 1, mesmo com o regulamento mais brando daquela época: a pista era estreita demais em muitos pontos (ainda é), as áreas de escape eram pequenas (ainda são) e no miolo do traçado, só havia uma floresta. Em circuitos menores, há várias pistas de acesso para que as ambulâncias e equipes de emergência que ficam na beira da pista possam chegar o mais rápido possível a qualquer ponto, mas no Inferno Verde não havia esta opção.
Isto era um baita problema para Niki Lauda. No entanto, depois de protestar em vão, naquele 1º de agosto de 1976 lauda largou. Era seu trabalho, afinal. Além disso, ele havia sido o único piloto na história, até aquele ponto, a quebrar a barreira dos sete minutos em Nürburgring. Ele conhecia o lugar.
Ele só não poderia prever que perderia o controle de sua Ferrari 312T ainda na segunda volta, no quilômetro 11 do circuito. Depois de passar a curva Bergwerk, ao retomar velocidade na curva rápida à esquerda que vem logo depois, Lauda bateu no muro e ricocheteou de volta para o circuito, seu carro sendo aos poucos engolidos pelas chamas.
Os pilotos Guy Edwards, Harald Ertl e Brett Lunger foram os primeiros a chegar à cena e parar para ajudar Lauda, e Artur Merzario logo se juntou a eles. Dá para vê-los em algumas imagens do acidente.
Mas o pessoal do Petrolicious notou outra presença intrigante nas fotos e vídeos: o Porsche 911 laranja que aparece parado próximo à Ferrari de Lauda. O carro está com o capô aberto, e tem uma mangueira saindo do compartimento dianteiro. Sim, esse Porsche 911 era um carro de bombeiros, e foi o responsável por apagar as chamas para que a equipe de salvamento pudesse retirar Lauda do que havia sobrado da Ferrari.
Faz sentido, não faz? Usar um carro esportivo alemão, praticamente feito para andar rápido em Nürbugring, como veículo de apoio em caso de acidente. Como não há atalhos e as equipes de salvamento e combate a incêndio precisam seguir o traçado, é melhor usar um esportivo do que uma van ou caminhão.
Quem teve a ideia foi um homem chamado Herbert Linge, que na década de 1960 era piloto de testes da Porsche e conhecia bem os perigos de Nürburgring. Em 1972 ele fundou a hoje chamada DMSB (Deutscher Motor Sport Bund), atual corpo organizador do automobilismo alemão, e uma de suas primeiras providências foi desenvolver uma frota de veículos de salvamento especiais para Nürburgring Nordschleife. Ele também havia sido um dos pilotos no filme “As 24 Horas de Le Mans”, de 1971, dirigido por Steve McQueen.
O primeiro deles foi um Porsche 914, que recebeu um extintor de incêndio à base de espuma no compartimento de carga dianteiro. Do lado de dentro havia equipamentos médicos e também ferramentas para cortar ferragens. O carro era conduzido por um ex-piloto de corridas, enquanto no banco do carona ia um paramédico ou um bombeiro.
Depois veio o Porsche 911, que recebia o mesmo tratamento. Os esportivos eram pintados de laranja e recebiam a denominação R-Wagen, com a letra R em círculos brancos nas laterais e no capô. Eles sempre chegavam primeiro à cena.
Havia também uma frota de sedãs, cupês e peruas, como o BMW 2002, o Alfa Romeo Alfasud e a perua VW Type 3 Squareback (a versão alemã do que se tornaria a nossa Variant), estrategicamente posicionados de modo a alcançar qualquer ponto do Norschleife em até 30 segundos.
Foi graças ao Porsche 911 que chegou rapidamente ao local do acidente que o incêndio na Ferrrari de Lauda foi contido e o piloto pode ser retirado de seus escombros antes de morrer asfixiado. Ele foi levado de helicóptero para o hospital das forças armadas da Alemanha, na cidade de Koblenz, para receber os devidos cuidados, e de seguiu de avião para o hospital de Ludwigshafen, que na época era referência no tratamento de queimados no país.
Depois de lutar pela vida por algumas semanas, Niki Lauda recuperou-se com relativa rapidez: seis semanas após o acidente, ainda usando bandagens pelo corpo, o austríaco estava de volta às pistas, competindo no Grande Prêmio da Itália.
Depois do acidente de Niki Lauda, Nürburgring acabou ficando meio abandonada pelas principais categorias do automobilismo e, consequentemente, a frota de carros esportivos usada nos salvamentos foi perdendo a utilidade com o tempo, até ser desativada.
Agradecimentos ao leitor Mr. Porschemann pela sugestão!