“Se ganhássemos cinco libras para cada vez que alguém mencionasse o rosto de Clarkson, seríamos muito ricos.” – Gerente de vendas e relações públicas da Ariel, Ben Calderaro-Gunn, para o site Motor 1

Em 2004, a Ariel ainda era uma empresa minúscula, tentando fazer um novo tipo de carro esporte inglês artesanal. A indústria inglesa parecia então imutável: Morgan fazia carros esporte dos anos 1930, e a Caterham continuava fazendo o Lotus Seven desde que a Lotus o abandonara, um produto do fim dos anos 1950, que ficou famoso nos anos 1960.

O início dos anos 2000 via então duas tentativas de se criar esse tipo de coisa na era moderna, as duas, no final, bem-sucedidas. Uma era a Lotus, que lançara o seu Elise com chassi de alumínio colado e carroceria de fibra de vidro. Mas a segunda ia muito mais além: o chassi era um exoesqueleto, e não havia carroceria. Chamava-se Ariel Atom.
Ariel é um nome antigo: A empresa original foi fundada em 1870 para fazer bicicletas do tipo Penny-farthing. Eventualmente começa a fazer motocicletas, mas sem muito sucesso inicialmente. Automóveis também: foram produzidos em dois períodos, de 1902 a 1915 e novamente de 1922 a 1925.

Mas é nos anos 1930 que uma pessoa muda tudo: Edward Turner. Um famosíssimo projetista de motocicletas, que depois criaria as famosas triumph Twin, e depois, os V8 Hemi dos últimos carros da Daimler independente. Na Ariel, Turner cria uma moto lendária, e o veículo que, antes do Atom, ara o mais lembrado quando se fala “Ariel”: a motocicleta Square Four, fabricada de 1931 até 1959.

Como o nome diz, a grande coisa aqui era o motor de quatro cilindros “quadrado”. Para manter a moto estreita como um “Twin” transversal, mas com mais cilindros, Turner criou uma moto que efetivamente tinha dois bicilíndricos paralelos, um na frente do outro, fazendo um quadrado. Sim, dois virabrequins e tudo. Mas se a empresa acaba por desaparecer nas brumas no tempo, o nome volta, por meio de um certo Simon Saunders e seu incrível “andaime com rodas”. O Atom.
O Ariel Atom

Em 1995, o inglês Simon Saunders era professor de design industrial especializado em transporte, na Universidade de Coventry. Ainda trabalhava como consultor na indústria, mas tinha achado uma vocação em meio aos entusiasmados estudantes da cadeira.

Saunders é obviamente um de nós. Uma das coisas que mais ocupava sua cabeça era como inserir design profissional na indústria inglesa de baixo volume. Mais especificamente, sempre repetia para seus alunos uma de suas grandes frustrações: o Lotus Seven.

Nada contra o Lotus Seven, claro: é em si só um ícone de minimalismo até então inigualável. Mas ali naquele ponto, todo entusiasta, mesmo quarenta anos depois do Seven ter aparecido, ainda dedicados a ele. Incontáveis kits eram vendidos pela Caterham, pela Westfield, e muitos outros, todo ano; muita gente nem comprava eles e fazia réplicas em casa mesmo. Certamente, tão próximo da virada do milênio, já era hora de fazer algo mais moderno.

O professor sempre dizia que toda essa energia em réplicas poderia ser gasta em bolar algo mais moderno e diferente. Os alunos começam a provocá-lo, de várias formas, dizendo que se achava isso mesmo, devia tomar uma atitude e começar algo, e não só reclamar. O assunto é discutido ad infinitum em sala de aula, até que fica tão intenso que já não cabe mais nela: de alguma forma devia transbordar, sair ao mundo lá fora, virar algo real.

Mas não haveria dinheiro nem ajuda da universidade; como financiar algo assim? O professor e alunos começam a pedir e implorar ajuda para quem pudesse ouvir. Um impulso vem da Ford, que doa um Fiesta para a Universidade. Assim, motor, câmbio, e uma série de outros componentes podiam ser canibalizados dele.

Daí em diante tudo viria com dificuldade, mas o projeto ia adiante. Michelin doou pneus, a TWR fez os braços de suspensão; amigos e alunos ajudaram, e Saunders acaba gastando um bom dinheiro seu também. Muito trabalho era necessário também, o que, rapidamente, foi fazendo os alunos desaparecerem, depois de perceberem que aquilo era extra-currículo: outras ocupações tomavam seu tempo. Só um aluno sobra, este com dedicação total e voluntária: um certo Niki Smart. Ao invés de arrumar estágio como os colegas, se dedica de corpo e alma ao projeto.

Mas o que eles estavam fazendo? Um Lotus Seven moderno, de motor central-traseiro agora, e ainda mais radical que o Lotus original. A dupla tentou vários desenhos de todo tipo, com três e quatro rodas, um ou dois lugares. Mas acaba com uma configuração simples de dois ocupantes lado a lado, mas com o motor e transmissão de veículo de tração dianteira atrás deles. Apenas uma coisa era radical e diferente nele: a estrutura.

Duas inspirações para a dupla chegar na treliça exposta tão característica do Atom. Primeiro, motocicletas: uma moto parece mais bonita por justamente deixar tudo exposto, de chassi a mecânica; poderia isso ser transposto para um carro? A outra vinha da infância de Saunders. Livros que mostravam a estrutura tubular de carros de corrida faziam ele, jovem, imaginar: por que diabos alguém cobriria algo tão bonito com qualquer coisa?

Assim nasce a sensacional treliça sobre rodas que conhecemos hoje com o nome de Ariel Atom. Na verdade é simplicidade encarnada em metal: duas treliças curvas se encontrando na extremidade dianteira, formando a estrutura e a carroceria visível; todo resto seria montado nele, e nenhuma carroceria propriamente dita existiria. Leve, funcional, moderno e bonito, de uma forma diferente.

Mas existiam problemas para os dois designers em realizar isso: designers normalmente fazem o primeiro protótipo em argila de modelar, o Clay, e dele tiram moldes de fibra. Assim, podem mostrar o carro, mesmo com zero engenharia de verdade envolvida. No caso do Ariel, a engenharia era o desenho externo também. O carro não esconde nada, é peladão feito um neném recém-nascido. O trabalho era exponencialmente maior.
Um exemplo: a pedaleira do protótipo era em alumínio, lindíssima e profissionalmente desenhada. Sim, podiam ter usado a pedaleira do Fiesta, mas era feia demais. Quando tudo está exposto assim, tudo aparece, e detalhes escondidos ficam na cara da gente. E os designers não suportam isso.

É incrível que um conceito que deixa de lado o design tradicional como este tenha nascido num estúdio e não numa oficina. Mas só existe de verdade por ter juntado essas disciplinas inevitavelmente, por tratar engenharia como parte do design; como arte industrial. Filosoficamente, é lindo.
O Projeto LSC
Em um ano exato de trabalho, ignorando horários normais da universidade e varando uma série de noites seguidas, a dupla expõe o que chamaram de “Projeto LSC” (Lightweight Sports Car, carro esporte leve) no Salão de Birmingham em 1996. Ainda em rodasse pneus finos, o carro de qualquer forma foi um sucesso de público e crítica. O que fez o agora entusiasmadíssimo Saunders imaginar o inimaginável: produzir o carro em série.

Niki Smart, porém, embora garantisse sua ajuda sempre que pudesse, resolve andar adiante com a vida: faz um mestrado no Art College de Londres, e parte para trabalhar como designer com a Ford, e depois GM. Estava num ponto de sua vida diferente do de Simon Saunders, claro. Acaba com uma carreira de sucesso na GM, no estúdio da Califórnia, até 2019, quando abre uma consultoria independente. Mas todo ano desenha o cartão de natal da Ariel.

Com algum suporte da British Steel, conseguido no salão, Saunders continua indo adiante. O chassi original se mostrou não rígido suficiente, e teve que ser reprojetado; o motor Fiesta 1.2 acaba trocado por um Zetec 1.7 do Ford Puma. A carro ficou mais largo e maior, diferente, sem nenhuma peça do original a não ser o imaterial: a ideia.

O projeto original, por exemplo, para economizar peso, e imitando o Seven original, não tinha bancos: você se sentava diretamente na estrutura, salvo uma espuminha para amansar as pancadas no derrièrre. Acaba descobrindo que ficava muito melhor com bancos de verdade, em trilhos, ajustáveis.

Com alguns investidores, resolve usar um nome de uma marca inglesa antiga, disponível por baixo preço: a Ariel. Famosa realmente por motocicletas (a mais famosa dela chamada Ariel Square Four, com quatro cilindros num quadrado), a marca de qualquer forma fazia automóveis também, no passado distante. Funcionou: este carro, para entusiastas, certamente se aproveitou do fato de lembrar todos de uma antiga e respeitada marca de motocicletas. Pode não funcionar para uma marca de SUV, mas neste caso, ajudou a chamar atenção, inicialmente; hoje a fama da nova Ariel certamente ultrapassa a da antiga.

Em 1999/2000, finalmente era lançado no mercado inglês o primeiro Ariel Atom, usando o famoso motor quatro em linha da Rover, todo em alumínio e DOHC/16 válvulas. Famoso por girar muito, ter bastante força, e ser extremamente leve, foi usado também pela Lotus em seu Elise. A Lotus também, por sinal, foi contratada para acertar o tuning de chassi: um gasto inteligente.

As suspensões eram via duplo A sobreposto, independente, nas quatro rodas; os coilovers eram operados por alavancas e pushrods. As laterais são totalmente expostas pela treliça, apenas o assoalho e curvões dianteiro e traseiro protegidos por fibra de vidro. O primeiro Atom de 1999 pesava 612 kg, e era oferecido com o K-series em versões de 120, 160 e 190 cv. Não tinha portas, para-brisa ou teto; o Lotus Seven moderno.

O protótipo LSC original, com o motor Ford Zetec e rodas fininhas, era certamente ainda muito mais leve, mas era apenas um degrau, uma ideia tornada real e que podia ser dirigida. Ainda existe, e de tempos em tempos, é levado para exposição em eventos importantes na empresa.
Em 2003, aparece o Atom 2. Nele, o patamar de potência subia um degrau acima: vinha com o incrível motor K20 de quatro cilindros e dois litrosdo Civic Si e do Type R, capaz de mais de 200 cv. E num pacote bem mais confiável que o dos motores Rover, claro. À medida que o Atom 2 avançava no desenvolvimento, foi decidido por ainda mais potência, na forma de um compressor mecânico.

“Instalamos o supercharger no motor Honda em 2004, passando de 220 cv para 300 cv”, comentou Simon para o Autoevolution. Foi então que o caminho da história da Ariel mudou radicalmente. Foi esse carro que foi entregue, em 2004, para a BBC inglesa avaliar em seu programa de automóveis que se chamava Top Gear.
Todo mundo sabe o que aconteceu depois; Jeremy Clarkson faz uma resenha extremamente simpática ao carro, que adorou de verdade. Mas mais que isso: cria um dos memes virais originais: acelerando forte o Atom sem parabrisa ou capacete, sua face hilariamente destorcida aparece na tela para gargalhadas gerais. Mais que um carro, o Ariel Atom era imediatamente um fenômeno cultural. Se tornou uma espécie de herói popular, e o próprio rosto de Clarkson, um meme eterno dos primórdios da internet.
A empresa tinha sete funcionários; hoje tem 30. Não exatamente enorme, mas seu futuro foi garantido ali mesmo: todo mundo sabe qual foi o carro que “derreteu a cara do Clarkson”.

Saunders lembra hoje que o programa lhe disse que ‘Nós realmente gostamos do seu carro porque não podemos quebrá-lo’. Nem mesmo “The Orangutan”, notório destruidor de carros, conseguiu quebrar o Atom. Combinando o motor Honda e a construção parruda artesanal cuidadosa, o carro é construído para ser usado sem dó, apanhar mesmo.

Depois outro Atom ficaria também famoso graças ao Top Gear: um monstro chamado Atom V8. Era uma edição limitada de 25 carros, que vinha com um V8 de 3 litros com 475 cv ou 500 cv, baseado em cabeçotes de Suzuki Hayabusa, e que girava até 10.000 rpm. Com uma caixa de câmbio sequencial Sadev controlada pneumaticamente, se tornou o carro com aceleração mais rápida do mundo, além de manter o recorde da famosa pista do Top Gear por mais de dois anos. E, seguindo o que virou tradição, derreteu a cara de James May agora.
O Atom, e o subsequente Nomad são carros sensacionais, sim. Mas existiriam ainda, 25 anos depois, sem ajuda do barrigudo apresentador inglês? Nunca saberemos. O fato é que as vezes, o imponderável age para que algo bom não morra antes do tempo. Alguns chamam de sorte, de acaso. Eu tenho a sorte de saber que é obra divina. Graças a Deus.

Hoje o Atom continua a evoluir. Sua mais nova versão, em comemoração aos 25 anos da empresa, é o Atom 4RR, o mais potente dos Atom até hoje. Agora são nada menos que 532 cv e 56 mkgf do Honda 4 em linha turbo; mais até que o lendário Atom V8. O peso deve ficar em apenas 680 kg, ou 770 cv por tonelada. A Ariel ainda não declarou números de desempenho do novo carro, mas o Atom 4R de 400 cv faz o 0-100 km/h em 2,7 segundos; o novo certamente melhorará isso. A lenda continua, ainda que agora, que face irá derreter?
