Na primeira parte deste especial de carros e relógios, vimos como eles se encontraram nas pistas pela necessidade de se contar o tempo dos competidores. É uma história que tem uma origem comum com os esportes olímpicos, mas que, em certo ponto, se distanciou da origem e tomou seu próprio rumo, a ponto de revolucionar a própria relojoaria em si — aqui me refiro à Longines, que criou o relógio de quartzo em 1953 para cronometrar a Fórmula 1.
A relação entre relojoarias e os carros, contudo, é bem mais antiga e remonta aos primórdios dos modelos de produção seriada, quando o painel de instrumentos deixou de ser um acessório opcional para se tornar um padrão nos automóveis.
Como os relógios e os carros se encontraram nas pistas – a história da cronometragem
O primeiro carro equipado com um velocímetro foi o Oldsmobile Curved Dash Runabout de 1901. O equipamento, como já mencionado, era opcional, e era feito por um fabricante americano de manômetros e outros instrumentos de medição chamado Stewart & Clark, que também forneceria velocímetros para a Ford a partir dos anos 1910, quando eles se tornaram equipamentos de série. É aqui que os relógios se encontram com os carros pela primeira vez — não nos EUA, mas na Europa, os fabricantes de velocímetros eram também relojoeiros.
Os famosos instrumentos Smiths britânicos — os pioneiros no Reino Unido — foram criados pela joalheria e relojoaria S. Smith & Sons, de Samuel Smith. Da mesma forma, os instrumentos Jaeger foram criados por um relojoeiro parisiense chamado Edouard Jaeger.
Em 1907, Jaeger foi chamado por Jacques-David LeCoultre para auxiliá-lo na produção de movimentos de relógio para a Cartier, com quem LeCoultre tinha um contrato de fornecimento de 15 anos.
Quando a Primeira Guerra começou, Jaeger percebeu que precisava diversificar sua atuação para sobreviver àqueles tempos difíceis, e criou instrumentos aeronáuticos para os pilotos do Reino Unido e da França juntamente com seu parceiro LeCoultre. Os instrumentos tinham tamanha qualidade que até os pilotos alemães começaram a usá-los, removendo-os dos aviões inimigos abatidos.
Depois da guerra, o ramo de relógios continuou com as duas empresas unidas sob o nome Jaeger-LeCoultre, enquanto o ramo de instrumentos ficou somente com o nome Jaeger.
Outra marca de instrumentos que nasceu da relojoaria foi a Veglia Borletti. Nos anos 1930 a Veglia fabricava relógios mecânicos na Itália com movimentos suíços da Cortébert, fornecedora de marcas como a Rolex e IWC. Também diversificando sua atuação, a Veglia começou a fazer instrumentos para automóveis e se tornou uma das mais tradicionais fornecedoras da indústria até 1987, quando foi adquirida pela Magneti Marelli.
Com a chegada dos instrumentos eletrônicos e, mais recentemente, dos quadros digitais, os velocímetros e conta-giros destes fabricantes se tornou algo restrito aos carros clássicos — a Smiths ainda produz seus modelos, que são usados pela Jaguar em sua divisão de clássicos, e também pelos projetos restomod da Singer, para citar dois exemplos.
Foi uma crise/revolução semelhante à que aconteceu com a indústria relojoeira com a chegada dos movimentos de quartzo: os relógios mecânicos/automáticos acabaram inicialmente obsoletos e muitas marcas desapareceram. A solução para evitar o desaparecimento das relojoarias tradicionais, foi o reposicionamento dos relógios suíços mecânicos como itens de luxo e precisão. Esse reposicionamento aconteceu também no setor automobilístico, de forma que os modelos de alto luxo oferecem relógios de bordo fornecidos por relojoarias de luxo.
A IWC, por exemplo, fornece para a Mercedes, enquanto a Breitling faz relógios especialmente para os Bentley, e a Bovet, a Audemars-Piguet e a Vacheron Constantin fornecem relógios para a Rolls-Royce.
Por outro lado, há carros que foram inspirados por relógios – seja no conceito do veículo ou simplesmente nos instrumentos do painel. O caso mais notório certamente são os modelos originais da smart.
A marca foi criada como uma parceria da Mercedes-Benz com a relojoaria suíça Swatch, famosa por seus relógios coloridos e irreverentes, que inspiraram as combinações de cores da carroceria do ForTwo, ForFour e Roadster. O próprio nome da empresa é um acrônimo, formado pelo S da Swatch, pelo M da Mercedes e a palavra “Art”.
Depois, há os quadros de instrumentos inspirados por relógios, como o quadro mecânico do Bugatti Tourbillon, que usa componentes feitos pelos mesmos fornecedores da Jacob & Co, ou o modesto painel do atual Suzuki Jimny, inspirado pelos relógios Bell & Ross.
Os relógios dos pilotos
Apesar da cronometragem oficial das provas, que conhecemos na primeira parte deste especial, os pilotos sempre tiveram sua cronometragem individual nos boxes e também levavam consigo seus relógios de pulso — fosse por utilidade, estética ou simplesmente por compromissos de patrocínio. Atualmente a maioria dos pilotos usa relógios de patrocinadores, uma vez que sete das dez equipes da Fórmula 1 são associadas a uma relojoaria.
Boa parte das atuais patrocinadoras das equipes de Fórmula 1 têm pouca tradição no automobilismo — a exceção é a TAG Heuer, parceira da Red Bull Racing, seguida pela IWC, associada à Mercedes, e é mais conhecida pelos seus relógios de aviação. As demais, são relojoarias que tiveram períodos de baixa, especialmente durante a já citada “crise do quartzo” ou marcas fundadas ou renovadas mais recentemente.
A Richard Mille, parceira da Ferrari e da McLaren, por exemplo, é uma marca nova se comparada com outras do mesmo ramo: foi fundada em 2001 e ganhou muita projeção pela parceria com Felipe Massa firmada em 2004. Outra marca que teve seus altos e baixos (em termos de popularidade, não de qualidade, que fique claro) é a H. Moser & Co., que patrocina a Alpine. E há ainda marcas como a Girard-Perregaux, que, apesar dos mais de 200 anos de história, nunca foi muito associada ao automobilismo e teve seus modelos mais famosos desenvolvidos há mais de 50 anos. Há ainda a Tudor, uma marca suíça que patrocina a Racing Bulls.
No passado essa relação era mais distante, então os pilotos usavam relógios de sua preferência pessoal na maioria das ocasiões. Ayrton Senna, por exemplo, antes de usar os relógios da TAG Heuer pela relação da marca com a McLaren, circulava pelo paddock com modelos japoneses Seiko Speedmaster SSBA022 e Seiko Bullhead 6138-0040.
O primeiro é um relógio digital, um dos primeiros da marca, com design de Giorgetto Giugiaro. Ele tem o mostrador em 15 graus para a esquerda visando facilitar a leitura do piloto, e tinha cronômetro centesimal, taquímetro eletrônico, contador de voltas, e alarme. Infelizmente, o modelo foi restrito ao mercado interno japonês (sim, um relógio JDM), o que o torna raríssimo fora do Japão — especialmente nas cores cinza e verde como o usado por Senna, uma vez que ela não foi reeditada no relançamento do relógio em 2018.
Já o Bullhead é dos modelos mais famosos da Seiko, e ganhou este nome por ter os botões de acionamento do cronógrafo no topo da caixa, e não na lateral, remetendo aos chifres de um touro (daí o nome “Bullhead” ou “cabeça de touro”). Uma unidade usada, antiga, em bom estado, custa entre R$ 2.500 e R$ 5.000, mas temos opções novas a preços interessantes, como veremos mais adiante.
Emerson Fittipaldi, nos anos 1970, usava um modesto Timex Velocity dos anos 1970 — modelo que recebeu uma edição especial comemorativa de seus dois títulos (1972 e 1974) em 1975.
Rubens Barrichello, apesar de ter vários relógios associados ao seu nome, de diversas marcas que patrocinaram suas equipes, aparentemente sempre teve uma predileção pelo Rolex Daytona — um dos primeiros relógios inspirados diretamente pelo automobilismo, lançado ainda nos anos 1950 e batizado com o nome do circuito americano. O Rolex Daytona também foi a escolha de Michael Schumacher, Mario Andretti, AJ Foyt, Richard Petty e Paul Newman, além de ser o relógio usado por Jackie Stewart atualmente e Stirling Moss a partir dos anos 1970.
Barrichello, contudo, deu um passo além e procurou o ateliê suíço Artisans de Genève para personalizar seu Daytona com elementos que remetessem aos componentes mecânicos de um motor, criando uma peça realmente especial.
Os Rolex também foram a escolha de Carroll Shelby, que tinha um Rolex Zephir (embora o filme “Ford vs. Ferrari” o retrate com um Heuer Carrera) de aço e ouro, do jovem Jackie Stewart e de Dan Gurney, que optaram pelo Rolex Datejust, o modelo de entrada da marca nos anos 1960.
Outra marca preferida pelos pilotos era a Heuer — sem o TAG, que só apareceu nos anos 1980, quando a Techniques d’Avant Garde, aquela dos motores TAG Turbo, comprou a relojoaria. Entre os adeptos dos Heuer estão Jo Siffert, James Hunt, Mario Andretti, Jochen Rindt, Ronnie Peterson, Graham Hill e Niki Lauda.
O modelo mais popular era, sem dúvida, o Heuer Carrera usado por todos os pilotos citados, exceto Hill e Lauda. Hill usava um Heuer Autavia, enquanto Lauda preferiu algo mais moderno como o Heuer Chronosplit digital.
Outra marca relativamente comum entre os pilotos era a Breitling. Ken Miles, Jack Brabham e Jim Clark usaram modelos da marca. Miles optou por um belo Co-Pilot, lançado nos anos 1950 como uma versão de pulso do relógio feito para aviões militares nos anos 1930. Embora não tivesse taquímetro, ele tinha cronômetro e um contador regressivo de 15 segundos.
Brabham usava um Duograph dos anos 1950, mas em 1959, quando ganhou seu primeiro título, ele recebeu como prêmio da Esso um elegante Breguet Type XX com caixa de aço polido, dial preto e pulseira de couro preto.
Essa combinação também foi a escolha dos modelos de Jim Clark, que usava um Breitling Navigator 806, além de um Gallet Multichron 12 e um Enicar Sherpa Graph — modelo que também foi usado por Stirling Moss, contratado pela marca juntamente de Jim Clark.
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