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Na semana passada o projeto de lei que visa banir os carros movidos a combustíveis fósseis das ruas e estradas brasileiras avançou no Senado Federal e está a um passo de seguir para a Câmara dos Deputados, de onde pode sair aprovado, pronto para sanção ou veto presidencial. Isso significa que (tente segurar o riso) os parlamentares brasileiros esperam que nossos 65 milhões de carros, motos, ônibus e caminhões sejam movidos a etanol e eletricidade.
A ideia de eliminar os carros das cidades, como dissemos neste post, atravessou triunfalmente a janela de Overton: há tempos deixou de soar absurda, passando a se tornar aceitável para, finalmente, tornar-se uma opção séria para livrar as grandes cidades do caos. É fácil conseguir isso: você só precisa usar o argumento da salvação.
A ideia que motiva o banimento dos carros é salvar vidas — seja pela redução de acidentes, como pela melhoria da qualidade do ar. Um argumento difícil de contestar. Que tipo de maluco seria contra a vida?
Usando relações lógicas elementares (e ignorando a existência de algo chamado falácia) é possível relacionar os carros às armas. Carros matam. Armas matam. Não precisamos de armas porque temos segurança pública. Não precisamos de carros porque temos o transporte público. A comparação soa ridícula? Pois saiba que há especialistas propondo essa equivalência e sugerindo que os carros devem ser controlados como armas.
Mas enquanto as armas dividem a opinião pública e o ativismo, o banimento dos carros tem uma questão moral fundamental, que antecede suas consequências: quem está pedindo que os carros sejam banidos?
As propostas não partem de um apelo popular. Você não verá um movimento popular pedindo o fim dos carros ou defendendo sua permanência como as associações pró-armas e anti-armas. Elas partem de decisões unilaterais de políticos e seus governos, normalmente embasadas em dados produzidos por pesquisas acadêmicas (o que é questionável, dado que a essência da academia é produzir todo tipo de pesquisa), porém com a interpretação mais simples possível: se o “excesso de carros” é um problema, a solução é reduzir — ou eliminar — os carros.
Esta medidas de limitação e banimento são aplicadas de forma lenta e gradual, visando desestimular o uso dos carros aos poucos, em uma tentativa de promover uma pretensa mudança cultural que fará com que o povo enxergue o carro como algo desnecessário. E foi assim que cidades de toda a Europa, como Oslo, Barcelona, Londres, Paris, Madrid, Copenhague e Stuttgart, e até algumas cidades americanas como Nova York e San Francisco, tomaram medidas para (tentar) tornar o carro obsoleto. Para estes gestores, para os acadêmicos que estudam o tema, o uso do carro é cultural e, como qualquer manifestação cultural, é algo que pode ser modificado ou até eliminado.
O problema é que, embora bem-intencionadas, estas propostas parecem não levar em conta que a cultura é mais que um conjunto de crenças, hábitos e tradições de uma sociedade. As pessoas não usam o carro porque são sedentárias, preguiçosas ou estão pouco se importando para o meio-ambiente e o bem-estar coletivo. Há uma razão por trás da decisão aparentemente passional que é a opção pelo transporte individual.
A palavra cultura tem a mesma origem etimológica da palavra cultivar, e sua definição é exatamente esta: o cultivo de hábitos, costumes, crenças, tradições e valores morais e éticos. Essencialmente a cultura é a origem destes hábitos — por que fazemos o que fazemos como fazemos? Assim, para entender a cultura do automóvel, temos que entender o que originou este hábito de usar o transporte individual, e porque ele é cultivado ainda mesmo com opções supostamente mais racionais.
Por que as pessoas preferem carros (e motos)?
Uma explicação para isso está em uma pesquisa publicada pelo Departamento de Psicologia da Universidade de Groningen, na Holanda. O estudo tinha como premissa inicial a possibilidade de o transporte público competir com os carros e a resposta foi bastante clara: não compete.
As pessoas preferem o carro em praticamente todas as situações, exceto quando se trata de segurança rodoviária — quesito no qual o transporte público é considerado superior. Entre os motivos para a opção do automóvel estão o conforto, a conveniência, independência, liberdade, velocidade de viagem, controle e segurança pessoal. As únicas motivações para a preferência do transporte público foram a preocupação com o meio-ambiente e com a organização urbana.
O que te parece mais confortável? Todo mundo dentro de um só, ou todo mundo distribuído em vários?
Ainda que sua rotina diária se resuma a ir de casa para o trabalho e voltar do trabalho para casa, as pessoas estão dispostas a pagar pela possibilidade de se beneficiar com a posse de um carro. Mesmo que seu dia corra exatamente como o planejado, ter um carro significa poder contornar imprevistos, mudar de ideia, tomar uma decisão não-planejada ou aproveitar uma oportunidade. E embora pareçam argumentos emocionais, o fato destes serem elementos subjetivos não significa que sua influência na opção pelo carro não seja racional, uma vez que o motorista atribuiu valor às possíveis vantagens. Encare como uma aposta de risco calculado.
E aqui voltamos à questão cultural: o uso do carro traz mais benefícios para as pessoas — especialmente em grandes cidades, onde ele parece uma opção sem-sentido. Para os motoristas, suas vantagens superam os inconvenientes e seu uso se torna habitual e recorrente.
E este é o problema do banimento dos carros: trata-se de uma substituição forçada, uma medida que precisa ser tomada porque as pessoas não querem realmente deixar de usar seus carros. Para desconstruí-lo, portanto, você precisará oferecer uma alternativa igual ou melhor. E, como vimos, o transporte público não é visto como uma alternativa melhor pelos motoristas e motociclistas.
Quem gosta de transporte público?
Mesmo com as restrições parciais de tráfego, o número de passageiros no transporte coletivo está em queda nas principais capitais europeias, nos EUA e no Canadá, e até no Brasil, e um dos culpados é justamente o transporte individual. Não apenas os carros particulares, mas também os veículos compartilhados dos serviços de transporte como o Lyft e o Uber.
Nos EUA uma pesquisa do U.C. Davis Institute of Transportation Studies revelou que estes serviços estão afastando as pessoas do transporte público, não apenas no sentido de “roubar” os passageiros, mas também por serem uma opção confortável e privativa. Segundo a pesquisa, entre 49 e 61% dos passageiros dos serviços de transporte por aplicativo não teriam feito o deslocamento se esta opção não existisse ou teriam ido a pé, de bicicleta ou mesmo de carro, mas não cogitariam usar o transporte coletivo.
Um dia normal na estação Pinheiros de metrô em SP
No Brasil um estudo da ONG Nossa São Paulo mostrou que essa tendência verificada pela pesquisa americana se repete por aqui: na capital paulista o uso de ônibus de 47% para 43%, do metrô caiu de 8% para 7% enquanto os carros particulares subiram de 22% para 24%, aplicativos e táxis subiram de 2% para 5% e bicicletas de 1% para 2%.
Na Inglaterra não é diferente: em Londres os deslocamentos de trem diminuíram 5% em 2017, o número de passageiros de ônibus caiu 6% nos últimos três anos e o metrô teve uma queda de 2% no número de passageiros de 2016 para 2017. E nesse período a população cresceu 1% e o desemprego diminuiu 3,3%.
A preferência pelo automóvel sobre o transporte público foi confirmada por um estudo realizado por pesquisadores italianos, que tentou identificar as motivações pelas quais as pessoas preferem os carros. Eles fizeram isso por meio de fichas entregues aos voluntários, e estabeleceram um valor variável para os diferentes tipos de transporte, de forma que eles precisavam gastar suas fichas de acordo com a escolha do modo de transporte. Mesmo quando o transporte público se mostrou mais vantajoso em termos de tempo e financeiros, os participantes preferiram usar o carro, o que indica que a opção pelo modo de transporte não é motivada por fatores objetivos.
Então qual a solução?
Voltando ao início do texto, o fator que motiva o banimento dos carros é a qualidade do ar — algo que deve mudar quando os carros elétricos se tornarem o padrão global. Se um dia se tornarem, claro (ainda temos muitas questões para que eles sejam adotados globalmente). Como resolver a questão da poluição do ar sem forçar as pessoas a se deslocarem de uma forma mais cara, menos conveniente e menos confortável, limitando seus deslocamentos?
Bem, talvez a resposta esteja em uma das hipóteses levantadas pelo departamento de transportes de Londres — e que já mencionamos neste post de 2014: a mudança de hábitos, das motivações de deslocamento.
Na capital britânica a flexibilidade nos horários de trabalho e a prática de home office ajudou a reduzir o número de viagens. Em 2014 cerca de 25% dos trabalhadores londrinos trabalhavam a partir de um escritório em casa. Isso significa que 1 em cada quatro trabalhadores não precisa tirar o carro da garagem ou usar o sistema de transporte público. Além de trabalhar, pense em tudo o que precisava ser feito fora de casa que agora pode ser feito remotamente: alugar filmes, fazer compras, estudar, validar documentos. E mais: a saturação urbana de Londres levou os jovens a escolherem carreiras que permitam o trabalho remoto, de forma que eles possam viver em cidades mais pacatas, sem os problemas da metrópole.
Trânsito em uma cidade de 90 mil habitantes
Como dissemos há 4 anos, em um futuro onde as pessoas poderão realizar suas obrigações remotamente, poderemos morar em lugares mais distantes ainda, sem precisar dirigir, ou pegar um ônibus ou pedalar para chegar ao trabalho. Poderíamos morar em qualquer lugar, e não apenas onde o trabalho está — afinal, ele estará em qualquer lugar conosco —, ocupando o espaço com mais racionalidade.
Aparentemente este futuro já está acontecendo em Londres — e provavelmente em outras metrópoles de outros países. E ainda que um médico, um mecânico, um construtor de móveis não possam trabalhar remotamente, a migração das pessoas das metrópoles para cidades menores pode criar uma demanda por estes profissionais, o que resultaria em uma distribuição equilibrada da ocupação urbana — e tornaria desnecessário o banimento dos carros.