É um lugar-comum da dinâmica automobilística: um carro “bem construído” é aquele que resiste bem a torções e flexões, que não range em lombadas e transmite à suspensão o trabalho de lidar com as irregularidades do piso. Um chassi firme, sólido e imutável era sinônimo de precisão, segurança e, principalmente, desempenho. Essa crença atravessou décadas, foi reforçada pelo marketing e moldou gerações inteiras de engenheiros. Emerson Fittipaldi, quando fez o shakedown do F6, ilustrou os problemas de gestação do carro dizendo que “o carro parece uma banana assada de tanto que torce”. Mas, como toda tecnologia, sua própria evolução é quem faz a prova do tempo: se ela estava certa, permanece. Se estava errada, se altera.
Os irmãos Fittipaldi e todos os construtores dos anos 1970 não tinham acesso aos recursos de modelagem e medição que temos hoje. Por isso, eles não tinham como saber que a rigidez do chassi tem um ponto ideal. As forças atuantes sobre um carro de Fórmula 1 ensinaram, de forma empírica, que era preciso ter um chassi rígido para lidar com estas cargas. No caso do F6, o monocoque realmente tinha pouca rigidez. Mas ninguém, na época, sabia que, se ele fosse rígido demais, traria outros tipos de problemas.

Hoje, as ferramentas de modelagem e medição são precisas o bastante para mostrar que a rigidez máxima não é necessariamente o melhor caminho para a aderência e estabilidade. E a Honda acaba de dar o passo mais público — e mais ousado — nessa mudança de paradigma.
Na apresentação de sua nova plataforma global, que servirá de base para os próximos Civic, CR-V, Pilot e Odyssey, e também para os elétricos da série 0, engenheiros japoneses explicaram que o novo conceito estrutural não busca apenas rigidez, mas rigidez otimizada. A dianteira do carro foi reprojetada para permitir que a estrutura flexione em curva, de modo a empurrar a roda externa contra o solo e aumentar o contato do pneu com o asfalto. A ideia soa quase herética — afinal, um carro que se torce sob carga não é exatamente o que se espera de uma engenharia “de precisão”. Só que é aí que mora o ponto-chave: não se trata de uma torção destrutiva, e sim uma flexão funcional. O termo técnico para isso é controlled structural compliance — complacência estrutural controlada.

A filosofia por trás disso é o oposto da rigidez absoluta. Ela parte do princípio de que o chassi é parte ativa do sistema dinâmico, não apenas a base onde tudo se apoia. O carro deixa de ser uma plataforma passiva e passa a participar do comportamento em curva, usando a própria flexibilidade para otimizar a distribuição de carga. O resultado, segundo a Honda, é uma sensação mais natural de direção, menos subesterço e mais conforto — tudo isso com redução de peso e de custo de produção.
Mas o conceito não surgiu do nada. Há mais de vinte anos, pesquisas acadêmicas vêm mostrando que a relação entre rigidez e aderência é mais complexa do que se imaginava. Um estudo da SAE International de 2004 demonstrou que, após certo ponto, o aumento da rigidez da carroceria traz ganhos marginais de precisão, mas diminui o tempo útil de contato do pneu com o solo em curvas. Isso acontece porque uma estrutura excessivamente rígida transfere peso lateral muito rapidamente, elevando a taxa de transferência de carga (load transfer rate) e sobrecarregando o pneu externo. O carro parece mais “afiado” em resposta, mas perde aderência contínua e fica mais difícil de controlar no limite.
Onze anos depois, uma pesquisa conjunta da Universidade de Michigan e do Instituto de Tecnologia de Quioto usou simulações mapear a deformação de monoblocos sob cargas laterais de 1G. O resultado revelou que estruturas com rigidez anisotrópica — ou seja, projetadas para serem mais flexíveis em direções específicas — conseguiram manter o ângulo de cambagem mais próximo do ideal durante a curva. Essa microflexão lateral, na casa de meio milímetro, aumentou a aderência em até 12% e reduziu o subesterço em quase 10%.
Esses números parecem pequenos, mas representam uma diferença monumental em comportamento dinâmico. O que os pesquisadores mostraram é que a rigidez ideal não é uniforme: ela é direcional. A estrutura deve resistir onde há necessidade de manter geometria (como torção entre eixos e cargas longitudinais), mas pode — e deve — ceder levemente onde essa deformação melhora a aderência.
Em 2018, um estudo da Universidade de Tsinghua, na China, levou o conceito adiante. Os engenheiros criaram modelos de carrocerias com rigidez variável por zona, aplicando algoritmos de “otimização de topologia” — uma técnica que define a densidade ideal de material em cada ponto do chassi. A conclusão foi que estruturas com complacência calibrada, quando acopladas a suspensões de geometria convencional, reduzem o atraso de fase entre o comando do volante e a resposta lateral do veículo. Em termos práticos: o carro reage de modo mais direto, mais linear e mais previsível.

Esse conceito de rigidez direcional e flexão controlada não é novidade para quem acompanha o desenvolvimento de motos de competição ou o lado mais hardcore da tecnologia de Fórmula 1. Nas motos de MotoGP, o quadro de alumínio é projetado para flexionar sob carga. As fabricantes ajustam espessuras, tipos de solda e até a orientação dos grãos do metal para calibrar o nível exato de rigidez lateral e longitudinal. O objetivo é permitir que o pneu traseiro mantenha tração máxima durante inclinações extremas, enquanto o chassi absorve parte das oscilações.
A Yamaha foi pioneira nisso no fim dos anos 1990, e hoje todas as equipes seguem o mesmo princípio. Quando um piloto diz que a moto “fala com ele”, é isso: o quadro transmite informação e filtra vibrações, permitindo que o limite seja sentido, não apenas atingido. Um chassi rígido demais, como a Ducati teve durante parte da era Casey Stoner, gera o fenômeno chamado chatter — vibrações de alta frequência causadas por falta de flexão lateral. É o oposto do desejado e necessário: o piloto perde confiança e tração.
Não é por acaso que a Honda, uma das equipes que mais estudou esse fenômeno em motos, esteja agora transferindo a mesma lógica para carros de produção. A diferença, claro, está na escala e no controle: uma moto precisa de deformações perceptíveis a olho nu, enquanto um automóvel trabalha com tolerâncias da ordem de décimos de milímetro. Mas o princípio é idêntico — usar a elasticidade controlada como ferramenta de aderência e comunicação.
Do ponto de vista da física, o que acontece é que a microflexão do chassi atua como um amortecedor estrutural. Parte da energia lateral é absorvida e redistribuída, suavizando o pico de transferência de carga. O pneu externo, que normalmente seria sobrecarregado instantaneamente, mantém uma carga mais estável e uma temperatura mais uniforme, prolongando o limite de aderência. É o mesmo raciocínio que levou engenheiros de Fórmula 1 a projetarem suspensões com compliance lateral controlada, por meio de buchas de dureza variável. A diferença é que agora o próprio monobloco participa desse ajuste.
O monocoque de fibra de carbono tem sua rigidez aos impactos para formar a célula de sobrevivência, mas as equipes projetam as camadas de compósito com diferentes orientações de fibra, criando rigidez anisotrópica. Isso faz com que certas áreas do chassi possam torcer alguns décimos de grau sob carga lateral, o suficiente para redistribuir tensões e melhorar o equilíbrio em curvas de alta. O carro, que à primeira vista parece um bloco sólido, na prática se comporta como uma estrutura viva sob carga: o assoalho se deforma, as asas cedem dentro do limite regulamentar, o monocoque torce — tudo de forma coordenada para otimizar o contato dos pneus e o centro de pressão aerodinâmica.
Essa mudança de paradigma só foi possível porque o modo de projetar carros mudou radicalmente. Até o fim dos anos 1990, a rigidez à torção era medida fisicamente — aplicando torque ao chassi e registrando o ângulo de torção — e expressa em um número único: X Newton-metros por grau. Isso funcionava como referência de engenharia e como argumento de marketing. Mas o avanço dos softwares de elementos finitos (FEA) e da análise de dinâmica de materiais revelou que essa grandeza é simplista. O chassi não se comporta como um corpo rígido uniforme, e sim como uma rede de trajetórias de tensão, cuja rigidez muda conforme a direção da força, o ponto de aplicação e a frequência da carga.
A Honda afirma que sua nova arquitetura reduzirá o peso em cerca de 90 quilos e o custo estrutural em 10%, enquanto melhora a resposta em curva e o conforto de rodagem. Isso é consequência direta da redistribuição de material e da modularidade das seções dianteira e traseira. Mas o impacto mais interessante é conceitual: ao abandonar a rigidez máxima como objetivo, a fabricante está, na prática, reconhecendo que um carro precisa saber ceder.

E isso muda tudo — da forma como as suspensões são afinadas à maneira como o comportamento dinâmico é percebido pelo motorista. Um chassi que flexiona de modo previsível gera reações mais suaves e comunicação mais direta. O carro deixa de reagir como um bloco e passa a se comportar como um organismo.
Curiosamente, isso também aproxima o automóvel do que sempre fascinou os engenheiros de competição: a ideia de feedback. Em um carro de corrida, o piloto precisa sentir o que o pneu faz — e boa parte dessa sensação vem da forma como o chassi vibra, flexiona e transmite as variações de carga. Um carro de rua moderno, por outro lado, tende a isolar o motorista de tudo isso em nome do conforto. A proposta da Honda parece buscar um ponto intermediário: permitir que o carro se comunique sem perder o refinamento.
O conceito da rigidez máxima como ideal nasceu em uma época com poucos recursos tecnológicos e muito conhecimento empírico — como foi a aerodinâmica ante das simulações computadorizadas de dinâmica de fluidos. Hoje, com simulações capazes de mostrar o comportamento de cada ponto da carroceria em infinitas condições diferentes, a rigidez se torna uma ferramenta e não mais um objetivo. O carro ideal, hoje, não é o que resiste a todas as forças — é o que sabe quando e como ceder a elas.
Esta matéria é uma amostra do nosso conteúdo diário exclusivo para assinantes, e foi publicada sem restrições de acesso a caráter de degustação.
A sua assinatura é fundamental para continuarmos produzindo, tanto aqui no site quanto no YouTube, nas redes sociais e podcasts. Escolha seu plano abaixo e torne-se um assinante! Além das matérias exclusivas, você também ganha um convite para o grupo secreto (exclusivo do plano FlatOuter), onde poderá interagir diretamente com a equipe, ganha descontos com empresas parceiras (de lojas como a Interlakes a serviços de detailing e pastilhas TecPads), e ainda receberá convites exclusivos aos eventos para FlatOuters.


