Sabe aqueles poucos milhares de reais que você pagou pela sua geladeira? Quase um quarto do preço dela era imposto. A carga tributária sobre esse eletrodoméstico tão fundamental para o bem-estar social é de 46,21%. É caro, lógico que é. Imagine, se ela fosse de 10%, uma geladeira de R$ 1.500 custaria menos de R$ 1.200.
Mas poderia ser pior. Poderia haver um imposto sobre a propriedade de geladeiras, o IPG, que te cobraria 2% do valor da geladeira todos os anos. Imagine, você paga R$ 1.500 pela geladeira nova, e antes mesmo de ligá-la na tomada, já tem que pagar mais R$ 30. E no ano seguinte mais R$ 30. E depois R$ 29, R$ 28, R$ 27 e assim sucessivamente por 20 ou 30 anos. Já pensou que loucura?
Pois essa é a loucura do IPVA. Um imposto cobrado todos os anos pelos primeiros 15, 20, 25 ou 30 anos de um carro. Sim, loucura, porque um carro de entrada que custa R$ 65.000 terá acrescido ao seu valor entre R$ 1.300 e R$ 2.600 devido a este imposto. Ou seja: ele não custa R$ 65.000 de verdade, porque o imposto não é uma taxa cobrada por sua rodagem, mas por sua propriedade. Então ele custará entre R$ 66.300 e R$ 67.600.
Só que até aí não é loucura. A loucura só acontece quando esse imposto volta a ser cobrado pelo mesmo carro no ano seguinte. Ele já terá desvalorizado 7% (passando a valer R$ 60.750), mas terá de pagar mais R$ 1.215 a R$ 2.430 de imposto. Ou seja: os R$ 67.600 viraram R$ 70.030. E no ano seguinte, quando ele tiver desvalorizado mais 7%, ele irá pagar mais outro tanto de imposto, totalizando mais de R$ 72.000. Na prática, seu carro novo, mesmo quitado, tem um financiamento interminável devido ao governo.
Foi por causa disso que o Senado Federal fez uma proposta de resolução que visava isentar os veículos com cilindrada inferior a 170 cm³ do imposto. Segundo a justificação do projeto, o IPVA corresponde a uma parcela significativa da renda familiar das classes C, D e E, a maior clientela destes veículos justamente devido ao seu baixo custo. Não faz sentido onerá-los com um imposto semelhante àquele pago por donos de Mercedes-Benz.
Acontece que o o Senado Federal nada pode fazer além de pressionar os governos estaduais com uma resolução como a que foi aprovada na semana passada — e que ainda precisa ser promulgada. Isso, porque o IPVA é um imposto estadual, que é dividido entre estados e municípios e tem sua legislação local, nas câmaras estaduais. É por isso que cada estado tem suas regras de cobrança e isenção. Em comum há só dois elementos: o fator gerador é a propriedade de um veículo; e sua arrecadação não tem destinação específica por se tratar de um imposto, e não de uma taxa ou contribuição.
Já que a isenção do IPVA chegou à mais alta esfera do poder legislativo, parece uma boa hora para abordar esse assunto de uma forma mais analítica e — por que não? — questionar:
Não está na hora de repensar o IPVA?
O IPVA é coisa recente. Foi criado em 1985 em São Paulo e no Rio de Janeiro e, como toda ideia que aumenta a arrecadação, foi logo adotado pelos demais estados na forma de uma emenda constitucional em 1º de janeiro de 1986.
Antes dela havia uma taxa chamada Taxa Rodoviária Única (TRU), que era paga anualmente pelos proprietários de veículos automotores. Os carros a gasolina pagavam 7% de seu valor venal, os carros a álcool pagavam 3%, as motos e demais veículos pagavam 2%. Caminhões, táxis e ônibus deviam o Imposto sobre Serviço de Transporte Rodoviário Interestadual e Intermunicipal de Passageiros e Cargas.
Era um sistema mais complexo — e com alíquotas maiores, como você deve ter notado —, mas o que importa aqui é que a TRU era uma taxa. Isso significa que sua arrecadação tinha destinação específica: conservação, manutenção e construção de ruas e rodovias.
Em 1985 RJ e SP começaram a mudar isso para aumentar a base de contribuintes. Como? Incluído qualquer veículo automotor na conta — desde ciclomotores até locomotivas, mas não embarcações, veículos náuticos e aéreos. Até aí nenhum problema. Mas o diabo está nos detalhes, diz o ditado: a Taxa Rodoviária Única não foi substituída por uma Taxa sobre Propriedade de Veículo Automotor, mas pelo Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotor.
Agora a arrecadação não tem destinação específica. A legislação, aliás, proíbe que um imposto seja vinculado a uma destinação única. Para isso existem as taxas. Então a arrecadação do IPVA pode ser usada para pagar os remédios das unidades de atendimento de saúde, cirurgias de crianças com câncer, mas também pode ser usada para pagar a decoração de natal ou os shows “gratuitos” no aniversário da cidade. E, claro, também pode servir para asfaltar ruas e construir pontes.
E aí está o problema do IPVA: ser um imposto sobre a propriedade de um bem de consumo. Os impostos sobre a propriedade, no Brasil, são apenas três: Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Territorial Rural (ITR, o “IPTU do campo”) e o Imposto Sobre Propriedade de Veículo Automotor (IPVA). Os dois primeiros têm relação com a ocupação do território e demanda de serviços públicos por sua utilização. Como são diversos os serviços, em vez de centenas de taxas, paga-se um imposto único que é distribuído pela Secretaria da Fazenda de acordo com a necessidade de cada área.
Seria fácil argumentar que os automóveis também têm esta demanda “complexa”. Que eles ocupam espaço público e exigem estrutura para circulação. É verdade. E é por isso que eles pagavam uma taxa, e não um imposto. A taxa era destinada à infraestrutura necessária para o carro.
Afinal, o carro não precisa de escola pública nem hospitais, muito menos decoração de natal ou vigilância sanitária. Ele precisa de vagas de estacionamento públicas, de ruas e rodovias e de um sistema de registro geral. E boa parte disso já é bancada por outros tributos — alguns deles gerados pela propriedade de um automóvel, inclusive.
O estacionamento público, por exemplo, é parcialmente bancado pelo sistema de estacionamento rotativo, a Zona Azul/Área Azul ou qualquer outra cor. O licenciamento anual banca o sistema de registro dos automóveis e os departamentos de trânsito — ao menos deveria. O seguro obrigatório, o infame DPVAT, é quem banca os atendimentos do Sistema Único de Saúde aos acidentados do trânsito. São tarifas e taxas, com arrecadação vinculada a um sistema/serviço. O IPVA não.
E isso traz o seguinte problema: praticamente todo o mundo baseia a tributação dos automóveis em seu uso, sua circulação. Nós a baseamos em sua existência. Toda legislação deve ter uma motivação razoável como base. O mundo inteiro tributa bens de consumo importados como forma de proteção da indústria nacional, valorização da sua força de trabalho, impedir o caos social pelo desemprego e falta de desenvolvimento sócio-econômico. O imposto sobre os produtos industrializados e serviços é uma forma de fiscalização e também envolve demandas públicas de diversos tipos.
A substituição da TRU pelo IPVA até pode ter visado o uso mais abrangente dos recursos dos automóveis para a própria infraestrutura em sua origem — é possível subsidiar o transporte ferroviário com ele, por exemplo, o que, no fim, beneficia a infraestrutura rodoviária. Porém com a crescente desestatização da infraestrutura rodoviária, parte desta premissa já se perdeu, pois as concessões prevêem sua manutenção/construção.
Além disso, a base de cálculo do imposto — o valor venal do carro — é claramente anacrônica em temos de responsabilidade ambiental. O IPI, que é um imposto baseado na produção do automóvel, recolhido uma única vez, é mais coerente neste sentido, pois beneficia os motores de menor deslocamento que, consequentemente, tem menos potencial de emissões e consumo. Mas o IPVA, que acompanha o carro por toda sua utilização é baseado unicamente em seu valor venal — e isso traz efeitos colaterais indesejáveis que raramente são colocados em pauta.
O IPVA envelhece a frota?
Nos anos 2000 o Brasil se comprometeu com o programa de redução de mortes no trânsito da OMS, a “Década de Ação para Segurança no Trânsito”, que visava reduzir em 50% o número de acidentes fatais em nossas ruas e rodovias. Tivemos um pequeno avanço, apesar de termos passado longe da meta. Muito disso se deveu à renovação da frota e no aumento do número de automóveis em circulação.
Contudo, a crise econômica e, principalmente, a crise no mercado de automóveis que se iniciou em 2014 e insiste em permanecer, está envelhecendo a frota brasileira de novo. Em 2014, a idade média da frota era de oito anos. Hoje, ela é de 10 anos e 3 meses — a mais alta dos últimos 25 anos. E mais: as vendas de motos começaram a aumentar significativamente, quebrando recordes anuais e, pela primeira vez em mais 30 anos, ultrapassaram as vendas de automóveis.
Bons entendedores já se bastaram com estas meias palavras. Mas caso não tenha ficado claro, a frota envelhece porque a maioria dos carros ficam mais tempo em circulação. Carros mais antigos ainda mantém seus equipamentos de segurança, mas tendem a ser conservados de forma menos adequada ou mesmo recuperados de pequenos acidentes.
Quanto às motos, bem… os dados estão aí: a redução do número de acidentes fatais no Brasil só não foi maior por causa do aumento de acidentes fatais de motociclistas. E o aumento dos acidentes é proporcional ao aumento das vendas de motos. O aumento das vendas de motos, por sua vez, tem correlação com o período de crise no setor automobilístico. Na prática, temos evidências de que os motoristas estão trocando carros por motos por questões financeiras.
E estas questões envolvem o IPVA. Um carro zero-quilômetro irá pagar, no mínimo, R$ 1.300 de IPVA neste ano. Mais outro tanto deste em 2023. Um pouco menos em 2024. E continuará assim por 15, 20, 25 ou 30 anos. Uma moto também, ainda que pague menos.
É evidente que o IPVA estimula a permanência dos carros e motos mais antigos. Impede uma grande camada da sociedade de se locomover com mais conforto e segurança — e de modo mais limpo e eficiente. E isso é tão verdadeiro que o Senado Federal, a câmara alta que defende os interesses do país, propôs que os estados deixem de cobrar o imposto dos veículos mais utilizados pelas classes C, D e E. Se o IPVA não tivesse um impacto negativo para tanta gente, por que o Senado Federal faria tal proposta?
O problema é que o IPVA se tornou uma mina de ouro para o orçamento dos estados. Em 2022 os estados e municípios atingiram o valor recorde de R$ 440.000.000.000 (bilhões, ok?) de arrecadação — o valor mais alto dos últimos nove anos. Sabe em quanto o IPVA contribuiu com essa cifra? R$ 65.000.000.000 (bilhões de novo, ok?), ou 15% da arrecadação. Imagine se a frota fosse mais nova, ou se as vendas estivessem em alta.
E este é o outro problema do IPVA: ele se tornou grande demais, importante demais, valioso demais para os estados. Como matar uma fonte de arrecadação tão eficiente? É só cobrar. Ninguém precisa produzir nada, vender nada, nem mesmo dirigir nada. Em alguns estados do Brasil temos Fiat Tempra, Ford Del Rey e Chevrolet Monza pagando IPVA até hoje.
O “IPVA” lá fora
Praticamente todos os países do mundo ocidental têm tributos anuais incidentes sobre os automóveis. A absoluta maioria, contudo, baseia a cobrança no uso do veículo, e não em sua propriedade. E a base de cálculo tem relação com o porte do veículo, ou com o deslocamento/potência do motor, com tipo de uso (particular/comercial) ou com o nível de emissões de CO2.
Em Portugal, por exemplo, há dois impostos: o Imposto Sobre Veículos (ISV) e o Imposto Único de Circulação (IUC). O ISV é pago quando o carro é vendido ao primeiro dono, ou quando é importado usado. É um IPVA que se paga uma única vez. O IUC é análogo ao nosso licenciamento: como seu nome sugere, ele é o imposto cobrado para que o veículo possa circular. O motivador da cobrança é o uso do carro.
No Reino Unido existe a Vehicle Excise Duty, que é simplesmente o licenciamento anual, a taxa que se paga por circular com o carro. Se não for circular, é preciso solicitar um documento chamado Statutory Off-Road Notification (SORN), que indica ao departamento de trânsito que o carro está fora de uso e não inadimplente. Além disso, o governo britânico eventualmente pode instituir um fundo nacional para arrecadar recursos para a manutenção da infra-estrutura viária, como fez em 2015.
Nos EUA cada estado tem sua taxa de licenciamento anual, também motivada pelo uso/circulação do carro. Contudo, em alguns estados/municípios é cobrada uma taxa pela propriedade do carro que pode ser baseada no valor venal do carro ou em seu porte. Em outros estados o licenciamento é baseado no valor venal do carro, o que beneficia a conservação de veículos mais antigos, como no Brasil. Contudo, é importante notar que o tributo é uma taxa de licenciamento, e não um imposto.
Um país que tem impostos anuais baseados no valor venal do carro é Costa Rica. A Wikipedia cita a Costa Rica como “um dos países onde a propriedade de um veículo é mais onerosa na América Latina”, com tarifas que podem chegar a 3,5% do valor venal do carro anualmente. Soa familiar?
A maioria dos países (e você pode usar a própria Wikipedia, se não quiser fazer como eu e procurar os departamentos de trânsito de dezenas deles) tem uma taxa de registro do veículo (análoga à nossa transferência) e/ou uma taxa de circulação (análogo ao nosso licenciamento), mas raríssimos têm um sistema que cobra um imposto baseado na propriedade do carro, uma taxa de registro e outra de licenciamento como temos aqui. IPVA é cosa nostra.