Suzuka, 8 de outubro de 2000. A chuva não dá trégua, as curvas 1 e 2 viram espelhos d’água. No cockpit da F1-2000, Michael Schumacher administra cada respingo no para-brisa enquanto vigia Mika Häkkinen, seu rival direto. Na volta 41, a última parada estratégica da Ferrari devolve Schumacher à liderança — basta controlar o ritmo até a bandeirada.
Quando o carro vermelho aponta na reta dos boxes, Jean Todt e Ross Brawn explodem em comemoração; Rory Byrne, discreto como sempre, emerge das sombras para um abraço rápido. Aquele fim de semana consagrou não apenas o fim de um jejum de 21 anos sem o título de pilotos para a Scuderia, mas confirmou Byrne como o arquiteto silencioso de uma era de ouro para a Ferrari.
Enquanto nomes como Adrian Newey e Gordon Murray viraram grife, Rory Byrne manteve sempre a discrição como marca registrada. Ele não precisava aparecer. Seus carros falavam por ele. E falavam alto: sete títulos de construtores e seis de pilotos com Schumacher entre Benetton e Ferrari, fora a avalanche de GPs vencidos. Um currículo desses não se constrói por acaso.
Mas como foi que este projetista, um químico autodidata, acabou na Fórmula e se tornou um dos maiores projetistas da história?
O começo
A história de Rory Byrne começa em Pretória, na África do Sul, onde ele nasceu em 10 de janeiro de 1944. Filho de uma geração que via na ciência os caminhos sólidos para o futuro, Byrne formou-se em Química pela University of the Witwatersrand em 1965. Porém, enquanto calibrava tubos de ensaio em Joanesburgo, sua mente já fervilhava com curvas, velocidades e forças aerodinâmicas – um sinal de que o universo do automobilismo o atraía mais do que qualquer experiência de laboratório.
No fim dos anos 1960, ele e três amigos fundaram a Auto Drag and Speed Den, uma pequena empresa de peças de performance sediada em Malvern, Joanesburgo. Foi ali, entre coletores de escape e carburadores, que Byrne deu seus primeiros passos como projetista: desenhou seu próprio monoposto de Fórmula Ford, aplicando equações e conceitos aprendidos na faculdade para cada detalhe do chassi. Em 1972, esse protótipo caseiro já mostrava competitividade suficiente para brigar pelo título sul-africano da categoria, provando que seu talento ia muito além de meros cálculos em papel.
Esse sucesso inicial o motivou a se mudar para o Reino Unido em 1973, onde começou a trabalhar na Royale, uma fabricante de Fórmula Ford e Fórmula 3. Nos anos seguintes, Byrne aprendeu tudo o que conseguiu sobre suspensões, chassis e aerodinâmica, aprimorando sua formação autodidata a ponto de desenvolver seu próprio método e filosofia de construção de carros de corrida.
Entre os carros que Byrne ajudou a projetar na Royale, estava o carro de Fórmula Ford 2000 que o piloto sul-africano Rad Dougall usou para conquistar o título inglês de 1977. Dougall era um piloto independente patrocinado por um gentleman driver chamado Ted Toleman que tinha uma empresa de transporte rodoviário de automóveis vinculado à Ford. O título de Dougall inspirou Ted Toleman a criar sua própria equipe, a Toleman Motorsport, e a contratar Rory Byrne.
Nos dois primeiros anos, a equipe usou carros da March e da Ralt, mas Ted Toleman logo percebeu que, para conquistar o título, ele precisaria construir seu próprio carro, algo completamente diferente do que seus rivais usavam. Coube a Rory Byrne a missão de desenhar um monoposto inteiramente novo para a temporada de 1980.
Já com alguma quilometragem acumulada da Royale, aplicou seus princípios de compactação e integração funcional para criar um carro que se mostraria não apenas competitivo, mas também dominante. Batizado TG-280, o carro era relativamente convencional para a época — do monocoque de alumínio à aerodinâmica baseada no efeito solo. Seu trunfo, contudo, estava justamente na experiência de Byrne: era rígido, leve e confiável e foi projetado em torno do conjunto do motor Hart de dois litros e 310 cv com o câmbio Hewland F.T.200 de cinco marchas.
O carro dominou a temporada: a Toleman entrou em 11 das 12 corridas da temporada, chegando ao pódio em todas elas. Brian Henton venceu três vezes, chegou quatro vezes em segundo e uma vez em terceiro — campanha que lhe rendeu o título daquele ano. Derek Warwick conquistou uma vitória, três segundos lugares, três terceiros lugares e ficou com o vice-campeonato. Foi um feito impressionante para um carro estreante projetado por um químico em sua estreia como projetista-chefe.
O impacto foi imediato. O sucesso do TG280 consolidou a Toleman como uma equipe pronta para voos mais altos, e o nome de Rory Byrne começou a circular entre os bastidores da Fórmula 1. Mais importante: ali ficou claro que Byrne não era apenas um “engenheiro competente”, mas um criador de conceitos vencedores, alguém que entendia o carro como um ecossistema onde tudo tinha que conversar — do câmbio ao difusor. Ninguém poderia imaginar, mas aquele carro vitorioso de Fórmula 2 era o prenúncio silencioso de uma das carreiras mais vitoriosas da engenharia da F1 moderna.
Um começo difícil na Fórmula 1
Depois de dominar a Fórmula 2 com o TG280, Ted Toleman ganhou confiança para fazer uma manobra tão ambiciosa quanto arriscada: disputar a Fórmula 1. E Rory Byrne foi escalado para liderar essa manobra. A ideia era ousada: entrar direto na F1 já com motor turbo, algo que só Renault e Ferrari tinham compreendido amplamente até então. A Toleman apostaria no motor Hart 415T, um quatro-cilindros 1.5 turbo baseada no motor 2.0 da Fórmula 2, com deslocamento reduzido para atender o regulamento e com desempenho teoricamente próximo dos V6 e V8 aspirados mais consagrados. O problema é que entre a teoria e a prática havia um abismo.
Byrne projetou o Toleman TG181 com uma proposta interessante, mas com muitas limitações — ao menos inicialmente. O carro era grande, pesado e com uma distribuição de massas difícil de acertar. Sua principal característica era o bico “duplo”, assim formado para acomodar um dos radiadores do motor, que tinha propensão ao superaquecimento — lembre-se que o Hart nasceu como um motor aspirada. Na teoria, uma tentativa de otimizar o arrefecimento com eficiência aerodinâmica. Na prática, um pesadelo de equilíbrio e manutenção.

Além disso, a falta de túnel de vento próprio e os recursos limitados da equipe fizeram com que o TG181 tivesse um projeto aerodinâmico rudimentar, o que refletiu no desempenho pífio do carro na temporada de estreia. Brian Henton conseguiu largar somente no GP da Itália, em Monza, terminando em último entre os dez carros que concluíram a prova, a três voltas do vencedor Alain Prost. Warwick não teve a mesma sorte: também alinhou em uma prova, o GP de Caesars Palace, em Las Vegas, mas abandonou com uma quebra no câmbio depois de 43 voltas no estacionamento do Caesars Palace Hotel/Casino.
Para a temporada de 1982, Byrne fez atualizações visando a confiabilidade do carro enquanto desenvolvia um chassi completamente novo, que se tornaria o TG183. As evoluções, contudo, não resolveram o principal problema do carro, que era o peso excessivo e a falta de potência. Warwick se classificou para nove das 16 provas, mas só terminou duas. O novo piloto da equipe, o italiano Teo Fabi, conseguiu largar em seis provas, mas não terminou nenhuma.
Apesar do início errático, Byrne conseguiu desenvolver um conceito mais ousado e mais competitivo para a temporada seguinte. O TG183, que estreou ainda em 1982, já usava monocoque de fibra de carbono, uma novidade trazida pela McLaren em 1981 e que colocou a Toleman mais próxima das equipes de ponta, ao menos em termos de construção. O carro também tinha uma curiosa asa traseira dupla, e uma solução igualmente questionável para o problema crônico de arrefecimento do motor Hart: radiadores embutidos na asa dianteira.
A eficiência térmica melhorou um pouco, mas o TG183 ainda sofria com o turbo Hart — fraco em potência, inconstante em entrega e sedento por combustível. Além disso, o conjunto gerava um centro de gravidade elevado e problemas crônicos de dirigibilidade, especialmente em curvas de baixa velocidade. Mesmo com a carroceria inovadora e soluções técnicas interessantes, os resultados continuaram modestos. A Toleman estava tentando correr antes de andar.
O motor Hart 415T continuava sendo um calcanhar de Aquiles. Sua potência era inferior à dos V6 turbo da concorrência, e o consumo seguia elevado — o que obrigava a Toleman a correr com tanques maiores e estratégias conservadoras. Ainda assim, com Derek Warwick ao volante, o TG183B conseguiu beliscar pontos em algumas provas. Warwick marcou quatro pontos ao longo da temporada, o suficiente para colocar a Toleman à frente de equipes como Ligier e Osella no Mundial de Construtores — um feito modesto, mas significativo para uma equipe que dois anos antes mal conseguia largar.
Havia um ponto positivo, contudo: Byrne estava ganhando casca. Cada erro, cada abandono e cada quebra o obrigavam a aprender a duras penas as exigências técnicas e logísticas da F1 — um universo imensamente mais complexo do que a Fórmula 2. Ele começava a formar seu estilo como projetista: ousado, atento aos detalhes, pragmático, e sobretudo obsessivo pela eficiência aerodinâmica. Ainda que os resultados não aparecessem na pista, internamente Rory Byrne já era visto como um técnico de enorme potencial. E logo teria uma chance melhor de provar isso.
A temporada de 1984 começou como todas as outras para a Toleman: sem pneus, sem dinheiro e sem muita certeza de onde estariam no fim do ano. Literalmente. A equipe perdeu as três primeiras etapas do campeonato porque rompeu com a Pirelli e ainda não tinha fechado com a Michelin — e quando fechou, a fornecedora anunciou que deixaria a F1 no fim do ano. Começava bem.
Uma coisa estava diferente: havia um brasileiro no carro número 19. Um estreante magrelo, de voz suave, olhar fixo e absolutamente obcecado por perfeição. Ayrton Senna da Silva. Ele chegava à Fórmula 1 cercado de expectativas — vindo de títulos na Fórmula Ford 1600, Ford 2000 e um massacre na Fórmula 3 britânica —, e havia testado com várias equipes antes de assinar com a Toleman. Ninguém sabia ainda, mas esse seria o ano em que Rory Byrne teria, pela primeira vez, um piloto capaz de explorar o potencial oculto de seus projetos. E isso mudaria tudo.

O TG184 não era revolucionário no papel, mas representava o ápice da evolução conceitual iniciada dois anos antes. Byrne refinou o TG183B ao máximo: sidepods mais baixos e integrados, redesenho completo da traseira, melhor equilíbrio de massas e uma carroceria mais compacta.
A construção em fibra de carbono era agora mais madura, com melhores tolerâncias e maior rigidez à torção, mais próxima das grandes. O motor Hart continuava sendo o elo fraco com seus problemas crônicos de arrefecimento e desgaste. Byrne já sabia que não dava pra brigar com Ferrari, Brabham-BMW ou McLaren-TAG em potência, então ele apostou na eficiência aerodinâmica e leveza do conjunto.

A corrida que mudou tudo aconteceu em Mônaco, sexta etapa da temporada. Chovia o bastante para transformar os muros do Principado em armadilhas sobre espelhos d’água. Era o cenário perfeito para um piloto com sensibilidade acima da média e um carro equilibrado. Na chuva, os carros são nivelados por baixo e a habilidade do piloto se sobrepõe.
Senna largou em 13º com o TG184, passou carro após carro com manobras milimétricas e começou a caçar a McLaren de Alain Prost. O Toleman, mesmo com um motor modesto, mostrava um comportamento estável e preciso no molhado. Byrne assistia nos boxes, fascinado: finalmente alguém estava extraindo tudo que o carro podia dar — e mais um pouco.
Quando Senna finalmente ultrapassou Prost, a prova foi encerrada por bandeira vermelha. Jacky Ickx, o diretor da prova, percebeu que as coisas estavam ficando perigosas no asfalto, e encerrou a prova. Foi um segundo lugar com gosto de vitória: Senna provou que era mesmo um piloto promissor. E Byrne mostrou a todo o mundo o que seus carros eram capazes de fazer quando o motor não faz diferença e um piloto de primeira está ao volante.
Há quem diga que a interrupção da prova beneficiou Alain Prost — a teoria da conspiração cita um conluio entre os francófonos Jacky Ickx e o presidente da FISA Jean-Marie Balestre para beneficiar Prost e o motor Porsche. No entanto, ao analisar o carro de Senna após a corrida, Byrne e os mecânicos perceberam que a interrupção da prova beneficiou o brasileiro, pois sua suspensão traseira havia sido danificada nas zebras da Nouvelle Chicane/Chicane Nova e não resistiria muito mais voltas caso a corrida continuasse.
O ano seguiu com altos e baixos. Senna voltou ao pódio duas vezes, com um terceiro lugar no GP da Grã-Bretanha, em Brands Hatch, e outro no GP de Portugal, em Estoril. O motor Hart seguia limitando as ambições da equipe, mas o TG184 era um carro tecnicamente muito bem nascido, e Byrne, ao lado do engenheiro Pat Symonds, já era visto como um dos nomes mais criativos da engenharia da F1 — especialmente considerando o que faziam com tão pouco.

No fim de 1984, Ayrton Senna partiu para a Lotus, levando consigo parte do prestígio que ajudou a construir. Mas para Rory Byrne, aquele ano foi o aviso: se colocassem um piloto de ponta e um motor decente em suas mãos, ele podia bater os gigantes.
A segunda fase
A temporada de 1985 começou como um filme repetido para Rory Byrne: incertezas financeiras, problemas logísticos, e um carro, o TG185, que ele e Pat Symonds só conseguiram terminar com as peças literalmente em trânsito para a primeira corrida. O carro foi mais uma evolução do conceito iniciado com o TG183. O chassi era compacto, leve e bastante rígido para os padrões da época.
Aerodinamicamente, Byrne começou a adotar superfícies mais limpas e eficientes, e já testava soluções como saídas de ar “limpas” atrás dos sidepods para otimizar o fluxo que chegava à asa traseira. Era visível que ele estava estudando os caminhos que a F1 dos turbos começava a trilhar — com carros altamente instáveis em aceleração e uma dependência cada vez maior da eficiência do solo e da traseira.
Já o motor… sim, ainda o Hart. Embora temperamental, o Hart 415T era valente, mas estava em seu limite. Enquanto Renault, BMW e Porsche (no caso da McLaren) ultrapassavam os 800 cv em modo de classificação, a Hart só conseguia entregar números compatíveis em sessões curtas e com risco de quebra. Isso tornava cada corrida da Toleman um ato de malabarismo entre andar forte e cruzar a linha de chegada.
A dupla de pilotos também não ajudou. Senna havia partido, e agora quem guiava eram Teo Fabi e Piercarlo Ghinzani. Fabi era tecnicamente correto, bom em voltas lançadas (chegou a fazer pole em Nürburgring), mas irregular em ritmo de corrida. Ghinzani, por sua vez, não fez diferença alguma. Mesmo assim, Byrne conseguiu entregar um carro que, com todos os seus limites, era tecnicamente coerente, confiável e com base sólida para desenvolvimento.
O ano foi salvo no apagar das luzes por um movimento inesperado fora das pistas: a grife italiana Benetton, que já patrocinava a Tyrrell, Alfa Romeo e a Toleman, percebeu que os projetos de Byrne eram confiáveis, apesar do motor, e resolveu comprar a equipe inteira. Quando o acordo de compra se concretizou no final de 1985, a Toleman deixou de existir. Nascia ali a Benetton Formula Ltd., com sede ainda em Witney, no Reino Unido, mas agora com uma estrutura profissional, gestão comercial, aporte técnico e acesso a parceiros de verdade.
Rory Byrne foi mantido como chefe de design — uma rara permanência quando uma equipe muda de mãos. Isso mostra o respeito que ele já tinha dentro do time e o grau de confiança que a família Benetton depositou nele.
A era Benetton
O primeiro carro verdadeiramente “Benetton de Rory Byrne” foi o B186, um míssil de retas. E não é exagero: o carro usava o brutal motor BMW M12/13 turbo, que em modo de classificação chegava a algo próximo de 1.300 cavalos, sendo provavelmente o motor mais potente já usado em um F1.
Com Teo Fabi e Gerhard Berger no volante, o B186 era instável nas curvas, difícil de domar em pistas travadas, mas avassalador em Hockenheim e Monza. O ápice veio na Áustria, onde Berger venceu de ponta a ponta — a primeira vitória da Benetton na F1, e a primeira de muitas de Byrne como projetista.
A vitória expôs algo importante: Byrne sabia construir carros rápidos e confiáveis, mesmo quando ainda buscava entender a filosofia de equilíbrio aero-mecânico com os pneus radiais e motores ultra-turboalimentados. A Benetton logo abandonou a BMW e assinou com a Ford Cosworth, que forneceria motores V6 turbo e depois V8 aspirados.

O B188 e o B189, guiados por pilotos como Thierry Boutsen, Alessandro Nannini e Emanuele Pirro, mostraram consistência: pontuavam com frequência, subiam ao pódio ocasionalmente, e terminavam campeonatos na parte alta do meio do grid. Nada mau para um time em construção.
Essa consistência dos modelos B188 e B189 era o sinal de que Rory Byrne começava a construir algo mais robusto do que apenas carros rápidos. Ele desenvolvia uma plataforma técnica confiável, com um comportamento previsível em diferentes tipos de pista — algo raro em uma Fórmula 1 ainda em transição entre o experimentalismo dos anos 1980 e o rigor de engenharia que marcaria os anos 1990. O segredo estava na obsessão de Byrne por progresso incremental: ao invés de buscar revoluções a cada novo carro, ele aplicava lições acumuladas com precisão quase matemática.

O B188, por exemplo, trazia soluções aerodinâmicas mais limpas que seu antecessor e uma distribuição de massas mais equilibrada — sinal de que Byrne havia aprendido com os excessos do B186. Os sidepods foram redesenhados para melhor gerenciamento térmico e a suspensão dianteira ganhou ajustes mais refinados. O resultado foi um carro mais fácil de guiar em pistas de baixa e média velocidade, ainda que faltasse aquele algo a mais para brigar com McLaren, Ferrari e Williams.

O B189, que chegou ao segundo semestre de 1989, deu mais um passo adiante. Era leve, ágil, e fazia bom uso dos pneus Pirelli, que favoreciam carros com carga aerodinâmica traseira bem distribuída — uma característica que Byrne tratou como prioridade. Alessandro Nannini, o piloto mais técnico da dupla, conquistou a segunda vitória da história da Benetton, no Japão, em uma corrida caótica após a batida entre Senna e Prost. Mas a vitória, ainda que herdada, refletia um carro competitivo no momento certo, bem acertado, e em ascensão técnica.
Aliás, a temporada de 1989 também marcou a chegada definitiva de um nome que seria fundamental na era de ouro da equipe: Ross Brawn, que assumiu funções ligadas à engenharia de pista e operações de corrida. Entre Byrne, um engenheiro metódico e avesso aos holofotes, e Brawn, o estrategista cerebral, começava a surgir uma parceria sinérgica, baseada em confiança e competência mútua.

Com o regulamento de 1989 encerrando a era turbo, a Fórmula 1 entrava em uma nova fase. E Rory Byrne estava pronto para ela. O motor Ford Cosworth HB V8, atmosférico, substituiu o V6 turbo e passou a ser o coração do Benetton B190, o carro que estrearia a década de 1990 com uma combinação precisa entre simplicidade funcional e eficiência aerodinâmica.

E é nesse ponto que a trajetória de Byrne dá um salto qualitativo. Com Nelson Piquet a bordo, o B190 tornou-se não apenas competitivo, mas vitorioso. O carro não era o mais potente nem o mais aerodinâmico, mas era extremamente confiável e equilibrado — características que Piquet sabia explorar como poucos. A dobradinha em Suzuka com Roberto Pupo Moreno (a primeira da Benetton e a última do Brasil) e o triunfo em Adelaide, ao final do ano, foram muito mais do que estatísticas: foram declarações de maturidade técnica. O time, que já estava longe de andar apenas no pelotão do meio, agora era claramente uma equipe de ponta capaz de lutar pelo título.

Byrne havia criado um chassi com o qual os engenheiros podiam trabalhar e os pilotos podiam confiar. E esse ponto é essencial: carros de Rory Byrne, desde os tempos da Toleman, sempre foram construídos para serem compreendidos. Eles não exigiam que o piloto lutasse contra o carro — e sim que o entendesse, o moldasse e o explorasse ao limite.

Com o B191 no ano seguinte, Byrne começou a dar forma à filosofia que definiria sua obra-prima na Ferrari anos depois: aerodinâmica limpa, centro de gravidade baixo, controle térmico eficiente e foco em tração.

O carro estreou com Piquet, mas terminaria o ano com um novo nome que mudaria tudo: Michael Schumacher, que veio da Jordan direto para o cockpit da Benetton, substituindo Roberto Moreno. E já na sua segunda corrida pelo time, venceria em Spa-Francorchamps, com um carro que ele ainda mal conhecia — mas que oferecia a confiança necessária para ir ao limite com naturalidade.

Era o início da era Benetton-Schumacher-Byrne-Brawn. A engrenagem estava montada. E o mundo da F1, ainda preso às glórias de Williams, McLaren e Ferrari, ainda não sabia, mas o centro de gravidade da Fórmula 1 estava prestes a mudar.
O domínio
Se havia alguma dúvida de que a Benetton era uma força em ascensão, 1992 tratou de silenciá-la. O novo carro, o B192, talvez tenha sido o primeiro da equipe a traduzir com fidelidade a identidade técnica de Rory Byrne. Era um chassi refinado, com dimensões compactas, distribuição de massas precisa e uma aerodinâmica que, embora menos sofisticada que a da dominante Williams FW14B, fazia uso inteligente do que o regulamento permitia.
O Ford HB V8, embora inferior ao V10 Renault, era leve e bem integrado ao carro. Mais do que potência bruta, Byrne buscava equilíbrio. E conseguiu. Schumacher, em sua primeira temporada completa, já demonstrava que era um piloto diferente: cerebral, técnico e implacável. Sua vitória em Spa, com uma leitura magistral da pista molhada e do comportamento dos pneus, foi uma demonstração de maturidade que deixou o paddock em alerta. E Byrne estava lá, anotando tudo.
1993 trouxe o B193, que incorporava sistemas eletrônicos mais avançados — ainda que em menor grau que a Williams de Prost. O carro já usava suspensão ativa, controle de tração e câmbio semi-automático, mas todos esses sistemas eram fruto de uma engenharia mais conservadora do que a da concorrência. Isso não impediu Schumacher de conquistar uma vitória épica em Estoril e vários pódios, colocando a Benetton em um claro segundo escalão — à frente da McLaren e atrás apenas da Williams-Renault.

Mas foi em 1994 que tudo mudou.
O carro daquele ano, o B194, foi o projeto mais controverso da carreira de Rory Byrne. Equipado com o último estágio evolutivo do Ford V8, o B194 nasceu com um conceito muito claro: ser simples, rígido, leve e estável. Em tempos de transição — com a proibição dos auxílios eletrônicos —, a Benetton apostou na velha engenharia: bom chassi, peso reduzido, e comportamento previsível.

O problema? O carro parecia bom demais. Schumacher venceu seis das sete primeiras corridas, com um domínio que ninguém esperava. Logo surgiram suspeitas: teria o B194 sistemas ilegais ocultos, como controle de tração disfarçado ou freios com vetorização de torque?
A FIA jamais provou nada — embora tenha apreendido o carro em Imola e levantado suspeitas sobre o software. Byrne, fiel ao seu estilo reservado, nunca falou publicamente sobre o tema com detalhes. O que se sabe é que o B194 tinha um chassi extremamente eficiente, com uma traseira plantada, tração forte e frente obediente. Schumacher pilotava como se tivesse tração total — e isso, por si só, já era o suficiente para alimentar boatos.
A temporada, marcada pela tragédia da morte de Senna, terminou com um título suado e controverso para Schumacher. Mas, nos bastidores, era o coroamento do trabalho silencioso de Rory Byrne. Pela primeira vez, um carro que ele projetou era campeão mundial.
O B195, de 1995, veio para consolidar. Agora com motor Renault V10 — o mesmo usado pela Williams —, o carro era mais longo, mais estável e ainda mais bem resolvido do ponto de vista aerodinâmico. Byrne aumentou a eficiência do assoalho, revisou o design dos sidepods e redesenhou a suspensão traseira para melhorar o uso dos pneus Goodyear.
O resultado foi avassalador: nove vitórias, domínio técnico e tático, e o título mundial de construtores e pilotos com sobras. Mais do que um bom carro, a Benetton tinha um sistema — e esse sistema se chamava Rory Byrne, Ross Brawn e Michael Schumacher. Três peças de um mesmo mecanismo, operando com perfeição.
Depois disso, o mundo sabia: Rory Byrne não era apenas um bom engenheiro. Era um mestre. E seu próximo desafio seria o maior de todos: ressuscitar a Ferrari.
Uma nova Ferrari
Quando Michael Schumacher anunciou sua transferência para a Ferrari ao final de 1995, o paddock achou que ele estava maluco. A Scuderia vinha de mais de uma década de frustrações, carros temperamentais e decisões erráticas. Nem mesmo John Barnard havia conseguido domar o caos de Maranello. Mas Schumacher sabia o que estava fazendo. Na bagagem, ele não levou apenas seu talento: levou Ross Brawn e, claro, Rory Byrne.
Byrne chegou à Ferrari no fim de 1996, ainda como consultor, enquanto John Barnard encerrava seu ciclo. Mas o sul-africano não demorou a assumir as rédeas do departamento técnico. O projeto F310, com seu bico achatado e distribuição de peso duvidosa, era uma colcha de retalhos de ideias e limitações. Byrne entrou com um bisturi — e com paciência. Ao contrário de outros projetistas, ele não buscava revolucionar. Queria entender, absorver e corrigir. E foi isso que fez.
O F310B, de 1997, foi o primeiro Ferrari com assinatura parcial de Byrne. O carro ainda carregava soluções herdadas de Barnard, mas ganhou nova suspensão, melhor integração entre chassi e motor, e, sobretudo, coerência aerodinâmica. Resultado: cinco vitórias e uma briga real pelo título, perdida apenas na última corrida. Mas a mensagem estava dada: a Ferrari tinha saído do coma técnico.

Em 1998, com o F300, Byrne finalmente assinava um projeto próprio do zero. E o carro já mostrava sua marca registrada: equilíbrio, mais do que exuberância. Enquanto a McLaren MP4/13 de Newey era um foguete aerodinâmico, o F300 era sólido, confiável, bem acertado. O diferencial era a constância. Com 6 vitórias e o título de construtores escapando por apenas 3 pontos, a Ferrari mostrava que estava na trilha certa. E Byrne sabia: ainda não era o momento do salto.

O F399, em 1999, era o refinamento absoluto. Motor Ferrari V10 em plena forma, chassi leve e fácil de acertar, e pneus Bridgestone perfeitamente casados com o carro. Mesmo com Schumacher fora por parte da temporada após o acidente em Silverstone, a Ferrari foi campeã de construtores pela primeira vez em 16 anos. E, mais importante: o projeto havia mostrado maturidade técnica. Era o prólogo da era de ouro.

Então veio o ano 2000. O F1-2000, que carregava o nome do novo milênio, foi o ponto de virada. Rory Byrne concentrou esforços em compactar o conjunto, reduzindo o centro de gravidade, melhorando a distribuição de massas e trazendo um carro mais responsivo nas saídas de curva. A suspensão dianteira foi redesenhada, e o assoalho ganhou nova geometria para melhorar a pressão aerodinâmica traseira. Tudo com uma filosofia clara: não o carro mais rápido em todas as pistas, mas o mais completo ao longo do campeonato. A McLaren ainda era veloz, mas o F1-2000 era constante. E isso bastou para quebrar o jejum de 21 anos sem título de pilotos.

O resto virou história. F2001, F2002, F2003-GA e F2004: uma sequência de carros que pareceram inalcançáveis. O auge talvez tenha sido o F2002, um projeto quase perfeito. Byrne apostou em um novo posicionamento do câmbio (super compacto e leve), um entre-eixos mais eficiente e uma aerodinâmica completamente refinada. O carro era tão superior que a Ferrari adiou sua estreia para garantir confiabilidade — e mesmo assim dominou a temporada, vencendo 15 das 17 corridas.
O F2004, seu canto do cisne, foi um show técnico. Redesenho de suspensão traseira, nova integração entre motor e câmbio, freios mais eficientes, e um chassi que parecia moldado para os pneus Bridgestone. O carro era tão bom que Michael Schumacher venceu 13 corridas em um só ano, um recorde que só cairia quase duas décadas depois.
O mestre nos bastidores
Quando Rory Byrne anunciou que deixaria o cargo de projetista-chefe da Ferrari ao fim de 2004, muita gente achou que ele sumiria do mapa. Mas quem conhece Byrne sabia que sua saída não seria um corte, e sim uma transição. Aos 60 anos, ele queria mais tempo na África do Sul, perto da família, perto do mar. Mas a engenharia ainda chamava. E a Ferrari, claro, não o deixaria ir tão fácil.
Em 2005, Rory passou oficialmente o bastão para Aldo Costa, mas permaneceu como consultor técnico sênior. Seu papel não era mais desenhar carros diretamente, mas oferecer direção conceitual, validar ideias e revisar fundamentos técnicos. Era a figura silenciosa que aparecia pouco nas câmeras, mas que seguia moldando a espinha dorsal dos projetos da Scuderia.
Essa colaboração foi crucial para manter a Ferrari competitiva até o fim da era Schumacher. O título de 2007, conquistado por Kimi Räikkönen com o F2007 — que ainda carregava muito da filosofia “Byrne-Brawn” —, foi também uma espécie de último eco da era dourada.

Depois disso, a Fórmula 1 passou por transformações profundas: motores híbridos, aerodinâmica ativa, orçamentos crescentes e, claro, a ascensão de novas potências como Red Bull e Mercedes. A Ferrari enfrentou altos e baixos. Byrne, agora em Maranello apenas ocasionalmente, oferecia conselhos pontuais, revisava conceitos aerodinâmicos e dava suporte à engenharia quando solicitado. Mas o foco era outro: formação de base, reforço estrutural, planejamento de longo prazo.
Em 2013, após um longo período de estagnação técnica, Luca di Montezemolo e Stefano Domenicali pediram que Byrne voltasse com mais frequência. A Ferrari sabia que precisava recuperar coerência de projeto, especialmente no período de transição para a era híbrida, que começaria em 2014. Byrne aceitou — sempre como consultor, mas mais presente, revisando projetos em fase inicial e ajudando a equipe a repensar conceitos. Ele também se envolveu na reorganização do departamento técnico após as saídas de Costa e Fry.
A Ferrari não voltou ao topo de imediato, mas a presença de Byrne nos bastidores manteve viva a chama da lógica e da estabilidade técnica.
Então veio 2020, e com ele o escândalo envolvendo o motor da Ferrari de 2019 — investigado e restringido pela FIA em um acordo confidencial. A equipe mergulhou em um novo período de reconstrução. E foi aí que Mattia Binotto, então chefe de equipe, chamou Rory de volta ao front técnico. Byrne passou a atuar diretamente no projeto do carro de 2022, o primeiro sob o novo regulamento técnico de efeito solo. Com seu histórico em carros de chão plano nos anos 1980, ele era a pessoa perfeita para ajudar a Ferrari a entender e explorar o potencial do novo conceito aerodinâmico. Mesmo em seus 70 e poucos anos, Byrne mergulhou em simulações, revisões de túnel de vento e filosofia de projeto.
O resultado foi o Ferrari F1-75, um carro competitivo e promissor, que liderou o início da temporada de 2022 antes de perder terreno para a Red Bull. Mas o mérito era claro: Byrne ajudou a recolocar a Scuderia no caminho certo, reforçando a importância de uma base técnica sólida, simples e funcional — como sempre foi seu estilo.
Rory Byrne nunca foi um engenheiro de manchetes. Sua força estava na coerência técnica, na habilidade de ver o conjunto, de entregar carros que funcionavam bem em qualquer condição, com qualquer motor e com pilotos de diferentes estilos. Seus números impressionam: sete títulos mundiais de pilotos, sete títulos de construtores, mais de 70 vitórias como projetista principal. Mas mais do que isso, Byrne deixa um legado de engenharia silenciosa, precisa e absolutamente eficaz.
E mesmo hoje, quando fala pouco e aparece menos ainda, seu nome ainda reverbera nos corredores de Maranello — como o do homem que ensinou a Ferrari a vencer de novo.