Quando se convive com entusiastas, é inevitável que surjam, de tempos em tempos, certas questões filosóficas sobre carros — às vezes, sem uma boa razão e puramente porque a gente pensa demais. Por exemplo, recentemente surgiu aqui na cúpula do FlatOut um debate que precisava de uma solução: caso precisasse escolher um carro, um único carro para chamar de seu a vida toda, qual seria?
Depois de um pouco de conversa, chegamos a alguns critérios: fatores como época da fabricação, quantidade de lugares, espaço interno e praticidade são meio subjetivos, mas é bom atentar-se à robustez, facilidade de manutenção e disponibilidade de peças — um preço acessível também não é má ideia.
Agora, sendo um site feito por entusiastas, para entusiastas, é natural que as escolhas envolvam carros esportivos, emblemáticos ou as duas coisas — levando em consideração, obviamente, as preferências e a personalidade de cada um.
Prova disso foram nossas opções, que até já estavam meio formadas antes da discussão. Olha só:
Camaro Coupé 1968 V8 350
Por Juliano Barata
Claro, um pouco de licença poética aqui – afinal, embora não haja tabela de mercado para antigos, sabemos que não se paga menos de R$ 100 mil num bom Camaro de primeira geração. E também sabemos que o preço da gasolina no Brasil não para de subir, mesmo quando ele cai em todo o resto do mundo. Não é amável?
Mas antes que você vomite algo do tipo “com 100 mil eu compro um Jetta TSi, um Citroën DS3” ou qualquer outro carro interessante da atualidade, quero que você pense que você terá este carro para a vida toda. Se tiver sorte, em 2062 estarei soprando minhas velinhas de 80 anos, já sabendo que não teria muitas voltas pra completar na vida. Não espere encontrar sensores ou uma ECU de DS3 tão facilmente daqui a 40 anos. Isso sem falar em acabamentos.
O Camaro? A indústria de restauração do rival do Mustang chegou a um ponto tão extremo que existem até monoblocos novinhos à venda. Vidros novos, portas novas, capô, para-choque, borrachas, frisos, lanternas, grades, toda a parte elétrica. E, como todo carro antigo, ele tem uma plataforma parruda e espaçosa o suficiente para se inventar: suspensão, câmbio, motor, dá pra mexer no que você quiser sem ter o medo de topar com crises histéricas de ECU. Tem carro moderno que tem mais de dez delas. Perfeito a curto e médio prazo, mas e para a vida toda?
Fora que o Camaro, como o Porsche 911 ou qualquer outro clássico, não é um bem de consumo. Não é descartável. Ele é um pedaço de história com ciclo de vida renovável, que renasce de novo e de novo em oficinas e garagens de entusiastas, e é justamente isso que mobiliza a indústria do parágrafo acima. Pouquíssimos serão os carros atuais que terão este privilégio, até porque são demasiado complexos. A indústria irá apenas cumprir sua cota de obrigatoriedade de peças de reposição – passado este período, boa sorte, amigo.
Você também pode perguntar sobre a gasolina e os inconvenientes. Mas honestamente, acredito que não demorará muitas décadas para o automóvel ser reduzido a um hobby de nicho, que fará sentido para pessoas comuns apenas em viagens e, claro, pela experiência. Isso já acontece em todas as metrópoles do mundo e até para alguns privilegiados no Brasil, que moram perto do trabalho. Há gente demais no mundo e o automóvel resolve cada vez menos a questão da mobilidade. Se está assim em 2015, não espere que vá melhorar em 2040.
Por isso, quando eu estiver na minha crise de meia idade, possivelmente com filhos conectados a um mundo que não irei reconhecer (pense sobre isso quando você tira sarro dos seus pais hoje), o Camaro vai ser o meu porto seguro. Vai me trazer a experiência mecanicamente orgânica, vai me dar o prazer de estimular o DIY em fins de semana e vai me lembrar do que é aquilo que chamamos de Carro, pronunciado de boca cheia, aquele que você torce o pescoço para trás e dá uma namoradinha toda vez que o estaciona.
E como ele seria? Um Camaro 1968 (gosto da ausência do quebra-ventos), motor 350 (o V8 mais produzido no mundo, o que tem o maior catálogo de performance e o melhor preço, um dos mais robustos), câmbio de seis marchas T56 Magnum (que provavelmente trocaria por um automático quando ficasse velho), suspensão com carga um pouco mais firme, rodas Torq Thrust, bandejas tubulares ajustáveis, reforços estruturais, ar condicionado, direção hidráulica. Branco Ermine White, porque esquenta menos. Interior azul, porque é mais charmoso que o preto e também esquenta menos.
Pensando bem, eu já tenho o meu Camaro 1968. Só que é um Dodge 1978. Lucky fuckin’ bastard me.
Lancia Delta HF Integrale
Por Dalmo Hernandes
Os leitores que nos acompanham desde a época do Jalopnik Brasil ou do início do FlatOut já sabem: eu gosto mesmo é de hot hatches, e a série sobre os melhores do universo é a maior prova. Se forem italianos, melhor ainda. Ou seja: não é preciso pensar muito para deduzir que, se fosse ficar com um único carro, qualquer um, para a vida toda, eu teria um hot hatch italiano.
Agora, por mais que eu seja um grande fã do Fiat Uno, minha escolha não seria um Uno Turbo ou mesmo o meu favorito, o 1.6R MPI — afinal, estamos falando de ter um único carro por décadas. Tem que ser algo maior, mais potente e ainda mais icônico. Só há, para mim, uma resposta possível: o Lancia Delta HF Integrale.
Ele tem história nos ralis — muita, na verdade, tendo vencido nada menos que 46 provas do WRC e conquistado seis títulos de construtores consecutivos para a Lancia entre 1987 e 1992. Juha Kankkunen, um dos pilotos de rali mais lendários do planeta (e dono de uma coleção incrível) responde por nove destas vitórias, que o ajudaram a ficar com o título dos pilotos em 1987 e 1991.
Só isto bastaria para nortear minha escolha — afinal, o carro que eu escolhi é o especial de homologação fabricado para que a Lancia pudesse colocar o Delta no Grupo A do WRC.
Em 1987, seu primeiro ano, o HF Integrale tinha um motor de dois litros com turbo, intercooler e 185 cv, que iam para as quatro rodas através da transmissão manual de cinco marchas e três diferenciais. Chegava aos 100 km/h em 6,6 segundos. Um belo carro — mas não seria o que eu escolheria. Este seria um HF Integrale Evoluzione II, com cabeçote de 16 válvulas, injeção multiponto sequencial, 215 cv e a capacidade de chegar aos 100 km/h em 5,7 segundos.
Seu aspecto seria original — carroceria preta, bancos concha Recaro de Alcantara bege (para mim, a melhor combinação), as belas rodas de 16 polegadas com desenho inspirado nos carros de rali, volante Momo forrado com couro. Eu não precisaria de outro carro, afinal é um hatch de quatro portas, do que mais você precisa? Para melhorar, a carroceria foi projetada por Giorgetto Giugiaro, e eu adoraria passar o resto dos meus dias dirigindo um carro desenhado por um mestre. Ah, e ele teria faixas com as cores da Martini Racing, exatamente como o carro abaixo — seria minha maneira de homenagear sua história nas pistas e o FlatOut.
É claro que carros italianos são temperamentais e eu certamente teria alguns problemas com a injeção. Mas este ainda é um carro bastante orgânico, sem muita eletrônica embarcada. Além disso, eu realmente espero viver pelo menos mais 50 anos. Podem me condenar, mas certamente até lá eu já terei feito um engine swap com um motor turbinado mais moderno — obviamente, de origem italiana.
Definitivamente é um cenário hipotético que eu gosto de imaginar: ele trará tudo o que eu preciso para lembrar as coisas que mais gosto em um carro.
Mercedes-Benz 500E W124
Por Leo Contesini
Minha garagem dos sonhos inclui, pelo menos, 12 modelos (outro dia conto pra vocês quais são eles), mas se um dia eu fosse impedido de realizar esse sonho e tivesse que decidir apenas um carro para usar pelo resto da vida, ele seria o lendário Mercedes-Benz 500E. Sim, um sedã de tiozinho (que é o que eu serei dentro de duas décadas) e também um dos maiores sleepers da história do automóvel.
Claro, minha escolha não foi feita pensando apenas no visual conservador. Na verdade isso só deixa tudo mais legal, porque o 500E é a versão “oficial” do lendário 300E AMG “The Hammer”. Sim, oficial porque a AMG ainda não era parte da Mercedes quando esses carros foram criados — ela era mais ou menos o que a Brabus é hoje. Na época, o Classe E W124 tinha opções de motorização que iam de um razoável 2.0 de quatro cilindros ao 3.0 seis-em-linha. Mas a AMG achou que seria uma boa ideia colocar um V8 do Classe S/SL com algumas modificações no cofre do Classe E. Como resultado, o 300E AMG acabou com 360 cv de potência e se tornou um dos carros mais radicais de sua época.
Em 1990, depois do sucesso do 300E AMG — que era vendido nas concessionárias da Mercedes — a fábrica decidiu fazer sua versão oficial do modelo, o 500E. O problema é que as linhas de produção não comportavam mais uma versão do W124, então a Mercedes pediu gentilmente à Porsche que fabricasse o carro para ela. E assim foi feito: o 500E era montado à mão na fábrica da Porsche em Zuffenhausen. Nessa fábrica ele recebia o V8 de cinco litros do 500SL, que também cedia as pinças de quatro pistões e os discos de 300 mm do sistema de freios. Ele tinha apenas quatro lugares — quatro bancos de couro da Recaro com apoios laterais bem altos.
E isso era realmente necessário, porque ele chegava aos 100 km/h em 5,5 segundos e tinha velocidade máxima limitada eletronicamente a 260 km/h. Além disso, ele era bom de curvas, guardadas as proporções. Em relação ao original, ele tinha suspensão 20 mm mais baixa, bitolas 30 mm mais largas, para-lamas alargados e aerodinâmica aperfeiçoada (o coeficiente era 0,25! #chupaPrius!).
Até aqui já temos dois bons motivos para a minha escolha: o visual clássico e o desempenho matador. Os outros motivos são o conforto que um Mercedes de luxo proporciona e a robustez desses carros, que já não é mais a mesma desde meados dos anos 1990. Sabe aquela fama de carros inquebráveis que os carros alemães têm? Esse foi o melhor representante da espécie, na minha modesta opinião. Outro fator pouco conhecido, mas de muita relevância são as peças de reposição: o W124 saiu de linha há exatos 20 anos, mas a Mercedes oferece peças de reposição originais até hoje. Basta fornecer o VIN do carro e fazer o pedido.
Com ele eu poderei me aventurar em circuitos, fazer as longas viagens que eu adoro, dirigir pelas cidades esporadicamente e, principalmente, rodar por aí com um carro elegante e com visual clássico. Eu não poderia querer mais nada de um companheiro de quatro rodas.
E você?
Pronto, estes são os carros que o trio da redação do FlatOut teria para a vida toda. Mas você também vai nos dizer qual seria o seu, não é? Não esqueça de levar em consideração os critérios lá de cima, mas também não pense muito — tira um pouco da graça da coisa. E, claro, nos conte o motivo da sua escolha. A caixa de comentários, como sempre, é toda sua!