De tempos em tempos aparece alguma pesquisa ou teoria afirmando que ter um carro pode ser uma despesa alta demais, e que você poderia economizar um bocado de dinheiro se vendesse seu carro e começasse a usar táxis, ônibus, metrô, bicicleta e uma capa de chuva. A bola da vez é o site “Meu Carro é um Monstro“, que vem conseguindo espaço significativo na mídia com a promessa de calcular a fortuna que seu carro já custou desde que você o comprou. Parece interessante, não?
Mas há alguns problemas nessa história. O primeiro deles não é exatamente um problema, mas é importante que seja esclarecido antes que você faça as contas e ache que tem um monstro comedor de dinheiro na garagem: o site aparentemente faz parte da campanha publicitária de um serviço de compartilhamento de carros. Logo, é possível que haja um certo interesse em fazer você acreditar que está desperdiçando dinheiro por comprar e manter um bem durável caríssimo, porém de muita utilidade.
A ideia é inteligente e bem executada — seria desonesto não mencionar isso, afinal, o sonho de todo anunciante é ter uma campanha que viralize e cause buzz nas redes sociais e mídias em geral. O problema é que apesar de parecer um serviço útil, o site na verdade acaba distorcendo números e dados para reforçar um ponto de vista — nesse caso, de que os carros são “monstros comedores de dinheiro”.
O site “Meu Carro é um Monstro” oferece uma forma fácil, rápida e prática de calcular quanto aquele carro “que você tanto ama” custa por ano, por mês e por dia. Soa atraente não? Então você, dono de um Toyota Prius 2015, orgulhoso de seu carro híbrido de 22 km/l, decide fazer o teste. Tudo começa com três perguntas básicas: ano da compra, ano do carro e modelo em questão.
Toyota Prius 2015, comprado em 2015, ok?
Em seguida, você precisa informar como pagou o carro — mas não pode informar o valor pago pois o site insere o valor fixo baseado na tabela Fipe, o que gera a primeira distorção na conta —, preenchendo o valor da entrada, o valor financiado, o número de parcelas e a taxa de juros do financiamento. Nesse caso hipotético, o Toyota Prius 2015 foi pago à vista.
Repare que logo de cara o site informa que o carro desvalorizou 9,1% nesses dois meses desde a compra — o que, em tese, significa que nesses dois meses de usufruto do econômico Toyota Prius você já perdeu R$ 10.164, pois seu valor de mercado como usado é R$ 101.319. Sim, é a dura realidade: seu carro pode ter 20 km rodados, o simples fato de tê-lo tirado da concessionária já o desvaloriza tão significativamente.
O passo seguinte é a inclusão dos custos de manutenção. Por “manutenção” entenda o custo de propriedade, conservação, reparos e uso. Nesse caso hipotético, o Toyota Prius é licenciado no Acre, que tem uma das menores alíquotas de IPVA do Brasil, 2% sobre o valor do automóvel, ou R$ 2.229,66. O proprietário hipotético é um otimista e não fez seguro do seu Prius, pois roda muito pouco, apenas 1.250 km por mês e se orgulha de rodar, em média, 22 km com um único litro de gasolina. Ele também nunca atrasou uma troca de óleo e não precisa pagar estacionamento. Além disso, o carro é lavado em casa apenas uma vez por mês. Sim, eu sei que parece exagerado, mas logo adiante vocês entenderão o motivo dessa conta impossível.
Então finalmente o site mostra o valor absurdo que você gasta com aquele Toyota Prius que você jurava ser tão econômico: R$ 122.813,15 desde a compra, ou R$ 61.406,58 por mês, ou ainda R$2.046,89. Ao longo de um ano, o site informa que você terá gasto impressionantes R$ 736.878,92. Sim: setecentos e trinta e seis mil, oitocentos e setenta e oito reais e noventa e dois centavos. Quase UM MILHÃO DE REAIS (leia com a voz do Silvio Santos)!
Nesse exato momento você deve estar com uma expressão de incredulidade e surpresa ao mesmo tempo. Como um Toyota Prius, um dos carros mais econômicos do planeta, pode ser considerado um monstro “famoso pela gula” e que “costuma consumir uma fatia considerável dos recursos financeiros de seu proprietário”?
Simples: forçando a barra. Dizem que a estatística nada mais é que a arte de torturar os números até que eles digam a verdade. Outros dizem que números são apenas uma forma de provar o ponto de vista que você deseja.
Será que você realmente gasta quase R$ 800.000 por ano para ter um Prius? Obviamente não. O site chegou a esse número usando uma conta visivelmente equivocada: multiplicando o “custo” mensal de um carro de dois meses pelos 12 meses do ano. Como o valor de compra foi somado às despesas de manutenção e uso e depois dividido por apenas dois meses, o valor anual ficou assim distorcido. E isso não aconteceu apenas por que o carro tem menos de um ano. Isso aconteceu por causa da inclusão do preço do carro como uma despesa. Um automóvel é um patrimônio, um bem durável que, apesar de desvalorizar com o tempo, ainda mantém um valor de revenda significativo no Brasil. Você precisa até incluí-lo na declaração de Imposto de Renda, não é?
O que o site “Meu Carro é um Monstro” fez foi incluir nos gastos o patrimônio adquirido. Ele considera que ao comprar um carro de R$ 100.000 que desvalorizou R$ 25.000, você “gastou” R$ 125.000, quando na verdade o gasto foi apenas o valor R$ 25.000, pois você ainda possui um bem de R$ 75.000. Claro, não dá pra chamar de investimento por que ele desvalorizou (embora ele possa te ajudar a gerar mais dinheiro, o que não vem ao caso agora), mas, na prática, você ainda tem R$ 75.000 no bolso. Ou na garagem.
Repare ainda que seguindo essa fórmula o custo anual diminuirá — ou fica estável — à medida em que o tempo com o carro aumenta, pois o valor da compra é dividido por mais anos. Só que no mundo real quanto menos tempo você ficar com o carro, menos gastará, afinal, ele irá desvalorizar menos. Um carro de R$ 100.000 que desvaloriza R$ 25.000 no primeiro ano e R$ 15.000 no segundo valerá R$ 75.000 ao final de um ano, e R$ 60.000 ao final de dois anos.
Ainda assim, essa “perda”, ou custo, é meramente estatística e seu valor é subjetivo. Qual é o preço da satisfação de ter um carro que você gosta? Qual o preço do conforto, da comodidade e da conveniência de ter um carro à sua disposição na garagem? São fatores imensuráveis, e justamente por isso é difícil racionalizar desta forma proposta pelo site.
Mas não é só isso: há outras duas distorções que levam você a crer que gasta demais com o carro. A primeira é o preço do combustível. O site não informa qual o critério para o cálculo do valor acumulado gasto com combustível — fazendo uma divisão básica do preço pelo volume total, você chegará a um valor que parece ser uma média do período que o carro foi usado, mas qual é essa média? Nacional? Estadual? ANP? Ipea? Instituto Qual? No meu caso, o valor ficou bem acima do que paguei — entre 2010 e 2014 minha gasolina custou entre R$ 2,54 e R$ 2,79 — uma média de R$ 2,66 —, mas a média considerada foi R$ 2,84. São apenas R$ 0,18, que multiplicado pelos 9.009 litros que usei em meu carro representa uma diferença de R$ 1.621.
Ainda sobre o combustível, estacionamento e afins, a conta considera este uma despesa do carro, o que está absolutamente correto em termos financeiros. Mas suponha que você não tenha essa despesa de combustível, estacionamento e IPVA por que não tem um carro. Como você faria para ir de A até B? Como levaria a família para jantar naquele restaurante bacana no outro lado da cidade? Como iria visitar a vovó na cidade vizinha aos domingos? Quanto custaria tudo isso?
(Aqui vale mencionar que táxis, ônibus e metrôs são eficientes em cidades de médio e grande porte, nas metrópoles brasileiras ou ainda em regiões centrais. Para quem mora no subúrbio, em núcleos urbanizados afastados da cidade, ou mesmo em cidades territorialmente grandes, como Ubatuba/SP, Natal/RN, Florianópolis/SC, o uso de táxis e ônibus é bem menos eficiente. E também mais caro. É por isso que nesses lugares o uso do carro é bem mais popularizado que em grandes cidades)
A outra distorção é o gasto com pedágios: o site considera o valor médio dos pedágios paulistas, os mais caros do Brasil ao lado do RJ e ES. Em vários estados as rodovias estaduais não têm pedágios, e as rodovias federais têm pedágios significativamente mais baratos — quase sempre por volta dos R$ 2,00 para veículos de passeio. Mais ainda: os pedágios têm distância mínima entre si, mas isso não é uma regra e, justamente por esse motivo, é difícil mensurar um valor médio.
Por último, a razão de eu ter escolhido um Prius zero km comprado à vista no Acre, sem seguro nem estacionamento foi testar as reais intenções do site. Afinal, sem usar estacionamento pago, sem manutenção corretiva, nem seguro, e rodando, pelo menos 22 km/l, um carro só seria mais econômico se ficasse parado. Mesmo assim, o “Meu Carro é um Monstro” considerou o Prius 2015 com 2.500 km tão gastão quanto meu velho Mercedes-Benz A160 2005 com 150.000 km. Ambos “passando dos limites”.
E eu continuei fazendo simulações com diversos carros e valores hipotéticos: com o Volkswagen up!, que custa bem menos que o Prius e pode chegar aos 20 km/l, com o Honda Civic, que tende a desvalorizar pouco nos primeiros anos e até um Mercedes dos anos 1980, que andou valorizado nos últimos anos. Todos eles foram considerados gastadores e monstruosos. Parece claro que a intenção aqui é apenas mostrar que seu carro é uma praga, e que você deveria trocá-lo por algo mais barato, ou quem sabe pensar em um serviço de compartilhamento — o que de fato pode ser uma boa ideia dependendo do seu estilo de vida.
Carros podem exigir muito dinheiro e é importante saber quanto do seu orçamento familiar está sendo gasto com ele. O Meu Carro é um Monstro tem uma proposta interessante, mas essas inconsistências e distorções (intencionais ou não) matam a credibilidade de uma ferramenta que parecia promissora.