Há algum tempo, quando escrevia uma matéria sobre o custo dos recalls, topei com um dado assustador que me pareceu até mais importante do que o tema da reportagem principal: dos 461 recalls feitos entre 1998 e setembro de 2014, só 6% haviam sido encerrados, ou 28 deles — sendo que um envolveu apenas um carro. Só seis em cada cem! É quase tão ruim quanto a taxa de investigação de assassinatos no Brasil. Com a diferença de que o cumprimento dos chamados é justamente para evitar que pessoas morram em acidentes, ou seja, é medida preventiva, não de remediação.
O sistema de rebatimento do banco do VW Fox podia decepar os dedos de quem o manuseasse. Foram convocados pouco mais de 500 mil carros
Pela lei, é responsabilidade do fabricante tirar do mercado todo risco à segurança dos consumidores. Na prática isso quer dizer duas coisas: a fábrica precisa comprar o carro de volta ou consertá-lo. A picape Pantanal, da Troller, entrou no primeiro caso depois que a marca cearense foi comprada pela Ford. A fabricante identificou risco de trincas no chassi e calculou que não compensava arrumar seus problemas. Como a produção era pequena (somente 77 unidades foram fabricadas) todas elas foram recompradas e destruídas.
Os demais casos de defeitos com riscos aos consumidores registrados no Brasil passaram por campanhas de recall, a convocação dos proprietários para o reparo gratuito do veículo. Acontece que enquanto todos os carros defeituosos de uma convocação não forem consertados, o fabricante não pode dar o recall por encerrado. Sentiu o tamanho da encrenca?
O problema não está apenas do lado dos fabricantes, que são obrigados a consertar carros convocados em 1998 se eles aparecerem hoje na concessionária, mas, principalmente, no mercado de usados e de quem pretende comprá-los. Se somente 6% dos recalls foram encerrados, isso significa que muitos dos veículos usados que estão por aí atualmente têm alguma falha grave de segurança que não foi corrigida. Por que também tem essa: se a falha no produto não ameaçar a vida ou a integridade física do cliente, não é preciso fazer a convocação. Recall é só para quando o bicho pega. E pega pesado.
Mesmo o veterano 147 foi objeto de recall recente, mas de uma fornecedora de peças que poderiam ter sido instaladas no modelo. O recall era do sistema de direção que a SKF fabrica
Escrever essa reportagem deu uma boa mostra dos motivos que levam a um descumprimento tão grande dos chamados. Para começar, não há estatísticas confiáveis sobre o assunto. Procure saber quanto veículos já foram convocados para consertos. A informação não está em nenhum site do governo, nem mesmo no do DPDC. Não é pública.
Tive de recorrer à assessoria de imprensa do departamento para obter os dados de campanhas concluídas. Recorri de novo para tentar descobrir quantas unidades estiveram envolvidas em recalls desde que o Código de Defesa do Consumidor, a lei 8.078, passou a valer, em 1990, mas a assessoria não respondeu até o fechamento deste artigo. Fui caçar os dados e encontrei uma estimativa de 2005 a 2014, obtida pelo jornal “O Globo” junto à Senacom (Secretaria Nacional do Consumidor) e publicada em novembro de 2014.
Até aquele momento, 2014 tinha batido o recorde de unidades em recall: o número chegava a 1,1 milhão de carros precisando de reparos. Pois, perto do final do ano, o pessoal da Autoesporte veio com um novo número: 1.615.152 até 23 de dezembro. Fazendo as contas, imagine que, de 2005 a 2014, 6,5 milhões de carros precisaram de recall no Brasil. Quantos foram reparados? Ninguém sabe dizer, afinal, não há um registro centralizado e unificado.
Um documento na internet, escrito por Rodolfo Alberto Rizzotto, editor do site Estradas.com.br e coordenador do Programa SOS Estradas, afirma que, de 1991 a 2003, data de publicação do documento, foram convocados para reparos outros 4 milhões de veículos, incluídos aí os 1,3 milhão de Chevrolet Corsa e derivados com problema no cinto de segurança, em 2000 — até hoje o maior recall da história brasileira. Ficamos sem os dados de 2004. Mesmo com essa falha, pelo menos 10,5 milhões de veículos deviam ter ido às suas respectivas revendas entre 1991 a 2014 para sanar defeitos que ameaçam a segurança de seus ocupantes. Só 630 mil fizeram isso. Lembre-se de que, como as falhas de cálculo podem ser grandes, este é um número conservador. Foi só o que consegui de referência. E foi pouco.
Falta de informação é o primeiro problema. Não só porque não há estatísticas confiáveis, mas também porque o consumidor fica no escuro. A lei diz que o fabricante deve avisar seus clientes sobre o defeito por carta, internet e por anúncios em meios de grande circulação. Para mandar cartas, as fabricantes precisariam saber o endereço de seus clientes. Muitas não sabem. Tudo porque a maior parte deles foge da rede autorizada assim que a garantia vence, ou às vezes até antes. E esses proprietários vendem o carro ou se mudam sem que as concessionárias fiquem sabendo.
Antes da popularização da internet, os fabricantes usavam anúncios em horários de grande audiência na TV para divulgar a convocação, mas hoje os recalls são muito mais divulgados na internet. E como todo conteúdo de internet, os anúncios acabam tendo vida curta.
O Ministério da Justiça determinou que a Fiat substituísse os cubos de roda do Stilo, que poderiam fazer a roda se desprender do modelo. A marca contestou, dizendo que os cubos eram seguros, mas teve de trocá-los mesmo assim
O segundo é a falta de controle da frota nacional. Não há um cadastro brasileiro de veículos ou integração entre todos os Detran. Caso houvesse, o DPDC poderia entrar em contato diretamente com proprietários de modelos envolvidos em recall. Ou informar aos fabricantes como alertar esses donos de modo eficiente. Não há um controle dos veículos que desaparecem por perda total, roubo, incêndio, abandono ou qualquer outra coisa do tipo. Não existem dados confiáveis sobre o tamanho da frota do país. Há um projeto de lei, o PL 4637, apresentado em outubro de 2012, que bloquearia o licenciamento de veículos com recall pendente. Pois o projeto foi arquivado em janeiro deste ano, desarquivado a pedido de seu autor e agora aguarda aprovação da Comissão de Viação e Transportes para seguir adiante.
O terceiro é a falta de transparência com que as fabricantes tratam do assunto. Boa parte das questionadas se já haviam encerrado os recalls que convocaram não se deram ao trabalho de responder. Talvez porque admitir que ainda há campanhas antigas abertas seria admitir algum tipo de falha de comunicação com os clientes. Ou porque representaria um prejuízo, reavivando a memória de consertos que ficaram esquecidos e que, por isso mesmo, não tiveram custo. Vale lembrar que o recall mais escandaloso do mundo: o do Ford Pinto (abaixo). O carro pegava fogo em colisões traseiras pela localização de seu tanque e do bocal de abastecimento. Durante seu desenvolvimento, foi feito um memorando que dizia que o custo da colocação do bocal em uma posição mais segura, US$ 11 por unidade, tornava mais barato indenizar eventuais vítimas de acidente. Chamam caras como os que fizeram o memorando, nos EUA, de “bean counters”. Provavelmente por episódios assim.
O problema final é o desinteresse do motorista sobre o que ele dirige, mas dá pra entender, sem querer puxar o saco do cidadão brasileiro. O Denatran possui um site que permite consultar se seu automóvel ou aquele que você pretende comprar tem alguma pendência em relação a recalls. É o denatran.serpro.gov.br. Seria uma facilidade daquelas que não permitem justificativa. Seria.
Logo que você acessa o site, ele traz a informação de que roda melhor em Netscape ou Internet Explorer. E em 800 X 600. Se isso não é a demonstração máxima do anacronismo digital, não sei o que seria. Talvez recomendar o uso de Pentium 2 ou superior. Com o IE aberto, você insere o número do chassi do veículo e faz uma verificação por imagem, digitando as letras que aparecem. Por fim, vem a mensagem: “O número de chassi informado não pertence a nenhum recall divulgado pelas montadoras a partir de 17/03/2011. Para períodos anteriores, entre em contato diretamente com o fabricante do veículo.” Por que não reunir tudo no mesmo lugar? Por que não pegar os dados de recalls com os fabricantes, os chassis envolvidos e colocar tudo em apenas um local de consulta?
Os motoristas mais cautelosos certamente ligariam para 0800 da fábrica para conferir se seu carro está em dia com os recalls. Mas e os demais? E aqueles que só fingem que gostam de carros? Bom esses são os que mantêm milhões de veículos com defeito rodando por aí. Entendeu porque nosso trânsito mata cerca de 40 mil pessoas por ano no Brasil? Eu sim.