“O motivo de fazer algo assim? Ora, todo mundo parece fazer carros realmente rápidos hoje em dia, mas nenhum deles é inglês. Eu queria apenas fazer um carro inglês que fosse mais rápido que todos eles.”
John Dodd, o criador desta maluquice maravilhosa sobre rodas, veio a falecer em 2022, aos 90 anos de idade, sem nunca deixar de ser o dono deste carro sensacional. É uma daquelas loucuras que embora não passem disso, uma loucura, transcendeu para muito mais que isso. O excêntrico e ferozmente nacionalista Dodd queria homenagear a indústria inglesa e a Rolls-Royce; acabou processado pela empresa para retirar a grade e o “Spirit of Ecstasy” de seu carro feito em casa. Motor da marca ou não, ela não queria ser associada a esta monstruosidade.
Quando ficamos tão bobos assim? Quando deixamos de levar coisas deste tipo no espírito de brincadeira com que elas foram criadas, a ponto de gastarmos tempo e dinheiro (tanto da empresa quanto dos contribuintes) num tribunal? Processar um cara que fez o próprio Rolls-Royce no seu quintal é como o Corpo de Bombeiros processar uma criança por se fazer passar por um membro da brigada. Não faz sentido algum.
Neste caso, serviu para elevar a fama de Dodd e seu carro, e colocá-lo entre os heróis do povo inglês, que apesar de suas tradições classistas, tem um senso de humor ferino, e adora coisas malucas como todo o negócio do Rolls-Royce “The Beast”. O julgamento de Dodd é um episódio memorável, com todo mundo agindo na maior seriedade e apenas ele, notando a loucura completa de tudo aquilo, fazendo uma piada atrás da outra.
E é esta história que vamos contar hoje; a da besta-fera impossivelmente comprida, feia, inacreditável, e tão forte que, se você abrir o Guiness Book of Records de 1977, verá que era o carro mais potente do mundo naquele ano. E do maluco-beleza que desafiou King and Country por causa dela.
THE BEAST
Nossa história começa no final dos anos 1960, quando o engenheiro inglês Paul Jameson, um entusiasta de carros com motores aeronáuticos, cria um chassi onde monta um motor V12 Rolls-Royce Meteor de 27 litros de deslocamento. O Meteor era um motor usado em tanques de guerra ingleses da segunda guerra até 1964. É na verdade uma versão do famoso motor aeronáutico Merlin, para uso nesse tipo de veículo.
O Merlin V12 dispensa introdução. Usado nos Spitfires, nos Mustang, nos bombardeiros Avro Lancaster e no De Havilland Mosquito, este enorme V12 SOHC de quatro válvulas por cilindro, dois magnetos, 24 velas, e compressor é uma lenda, um dos equipamentos que ajudaram os aliados decisivamente na segunda guerra mundial.
Começou com 1000 cv, e na sua última versão, criada para a evolução do Mosquito, o De Havilland Hornet em 1944, mais de dois mil cavalos vapor. Muitos acreditam ser este V12 de 27 litros a maior contribuição de Sir Henry Royce para a humanidade. Não a sua companhia. Também seria a sua última: morreu em 1933, quando o Merlin nascia.
Mas voltando ao nosso amigo Jameson, para a transmissão do seu novo carro, contata um certo Paul Dodd, especialista em transmissões automáticas. Mas Jameson acaba por ficar sem dinheiro, e acaba vendendo o chassi para Dodd. Era um chassi realmente simples, escada de perfil fechado em caixa, a suspensão dianteira duplo A sobreposto de um pesado sedã Wolseley, e a traseira de Jaguar.
Dodd obviamente resolve dar o passo adiante: criar uma carroceria para o chassi, fazendo dele um veículo usável. A maior parte dos carros deste tipo de carro (que é mais comum do que se imagina) recebe uma carroceria dos anos 1920/1930, com paralamas separados, e radiador proeminente. Mas não era o tipo de coisa que animava nosso herói: ele queria uma carroceria moderna. Moderna para os anos 1970, note.
Enviou o carro para Fibre Glass Repairs, uma empresa que fazia carrocerias de dragster. Usando como base um cupê Ford Capri de arrancada, funny-car, criou um cupê de rua com proporções escandalosas e caricaturais, algo simplesmente incrível de se ver, com seu capô gigantesco e cabininha lá atrás. E, por causa do V12 Meteor, também sapecou nele a sua própria versão de uma grade Rolls-Royce, completa com a estatueta esvoaçante de Eleonor Thorton em cima. Nascia o The Beast mk1.
O carro participava de demonstrações diversas, e Dodd falava sem vergonha que a velocidade de cruzeiro era 200 mph (322 km/h). O carro ficou tão famoso que ganhou patrocínio da BP (British Petroleum), que basicamente pagava as contas de gasolina do monstro. Com declarados 700 cv, a traquitana andava muito bem, mas fazia meio km por cada litro.
Mas de volta de uma viagem/apresentação na Suécia, o carro foi destruído em um incêndio. Dodd, no entanto, viu isso como uma oportunidade de melhorá-lo, em vez de aposentá-lo. Um novo motor foi adquirido – desta vez um Merlin V12, retirado de um aeroplano de treinamento Boulton Paul Balliol. E uma nova carroceria, a que está nele até hoje: uma psicodélica perua. Mas neste ponto, na frente dela ainda estava a grade da Rolls-Royce.
O que é o carro?
THE BEAST recebe esse nome não só por suas proporções monstruosas, mas também pelo enorme Merlin V12. Aqui, o motor é naturalmente aspirado, não superalimentado, e com três Webers duplos gigantes. Especula-se que produza algo em torno de 750 cv, baseado no fato de que, em 1973, o RAC (O Royal Automobile Club inglês) certificou que sua velocidade máxima era de 295 km/h. John Dodd dizia 950 cv, e torque de 105 mkgf.
Sendo um especialista em transmissões automáticas, Dodd fez um câmbio automático de três marchas GM Turbo 400, customizado, que aguentasse o Merlin. O eixo traseiro Jaguar foi trocado por um Currie, de competição de arrancada, americano, bom para mais de 2000 cv.
A suspensão é por dois longos braços inferiores, barra Panhard, e dois Coilovers, como comum em Hot Rods americanos de alta potência. Com boas buchas, localizadores e fixações de alta qualidade e barra Panhard, tudo foi pintado ou revestido a pó. A direção veio de um Austin Westminster, e a suspensão dianteira, continua Wolseley, modificada. Os freios são enormes discos nos quatro cantos.
O carro liga como um avião da segunda guerra. Ou seja, com muitos procedimentos e muito barulho. Muito barulho MESMO. É como um Spitfire, com seis escapamentinhos abertos de cada lado, por algum motivo preso à terra, e ao formato de uma perua maluca. Ainda que escapamento aqui seja apenas duplo, lateral, um de cada lado. Quando liga, literalmente a terra treme.
Apesar do carro ser enorme, o interior não tem muito espaço. É uma perua de dois lugares apenas, o resto do espaço lá atrás um grande porta-malas. Na frente, há dois bancos, um console central largo, milhões de medidores diversos de várias origens, e a alavanca do câmbio auto. O desenho da carroceria… bem, podia ser pior. Chama a atenção, parecendo que um pequeno avião poderia pousar no capô.
Irritando a Rolls-Royce
Desde a época do Beast Mk1, Dodd dizia que sim, o carro era um Rolls-Royce, inglês, e estava registrado no documento como “Personal” Rolls-Royce Coupe. O que nunca deve ter sido deglutido sem engasgos em Crewe.
Mas o que era um incômodo, passou dos limites quando Dodd fez uma viagem para a Alemanha, e deixou um Porsche comendo poeira na Autobahn. O dono do Porsche, um Barão alemão, ligou depois para a Rolls-Royce para indagar sobre seu ‘novo modelo’, um com um capô gigante e que passou por ele como se estivesse parado aos 230 km/h, debaixo de um ensurdecedor barulho de V12. O Barão, parece, queria comprar um.
Não demorou muito, Dodd foi intimado ao “High Court” em Londres, por violação de marca registrada. “Eu fui para as audiências todos os dias, com meu carro, com a grade, e estacionava do lado de fora do tribunal. É claro que não dava para levar aquilo tudo a sério, e eu ria e fazia piada de tudo, causando problemas com o juiz. Na última manhã do julgamento, meu advogado se demitiu, dizendo que eu estava ridicularizando a mais alta corte do país. O último conselho dele foi não voltar com o carro naquele dia, senão seria confiscado e eu nunca mais o teria de volta.”
Se 1000 cv é excessivo e ofensivo, pensou Dodd, vamos fazer diferente então. No dia seguinte, ele, a esposa e os filhos chegaram cada um deles à cavalo no tribunal. Chamou mais atenção que o carro em si, claro. No final das contas, Dodd – que vestiu provocativamente um suéter com o emblema da Rolls-Royce no tribunal – perdeu o caso e, como resultado de suas ‘interjeições’ animadas durante o processo, teve sua casa, e vários outros bens, incluindo um avião bimotor, confiscados por desacato ao tribunal.
No entanto, ele conseguiu manter o ‘The Beast’, que logo recebeu uma grade com suas iniciais. Se mudou para Malaga, no extremo sul da Espanha, onde montou uma oficina de câmbios automáticos, “Caja de Cambios Automaticas”. Começou de novo, teve uma vida longa e boa no sol ibérico, onde “aprendi a praticar windsurf, esqui aquático e fazer todo tipo de outras coisas que nunca teria feito”. Sua besta-fera se tornou uma atração turística da cidade. Dirigiu ele pelo resto da vida, até falecer ano passado.
Em 2008 numa entrevista para a revista EVO, Dodd conta a verdade sobre a lenda do barão alemão, rindo: “O barão era eu mesmo! Apenas me divertindo um pouco. Eu costumava fazer isso com bastante frequência, na verdade. Telefonava para os vendedores com um sotaque engraçado, alemão bem forçado, eu fêr uma está-fica Rolls-Royce a 320 km/h”…
Mas a melhor parte é que, no documento, o carro ainda é um Rolls-Royce. Apesar de todas as batalhas legais, esta é a pequena vingança dos Dodd. O motivo de ainda estar assim? Diz o filho de Dodd, David: “até mesmo a Rolls-Royce sabe que não deve mexer com o DVLA (o “Detran” inglês)”.
O carro agora está de volta a Inglaterra, onde é uma lenda. Para ser vendido; o site de leilão virtual Car & Classic está realizando o leilão online, que vai durar seis dias ainda. Um treco muito estranho, maluco até. Mas com uma história para lá de sensacional.
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