Vá até a Wikipedia e procure os vencedores de provas da Indy, da Fórmula 1, do Mundial de Endurance, do WRC, da Indy ou qualquer categoria do automobilismo mundial. A maioria será de países desenvolvidos como os EUA, Itália, Finlândia, Suécia, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia, Alemanha, França, Holanda, Espanha e Bélgica. Mas também irá encontrar Brasil, México, África do Sul e Argentina no meio dessa turma toda.
São países outrora considerados “subdesenvolvidos”, hoje categorizados como “emergentes”, o que significa que ainda não atingimos o estágio de desenvolvimento sócio-econômico dos países do Norte (e da Austrália/Nova Zelândia). O Brasil e a Argentina especificamente, são um caso à parte.
Na Fórmula 1, o Brasil é o terceiro maior de todos, atrás de Grã-Bretanha e Alemanha, enquanto a Argentina é o quarto país com mais títulos e o décimo com mais vitórias. Em Le Mans, a Argentina é o único país emergente ao lado do México a ter vencido a corrida de 24 horas. Na Indy é o Brasil quem domina, atrás apenas dos EUA e Grã-Bretanha. No WRC os argentinos têm mais pilotos e até vitórias nos 50 anos do campeonato. Os dois são parte da elite do automobilismo, indiscutivelmente.
Esse status só foi possível com uma cena local razoavelmente forte. Os dois países têm em comum uma indústria automobilística forte que, no princípio, fomentou o esporte motorizado e deu origem a uma cultura da qual surgiram tantos pilotos. Uma cultura que, antes de conquistar o mundo, teve uma base sólida localmente — muito baseada na inventividade e nas soluções locais, como era comum na época.
O resultado é um universo próprio de carros, equipes, corridas, ícones, histórias e lendas. Pense nas carreteras, no Carcará, no DKW de fibra, no Karman-Ghia Porsche, no Fusca de dois motores dos irmãos Fittipaldi. A Argentina também tem os seus — vide os IKA Torino preparados por Oreste Berta que foram à Misión Argentina em Nürburgring. E hoje vamos conhecer mais um ícone argentino: o Huayra.
Evidentemente não se trata do Pagani Huayra — obra do argentino Horacio Pagani —, mas do Huayra Pronello Ford, um esporte-protótipo do final dos anos 1960 equipado com um motor Ford V8 e que, segundo os relatos locais, tinha coeficiente aerodinâmico 0,22.
Esta história foi compartilhada conosco pelo engenheiro argentino Darío Bakus, fundador e editor do site Targa Sport, onde foi publicada originalmente com texto de Jorge Scarpitta:
O Huayra Pronello Ford
É um dos carros mais bem-sucedidos em termos de aerodinâmica, projetado na Argentina para o Sport Protótipo por um dos engenheiros mais famosos do automobilismo argentino, Heriberto Pronello. Em 1967, Pronello trabalhou junto com Oreste Berta na equipe oficial da IKA para a Turismo Carretera, projetando os Torinos e os Liebres que conquistaram o título daquele ano.
Apesar do título, quando a Renault comprou as ações da IKA naquele mesmo ano, os franceses decidiram encerrar a divisão de competições da empresa. Berta e Pronello deixaram a IKA e seguiram caminhos distintos no automobilismo argentino.
O primeiro, fundou a Oreste Berta S.A., a mesma empresa que existe até hoje e que fez o Maverick Berta da Equipe Hollywood e os motores da Copa de Marcas no Brasil. Pronello, por sua vez, foi contratado pela Ford para desenvolver uma dupla de carros para a Turismo Carretera e para a nova categoria Sport Prototipo.
Pronello já vinha desenvolvendo seu protótipo desde 1966, mas com os esforços da equipe concentrados nos Torinos e nos Liebres, o projeto precisou esperar. A ida de Pronello para a Ford era a chance de torná-lo realidade.
O projeto deu origem a dois carros: o Halcón Ford F100, que disputaria a Turismo Carretera, e o Huayra Ford F100, para a Sport Prototipo.
O Huayra foi construído em um chassi tubular com carroceria de fibra de vidro criada a partir de um molde de gesso. O motor era um V8 292 usado na picape Ford F-100, equipado com quatro carburadores Weber 48-48. Inicialmente tinha 270 hp, mas, ao longo de 1969, chegou a 320 hp. Suas formas foram testadas no túnel de vento da Fábrica Militar de Aviões, em Córdoba, com um modelo em escala 1:5. Os testes indicaram coeficiente aerodinâmico 0,22 — uma marca expressiva até mesmo hoje em dia.
Com a aerodinâmica avançada, baixo peso e um motor potente, o Huayra era constantemente o mais rápido nas provas que disputou, porém ele nunca conseguiu bons resultados devido à falta de confiabilidade do motor.
Sua única vitória aconteceu em 22 de junho de 1969, na cidade de Rafaela. Naquele dia, o carro de Heriberto Pronello atingiu velocidades superiores a 300 km/h com Carlos Pascualini ao volante — que também obteve um segundo lugar na competição de 30 de novembro de 1969 na corrida de Magiolo.
Apesar da falta de confiabilidade do carro, a Ford manteve o contrato com Pronello para 1970. O novo regulamento permitiu a redução da altura dos carros, o que favorecia o Huayra com sua aerodinâmica já avançada. Pronello converteu o Huayra em um spider, reduzindo a altura do carro de 1,10 metro para apenas 85 cm.
Além da remoção do teto, a aerodinâmica foi modificada com novas entradas de ar para arrefecimento dos freios, o que reduziu sua área frontal. Por último, a traseira alongada do carro original foi substituída por uma mais curta, agora com uma asa.
A preparação do motor passou a ser feita pelo próprio Pronello, que reprojetou o bloco do motor e os cabeçotes, e substituiu o virabrequim original de plano cruzado por um de plano simples. Apesar do aumento da potência para cerca de 345 hp, durante a corrida o carro sofria perda de potência. Após várias etapas do campeonato, Pronello descobriu que o problema estava no sistema de arrefecimento. Quando o problema foi resolvido, o campeonato estava praticamente terminado e o contrato com a Ford chegou ao fim.
O Huayra ainda teria uma terceira versão, que seria projetada para 1971. Naquele ano a Ford encerrou o contrato, mas concedeu o orçamento a Pronello para que ele continuasse desenvolvendo o motor. A ideia era começar o ano com o projeto original, com motor dianteiro, e substituí-lo mais tarde por um novo carro com motor traseiro estrutural. O conjunto de chassi e motor chegou a ser desenvolvido, porém sem mais recursos, ele acabou abandonado.
A história do Huayra Pronello Ford guarda alguma semelhança com vários projetos do mesmo tipo brasileiros, como o Fitti-Porsche, que foi desenvolvido na mesma época e tinha as mesmas qualidades e defeitos, com uma confiabilidade inversamente proporcional ao seu excelente desempenho.
Diferentemente do Fitti-Porsche, contudo, o Huayra foi preservado e neste ano será levado ao Reino Unido para participar do Goodwood Festival of Speed, e também para ser testado no Catesby Tunnel, um antigo túnel ferroviário britânico que foi transformado em túnel de vento para testes de veículos.
A intenção dos antigomobilistas argentinos, dentre os quais está o ex-engenheiro da Williams e da Brabham Sergio Rinland, é refazer o cálculo do coeficiente aerodinâmico do carro usando as técnicas modernas de medição.
Para conhecer mais sobre a cultura automobilística argentina e o antigomobilismo local, não deixe de visitar o site Targa Sport — em breve teremos novidades em parceria com o site. Agradecemos especialmente ao Darío Bakus pela colaboração com a história do carro.