Há alguns dias, um vídeo bem interessante tem circulado pelas redes sociais, mostrando um motor monocilíndrico com cabeçote transparente em pleno funcionamento. E mais: o vídeo foi capturado usando uma câmera capaz de registrar imagens em até 4.000 quadros por segundo, permitindo que a gente observe todo o processo em ultra slow motion – 150 vezes mais lento do que o normal.
O resultado estético é mesmo impressionante – ver em detalhes o combustível sendo admitido para dentro da câmara, explodir e se transformar em gases que saem pelo sistema de escape é mesmo incrível. Mas, mais do que isto, o vídeo tem muito valor didático: ele mostra os quatro tempos do ciclo de combustão e outros conceitos que são mais difíceis de se compreender observando diagramas estáticos ou lendo explicações, por mais detalhadas que sejam.
Vamos conferir juntos e, depois, partimos para as explicações.
Trata-se de um motor monocilíndrico da Briggs & Straton, empresa especializada em motores a combustão de baixo deslocamento, para atuar como geradores ou mover cortadores de grama e outros equipamentos. A peculiaridade que tornou possível este vídeo é o fato de ser um flathead – ou seja: as válvulas ficam na lateral do bloco, ao lado dos cilindros. No vídeo o apresentador o chama de L-head que é um outro nome para esse tipo de motor, derivado de sua arquitetura: o formato do cilindro e da câmara de combustão formam uma letra “L” de cabeça para baixo.
Com isto, em vez de abrigar o trem de válvulas, o cabeçote é, em essência, uma tampa na qual ficam a câmara de combustão e o assentamento da vela. Foi isto que tornou possível a substituição do cabeçote por uma placa espessa de acrílico, que nos deixa ver toda a ação que acontece dentro do motor.
A primeira coisa que vale a pena observar são os quatro tempos (ou fases, o estágios) deste ciclo de combustão – o Ciclo Otto. Primeiro vem o ciclo de admissão, no qual a válvula de admissão se abre e deixa que a mistura ar-combustível entre na câmara. Neste ciclo, o pistão desce para comportar a mistura, e é possível ver isto acontecendo entre 1:36 e 1:40 do vídeo.
A fase de compressão acontece logo em seguida: pistão sobe (1:41 a 1:42), comprimindo a mistura (e nisso o virabrequim dá sua primeira volta completa. Logo em seguida, a centelha é disparada pela vela e a mistura comprimida entra em combustão (1:42 a 1:45), empurrando o pistão para baixo novamente. Nesta hora é que o espetáculo visual acontece, de fato – é possível ver as chamas se alastrando ao longo de toda a câmara e desaparecendo à medida em que só vão ficando os gases queimados.
Nesta parte, repare também como a centelha de ignição é disparada pelo distribuidor pouco antes do PMS (ponto morto superior, o ponto mais alto que o pistão atinge quando sobe). É isso o que chamamos de “avanço de ponto”: quantos graus do virabrequim a ignição está “avançada” em relação ao PMS. Este avanço é necessário para obter maior eficiência devido ao tempo de queima da mistura ar-combustível, como é possível conferir em ultra slow motion. Diferentemente de uma explosão, que libera energia de forma quase instantânea, a combustão tem uma queima progressiva. Se a centelha fosse disparada no instante que o pistão chega ao PMS, quando a combustão estivesse completa o pistão já estaria descendo.
Note na captura de tela abaixo que o pistão ainda não chegou ao seu PMS quando a centelha é disparada…
… e que, quando ele finalmente chega ao PMS (aqui ficando alinhado com o topo do bloco), a mistura já está inflamada:
Depois da combustão/expansão ocorre a fase da exaustão: o virabrequim completa sua segunda volta e o pistão sobe novamente, desta vez expulsando pela válvula de escape os gases queimados (de 1:46 a 1:48). Então, começa tudo outra vez.
Nessa fase é possível observar melhor o avanço do ponto de ignição, quando centelha é disparada sem ar-combustível na câmara e não há fogo encobrindo o pistão. Se você está se perguntando a razão de uma centelha na fase de exaustão, é porque este motor usa um sistema de “centelha perdida”, que é uma ignição sincronizada pelo virabrequim e mais simples de sincronizar. Em motores com controle eletrônico de ignição, é possível controlar a centelha com muito mais precisão – permitindo, por exemplo, uma sequência de duas centelhas em tempo curtíssimo, o que otimiza a queima do combustível.
No vídeo também podemos ver como o combustível é admitido pelo motor. Nos carburados ou motores com injeção indireta (monoponto ou multiponto), o combustível é despejado no coletor de admissão ou antes da borboleta. Quem “puxa” a mistura para dentro da câmara, além da gravidade, é o vácuo gerado pela descida do pistão na fase de admissão. É exatamente o mesmo princípio do enchimento de uma seringa.
Em um segundo teste o motor também é abastecido com álcool 91%, cuja combustão em câmera lenta e mostrada a partir do minuto 2:40. Na verdade, é bem difícil ver qualquer combustão pois o apresentador do vídeo acrescentou um grande volume de álcool, enriquecendo a mistura. É isso o que se chama popularmente de “afogar o motor”: há tanto combustível e tão pouco comburente (ar) que a combustão não acontece.
É por isso também que os carros movidos a etanol liberam o combustível pelo escape na fase fria do motor: o sistema de injeção eletrônica enriquece a mistura devido à baixa vaporização em temperaturas baixas e o combustível não queimado sai pela válvula de escape exatamente como no vídeo.
Além disso, a experiência com álcool exibe também uma situação de “calço hidráulico”, que é quando os cilindros são preenchidos por algum fluido líquido e o pistão o comprime. O problema é que líquidos não se comprimem (são fluidos incompressíveis), e por isso formam uma resistência ao movimento do conjunto virabrequim-biela-pistão. Na maioria dos casos você termina com uma biela quebrada, mas aqui é essa situação que trinca a tampa de acrílico. No final, o motor fica parecendo o interior de uma máquina de lavar.
Por fim, o motor é alimentado com acetileno – um combustível bastante volátil que costuma ser usado em lâmpadas e lampiões a gás, e é muito comum para soldagem. Sua queima produz uma chama mais intensa, e também muito mais fuligem — como se vê saindo pela porta de escape. A fuligem é causada pela mistura igualmente rica (o motor está sem carburador) e exibe duas situações: uma excelente visualização do fluxo do fluxo dos gases de escape na fase de exaustão (a partir de 5:00) e também como acontece a tal carbonização do motor. Parte da carbonização é formada por estas partículas de fuligem quando impregnadas nas partes internas do motor.
Fascinante, não?