Para que serve um quadro? Por que pessoas pagam centenas de milhares ou até milhões de reais por uma pintura, mesmo que ela não seja bonita — ao menos não no sentido tradicional da palavra? A resposta é curta, uma palavra só: arte. Mas será que o mesmo se aplica a uma Ferrari stanced?
Antes que você ache que estamos divagando demais, vamos colocar um pouco de contexto na coisa toda. Há poucos dias, espalhou-se pela Internet um álbum de fotos com uma Ferrari modificada. Até aí tudo bem, carros de todas as marcas e modelos são modificados, fotografados, filmados e expostos na web todos os dias, às toneladas. A gente já se acostumou com isto, e muita gente vive disso — nós, inclusive. Só que o carro em questão é uma Ferrari 348 rebaixada ao estilo stance. E isto muda tudo.
A gente sabe que a definição de stance, no mundo automotivo, é a postura de um carro, conferida pelo desenho da carroceria, pela geometria da suspensão e pelo conjunto de rodas e pneus. Um carro de corrida, com para-lamas e rodas largas, pneus gordos e alguns centímetros separando a borracha das bordas dos pára-lamas tem stance diferente do de um carro popular ou de um utilitário usado em trilhas, mas todos têm a sua postura.
No entanto, nos últimos anos, o termo stance passou a ser cada vez mais usado para referir-se a uma vertente específica de entusiastas. Seus gostos incluem (mas não estão restritos a) suspensão baixa, que pode ser fixa ou usar sistemas ajustáveis como bolsas de ar ou coilovers; rodas largas, com bordas proeminentes; pneus mais estreitos que as rodas, ficando com as paredes esticadas (stretched) e cambagem absurdamente negativa. São modificações que, utilizadas na medida certa, são funcionais — rodas e pneus mais largos e cambagem negativa podem melhorar a aderência, bem como rodas mais largas; e suspensão mais baixa e firme pode deixar o carro mais afiado dinamicamente.
Acontece que, na busca do visual perfeito — ou mais radical, ainda que imperfeito —, a galera do stance não se importa em limitar, ou mesmo abrir mão da funcionalidade de certos elementos de seus carros. Tudo para alcançar a estética desejada. Não é raro que se modifique a carroceria do carro a fim de ajustá-lo às novas configurações. E há quem leve esta empreitada ao extremo, a ponto de alterar partes importantes da estrutura do carro, como longarinas, arcos de roda e para-lamas, sem se importar com as consequências.
Mas a gente não está aqui para criticar gratuitamente, e sim para tentar… entender esta Ferrari.
Para quem não lembra, a Ferrari 348 não é exatamente a mais querida das criações de Maranello. Ela foi lançada em 1989 e vendida até 1995 e, quanto a seu posicionamento na linha, ocupava o espaço que hoje pertence à 488 GTB. A diferença é que a 348 foi bastante criticada por sua dirigibilidade (a avaliação da Car and Driver gringa na época do lançamento dizia que seu comportamento dinâmico era “imperdoável”) e pelo desempenho do motor V8 de 3,4 litros, que era suficiente para levá-la até os 100 km/h em 5,6 segundos, com máxima de 275 km/h. Até mesmo o próprio Luca di Montezemolo, ex-presidente da companhia, disse em 2011 ao jornal britânico The Telegraph que a 348 não era uma boa Ferrari e já a chamou de “máquina de m*rda que só faz barulho e não se move”. E ainda foi confirmado por Niki Lauda.
Em 1:09: “una macchina di merda, che fa rumore e non si muove”
Isto justifica transformar a 348 em um carro que, por causa do stance, não consegue sair do lugar sem um sistema de suspensão ajustável (olhe como as rodas encostam nos para-lamas)? Do ponto de vista prático, bem… não. Uma Ferrari, por “pior” que seja, ainda é uma Ferrari. Ela tem um motor V8 central-traseiro, dois lugares e perfil em forma de cunha e foi feita para acelerar.
Foi um trabalho bem feito? Aparentemente sim. Os responsáveis são uma oficina japonesa chamada FERS.cru (sim, é um nome esquisito) e, pelo que dá para ver no álbum do carro no Facebook, o carro pertence a outro grupo de entusiastas japoneses chamados Slacker’s Haunt. Os para-lamas foram refeitos, bem como o para-choque traseiro, e parece que agora a 348 tem suspensão a ar (ou seja, pode ser levantada para permitir que o carro se mova).
Agora… não foi a primeira vez que alguém modificou uma Ferrari para fins de estética; temos incontáveis exemplos aqui mesmo no FlatOut, como a 458 Italia “Nyan Cat” do DJ Deadmau5 ou as F40 exclusivas do Sultão do Brunei e, no fim das contas, cada um faz o que quer com seu próprio carro, não é? Só é preciso ter disposição para enfrentar as consequências — que, claro, incluem críticas, como em tudo o que qualquer pessoa pode fazer.
O que nos traz de volta à questão inicial, sobre a arte. Quem curte carros adora falar de função sobre forma, mas a função da arte é, de certo modo, a forma. Formas diferentes agradam pessoas diferentes.
Eu teria esta obra do pintor surrealista espanhol Salvador Dalí na sala da minha casa. Você, talvez não. E tudo bem!
Você pode não considerar que o trabalho de alterar toda a suspensão e a carroceria de uma Ferrari 348 com o propósito de satisfazer certas preferências estéticas — que, como sabemos muito bem, variam de pessoa para pessoa e de grupo para grupo — é arte. Mas há muita gente que acha que é arte, sim, e não somos nós quem vai convencê-los do contrário. Nem você, nem ninguém.
Tudo isso dito, não podemos esquecer um ponto essencial: antes de tudo, tudo mesmo, um carro é um veículo e, por definição, deve ser capaz de andar. Um carro que, transformado em “arte”, não consegue mais andar direito, é diferente de uma pintura ou escultura que foi criada com o único propósito de ser arte. E também é diferente da arte de modificar um carro para torná-lo ainda melhor no que ele foi feito para fazer. É mesmo difícil de entender.