Em 1948 Preston Tucker tentou transformar em realidade seu sonho de construir um carro revolucionário, que reunia soluções inovadoras e tinha potencial para tornar seus contemporâneos obsoletos a partir do momento em que fosse colocado à venda. Até mesmo a forma de financiar a fábrica era inédita. Mas tamanha inovação também foi a ruína deste visionário.
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Ao tentar viabilizar a produção do carro Preston Tucker acabou processado por fraude – primeiro, por dizer que um carro que ainda nem havia saído do projeto era “o carro do ano”, e depois por vender acessórios para este mesmo carro a centenas de clientes que jamais viriam a receber seus automóveis. Há quem diga que Tucker foi tão ousado em seu projeto, que prometeu algo que não podia cumprir.
O processo contra Preston Tucker acabou arquivado, mas com a reputação incinerada, ele teve que fechar a fábrica e encerrar a realização de seu carro dos sonhos depois de produzir apenas 36 unidades. Outros 15 carros já iniciados foram finalizados, o que elevou a produção total a 51 carros. Hoje, 70 anos depois, eles estão em museus e coleções particulares espalhadas pelo planeta — e um deles está no Brasil, a menos de 150 km de São Paulo.
O Tucker Brasileiro
O Tucker paulista é o chassis 1035, o 35º dos 51 carros fabricados em 1948. Originalmente na cor Maroon (o nosso “grená”), ele chegou ao Brasil entre o final de 1948 e início de 1949, segundo conta a excelente matéria divida em 15 edições publicada pela principal publicação de automóveis antigos no Brasil, a revista “Classic Show”.
O único Tucker zero-quilômetro a sair dos EUA fora trazido pelas mãos de um então jovem empreendedor que também tinha um sonho: estar envolvido com automóveis. Seu nome era Jaime Gantmanis.
Após circular RJ e SP para promoção da marca o Tucker foi rifado por algumas vezes, até que caiu nas mãos da família Fiadi, a qual vendeu o carro ao senhor Joseph Molitor em 1952. Ele era um entusiasta dos barcos de corrida, e chegou também a fabricar um automóvel fora-de-série com base de Oldsmobile, que acabou na coleção da família Marx nos anos 70 (mas isto é outra história).
A certa altura Molitor pintou o Tucker com duas cores: o teto ficou na tonalidade castanha original e o corpo ganhou um tom azul celeste. Com esta configuração ele embarcou o Tucker em uma viagem a passeio pela Europa (várias fotos originais desta viagem foram publicadas nas páginas da “Classic Show”).
Por volta de 1955, Molitor comprou um Cadillac Series 62 ano 1947, e acabou usando toda a sua mecânica e chassis para equipar o Tucker. O motor original do Tucker foi parar em um barco de corrida! Já com esta configuração e pintado na cor preto Cadillac, o Tucker foi colocado à venda em uma loja de automóveis usados na Av. São João em São Paulo, onde atraía a curiosidade de todos que por ali passavam. Apesar de ser um carro vistoso, nenhum dos admiradores foi corajoso o bastante para levar o carro para casa.
Depois de um ano ele foi arrematado por um comerciante de calçados chamado Agop Toulekian em 1956, sendo dado como pagamento de uma casa ao senhor Orlando Bombarda em 1959, que o vendeu a Eduardo Matarazzo em 1963. Matarazzo era cunhado do colecionador Roberto Lee, que comprou dele o Tucker em um lote com outro dez Cadillac.
A Chegada ao Museu de Roberto Lee
Roberto Lee comprou o Tucker interessado na mecânica Cadillac. Ele a usaria como doadora de peças para seus vários modelos da marca americana mantendo-a no galpão de peças, longe dos olhos de todos que visitavam o museu durante toda a década de 1960.
Foi somente em 1973 que o Tucker começou a ganhar certo destaque internacional: Lee, correspondendo-se com vários americanos, percebeu que aquele “patinho feio” (como ele próprio se referia ao carro) era algo especial, dada a enorme curiosidade de entusiastas americanos que não acreditavam que havia um Tucker no Brasil. Foi assim que, no começo dos anos 70, Roberto Lee colocou o Tucker #1035 em uma vaga no cantinho do Museu (atrás do Mercedes-Benz 500K Spezial Cabriolet “A” e ao lado da Cadillac Fleetwood 1937), onde permaneceu por mais quase cinco décadas até ser recuperado e levado ao Centro Cultural Natalli, junto com os demais automóveis do acervo
Alma de Cadillac Series 62 1947
Por baixo de toda carroceria do Tucker está um chassi completo (mecânica, diferencial, câmbio, freios etc…) e painel do Cadillac Series 62 de 1947. A Cadillac, como vocês sabem, é a marca de luxo da General Motors, e naquela época era a marca de luxo mais famosa em terras brasileiras. O modelo em questão contava com um motor V8 Flathead 346, que desenvolvia 150 hp, um número excelente para a época.
Para a instalação do conjunto Cadillac na carroceria Tucker foram feitas alterações estruturais que alteraram o visual do carro — caso dos pára-choques dianteiros, que têm três frisos inexistentes no modelo original. As caixas de ar sob as portas foram totalmente refeitas para sustentar a carroceria do Tucker. Atualmente, há somente dois carros fora dos EUA: o exemplar brasileiro e outro que foi comprado por um colecionador do Japão nos anos 80/90.
Coincidentemente, o motor original do Tucker foi encontrado por Eduardo Matarazzo no mesmo barco de corridas do senhor Molitor nos anos 60, e atualmente guardado no acervo da família em Bebedouro/SP.
O Museu Roberto Lee
Após anos de abandono, o Museu Paulista de Antiguidades Mecânicas (MPAM), fundado por Roberto Lee, e desde 1963 no município de Caçapava/SP, parece retomar um bom rumo. O MPAM foi oficialmente fechado no começo da década de 1990, e o acervo foi doado à Prefeitura Municipal de Caçapava em 2010, após um acordo firmado entre o poder público municipal e a filha de Roberto Lee, Mariângela.
Desde então, houve duas tentativas de reabertura do acervo. Na primeira os carros foram retirados do local original do museu, onde sofreram com as ações do tempo e de vândalos, tendo várias peças importantes roubadas. Vale lembrar que, com a morte do Roberto Lee, em 1975, vários carros em comodato foram retirados por seus proprietários, caso do Rolls Royce Silver Ghost 1921 e do Renault 1906, por exemplo. Em 1986, Dino Weiss foi o responsável pelo maior desfalque ao museu: comprou de Mariângela e sua mãe, Maria Pia, 40 automóveis do acervo — praticamente todos os modelos mais raros e relevantes —, enquanto alguns carros por restaurar foram roubados e cedidos a Eduardo Matarazzo, cunhado de Lee, para que os recuperassem (estes últimos ficaram na fazenda da família Matarazzo, em Santa Rosa do Viterbo/SP.
Com a situação cada vez mais precária, em 2010 foi feito um levantamento do acervo por uma comissão presidida pelo então presidente do Clube de Autos Antigos de Taubaté. Este levantamento teve uma série de erros, como anos de fabricação errados, marcas mal identificadas e uma contagem total de apenas 27 automóveis no acervo. Exemplares importantes como o Delage D6-75 sequer foram listados porque a comissão simplesmente não conhecia o modelo.
Em dezembro de 2010, a imprensa regional e alguns antigomobilistas do Vale do Paraíba foram convidados pela Prefeitura Municipal de Caçapava/SP para um Coquetel de reabertura do MPAM. Naquela ocasião, o “Alfa Romeo da Helenice” (na verdade um Fiat de corrida com grade de Alfa — mas isto é uma outra história) e um Buick Special Sedan 1938 estiveram expostos no Centro Cultural Natali, local aonde todo o acervo acabou transferido e permanece guardado até hoje, mostrando que a administração pública iria recuperar todo o acervo recebido como doação.
Na segunda tentativa, realizada em 2013, a qual deve seu bom sucesso nacional na comoção causada entre colecionadores e entusiastas, houve como emblemática a doação (por comodato) de vários veículos militares e o retorno (também por comodato) de alguns carros importantes que já fizeram parte do acervo, como o Hispano-Suiza Speedster 1911, guardado por Mariângela Lee, e o Nash Advanced Six 464 Limousine 1929, comprado pelo colecionador Roberto Martins do próprio Lee no começo dos anos 1970. Infelizmente, esta segunda tentativa não vingou por motivos políticos, apesar do entusiasmo e belíssimo trabalho feito pelo seu então curador Marcello Belatos.
Atualmente, o MPAM tenta se reerguer com um novo aliado: Luis Gustavo Cabett, que é diretor regional da Federação Brasileira de Veículos Antigos (FBVA). Cabett é um antigomobilista reconhecido nacionalmente, e está legalmente investido como gestor do MPAM, contando muito com o apoio da atual gestão da Prefeitura de Caçapava, liderada pelo prefeito Fernando Diniz. Isso possibilitou a reabertura oficial do MPAM para ao público depois de quase três décadas. Segundo Cabett, o projeto foi “uma questão muito defendida” pelo atual secretário de cultura de Capaçava, sr. Fabrício Correia, que vê no MPAM “uma grande oportunidade cultural para o município”, reconhecido oficialmente pelo Governo Federal com o título de “Capital Nacional do Automóvel Antigo”.
O Flatout foi convidado por Cabett para uma visita e, acompanhados por colecionadores da região do Vale do Paraíba, tivemos acesso irrestrito a todos veículos que restaram no acervo. Recebidos por Cabett, tivemos a chance de conhecer e fotografar os automóveis do acervo em todos seus detalhes. Na visita fomos acompanhados de Guilherme Gomes e João Simonetti, dois colecionadores herdeiros do legado de dois expressivos colecionadores do interior de MG e SP, respectivamente — Guilherme é filho de Haroldo Ancieto, de Brazópolis/MG, e João é filho de Paulo Simonetti, um dos sócios-fundadores do Clube de Autos Antigos de Taubaté, o CAAT) — e mantêm os sites “Antigos Verde e Amarelo” e “O Senhor Automóvel”.
Durante a conversa com os dois amigos, escolhemos três automóveis do acervo para trazer em detalhes ao FlatOut: o Alfa Romeo RL 1923 com carroceria torpedo assinada pelo estúdio italiano Castagna, que é a única sobrevivente no mundo; o Packard Deluxe Eight 903 com carroceria Roadster 1932; e, claro, o famoso Tucker Torpedo 1948, que é o carro mais emblemático do acervo para atual geração entusiasta de automóveis clássicos e a materialização da história do MPAM, como o Juliano descreveu muito bem em suas impressões sobre o exemplar:
“Estar frente a frente com o Tucker de Roberto Lee traz um misto de sabores contrastantes. Primeiro, sem dúvida, uma dose massiva de reverência e sorte. Por ter o prestígio de poder encaixar a lente ao corpo da minha câmera e registrar este fragmento duplamente histórico: um dos colecionáveis mais raros e revolucionários do mundo que pertenceu a um dos colecionadores mais importantes de nossa história. Um restaurador de Ferrari residente nos EUA, cujo nome me fugiu, certa vez afirmou que os carros antigos ficam e continuam contando histórias além das vidas de quem os possuiu. Pensar nisso enquanto olho para estes três faróis me fazem pensar que este Tucker irá passar por incontáveis gerações além da minha.
A receita de sabores contém alguns traços de ironia, por justamente aquele carro que ele mesmo não via grande apreço num primeiro momento ser um dos principais destaques de seu acervo hoje. E fatias de alegria e de tristeza misturadas: se é triste pensar como as circunstâncias passadas levaram o acervo ao atual estado, é comovente e contagiante testemunhar o esforço de antigomobilistas como aqueles presentes naquela abafada tarde de domingo, motivados por tão somente a paixão pela pátina e a história.
É curioso pensar que todos os percalços tão sofridos do Tucker de Lee acabaram, por si, também se transformar em uma terceira história paralela. O que vemos diante de nossos olhos conta todos os capítulos à sua maneira. Pele aqui presente, mas com esqueleto e músculos de Cadillac e coração morando distante. Suas portas não abrem como deviam, os painéis de carroceria carecem de alinhamento. Os frisos estão opacos, desalinhados, sofridos. Tão modificado e refeito ao longo dos anos, jamais se enquadra como um survivor como normalmente antigomobilistas descrevem os barn finds. O survivor deste Tucker é a sobrevivência existencial: ele representa como o acervo de Lee teimou em continuar existindo, mesmo com tudo jogando contra. Mas agora, as coisas irão mudar. Nada como as mãos certas na hora certa.”
Esta história do Tucker brasileiro é a primeira de uma série de três publicações sobre automóveis do acervo do MPAM. Agradecemos ao sr. Luis Gustavo Cabett pela oportunidade de examinarmos em detalhes este mito da indústria automobilística mundial. O MPAM está aberto ao público mediante agendamento prévio pelo telefone (12) 3652-9222. O endereço é Av. Dr. José de Moura Resende, 475 – Vera Cruz, Caçapava/SP.
Fotos: Juliano Barata, João Simonetti, Veteran Car Club-RJ e Guilherme Gomes