O quadro FlatOut Classics se dedica ao antigomobilismo e aos neocolecionáveis (youngtimers) estrangeiros e nacionais, dos anos 20 ao começo dos anos 2000. Carros originais ou preparados ao estilo da época.
São matérias especiais, feitas para serem saboreadas como as das clássicas revistas que amamos.
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Um projeto para enganar o tempo
“Tempo, tempo… o que é o tempo? Os suíços o fabricam, os franceses o acumulam. Os italianos o desperdiçam, e os indianos dizem que ele não existe. O que eu digo? Digo que o tempo é um trapaceiro.” – Julius O’Hara (Peter Lorre), em “O Diabo Riu por Último”
O tempo é mesmo um trapaceiro. Um dia você tem de sobra, no outro lhe resta pouco. Esse é o grande truque do tempo: ele se entrega intensamente a todos nós — tão intensamente que parece não ter fim —, mas fica sempre por aí, sendo consumido constantemente sem parar e sem avisar. O tempo sobra, você não se importa em desperdiçá-lo. Pouco a pouco ele se torna escasso e, por mais que você se recuse a aceitar, a realidade é que não pode simplesmente voltar com uma sacola e recuperar o que você deixou pelo caminho. Muito legal, sr. Tempo. Obrigado por não avisar que seria assim.
Esta é uma história sobre o tempo, porque ela é uma daquelas histórias de pais e filhos — e não há nada que simbolize tão bem o significado do tempo quanto pais e filhos.
Ela começa com Luiz Carlos, o pai. Um entusiasta dos nossos, proprietário dos esportivos mais legais que se podia ter nos anos 1980, um Puma GTS e um Miura Targa, e frequentador assíduo dos encontros de carros de todos os tipos. E o nascimento de seu filho Denis significou que ele teria um mais companheiro para os encontros.
Foi assim que Denis herdou do pai o gosto pelos carros. No banco do passageiro de um Alfa Romeo 164 ou de um Alfa Romeo 156, ele acompanhava o pai, aprendia sobre os carros e aprendia a gostar daquelas máquinas maravilhosas. Um certo dia de 2014, Denis decidiram levar a um novo patamar a paixão comum por automóveis. Eles iriam construir um carro.
Vamos construir um carro do zero
No começo a ideia era “construir” no sentido de comprar um carro antigo e restaurar, ou então fazer uma preparação completa. Mas os dois também compartilhavam outra característica em comum: ambos tinham uma grande experiência com construção de máquinas industriais. E por fazer disso o sustento da família eles tinham uma extensa variedade de ferramental, que poderia ser utilizado no projeto. Sendo assim, por que não construir um carro do zero?
Um dia, já com a ideia na cabeça, Denis encontrou o projeto do chassi do Lamborghini Diablo feito por uma empresa americana que desmontou um Diablo original para reproduzi-lo. Foi quando a ideia começou a se tornar realidade. Denis encontrou uma fabricante de carrocerias de fibra de vidro que, por acaso, tinha os moldes do Lamborghini e propôs o projeto — que, claro, foi aceito por Luiz Carlos.
Agora, o projeto não surgiu do nada. Algo que Denis propôs porque acordou inspirado numa manhã de quinta-feira. A verdadeira razão para o projeto era uma corrida contra o tempo. Luiz Carlos descobrira um câncer em 2010, que evoluiu para uma metástase incurável em 2013. Os papéis se invertem e Denis — entusiasta por influência do pai — propõe o projeto.
O projeto
Com o fornecedor encontrado e o ferramental à plena disposição, Denis e Luiz compraram os tubos e seguiram o projeto americano à risca — ao menos o chassi, porque os componentes agregados tiveram de ser adaptados.
No Diablo, por exemplo, as mangas de eixo são do Corvette (apesar de a Lamborghini pertencer à Chrysler na época). Na réplica de Denis e Luiz elas são da S10 e usam buchas de Chevette na traseira. O motor e o câmbio foram escolhidos a esmo: o V6 2.8 de 30 válvulas da Audi (e seu câmbio manual original) entraram em cena simplesmente por causa do ronco e por ter 30 válvulas.
A caixa de direção veio de um Santana, enquanto a coluna de direção saiu de um Alfa Romeo 164 — assim como no Diablo original, pasmem. A barra estabilizadora é a mesma do Opala. Os freios são Brembo vindos do Lancer Evo 9, com pinças de quatro pistões na dianteira e dois na traseira. Já a máquina de vidro elétrico é do Celta, mas adaptada para a janela do Diablo. Tudo foi coletado de acordo com suas dimensões e capacidades para que o carro pudesse ficar o mais confiável possível.
Outros componentes, contudo, precisaram ser construídos do zero. Todos os braços de suspensão, por exemplo. Por dentro, o painel foi moldado em fibra e o quadro de instrumentos foi feito mesmo de fibra de carbono. Os vidros foram feitos sob medida de acordo com os moldes originais, enquanto a face traseira foi construída pela dupla.
Agora, olhe para os instrumentos e note que eles têm a marca da Lamborghini. Isso, porque Denis conseguiu comprar um conjunto completo do Lamborghini Countach — sim, eles são originais, assim como os faróis de Nissan 300ZX, os mesmos usados no Diablo.
“Vencemos”
O projeto levou cinco longos anos até que fosse finalmente licenciado e pudesse ser colocado nas ruas e nas pistas. Em 2018 carro andou pela primeira vez nas ruas de Londrina. Luiz Carlos usava o carro quase que diariamente. No ano seguinte, o Diablo seguiu para o autódromo local, onde Denis acelerou o Diablo livremente, apesar de o motor ainda não estar bem acertado, enquanto seu pai o assistia do paddock pois não pôde pilotar naquele dia.
“Foram muitas noites até madrugada planejando, construindo, reconstruindo, várias lágrimas e alguns dedos cortados, tudo para que meu pai pudesse curtir o carro”, conta Denis. Em agosto de 2020, pouco tempo depois do track day, Luiz sucumbiu à doença.
“O real motivo de querermos fazer uma coisa legal juntos, era devido ao seu câncer avançando, e queríamos deixar algo pra memória, todo o trabalho e cansaço para feito nesse carro valeu a pena, pois vi meu pai feliz e realizado com algo que construimos”, conta Denis, que mantém vivo o legado de seu pai tanto na vida profissional, quanto neste Schiavon Diablo, o carro que os dois construíram juntos.
Após a partida do pai, Denis concluiu a instalação do supercharger Eaton TVS R1320 de um Audi A7 3.0, que produz 0,7 bar de pressão e elevou a potência do V6 para cerca de 295 cv. Era algo que seu pai quis fazer, mas não teve tempo. “Eu agradeço à vida por ter me dado a oportunidade de ter construído e curtido o carro com ele ao lado”, explica. “Hoje mais do que algo legal, é uma memória tangível, mostrando que ele ainda está comigo”, completa.
“Ele ainda está comigo”. Uma frase no presente para falar sobre alguém que está no passado. Denis é um pouco do seu pai, como são todos os filhos. Alguns na aparência, outros na personalidade. Alguns na forma de pensar, outros na forma de agir e outros ainda exercendo o mesmo ofício. E todos carregando a herança genética e cultural. É o que os filhos fazem por nós. Eles nos levam adiante mesmo quando o nosso tempo acaba. Luiz Carlos se foi, mas continua aqui. Denis e o Diablo são um pouco dele. Os filhos, no fim das contas, são o nosso jeito de trapacear o tempo.