Uma bola de golfe, o vértice do teto de um Mitsubishi Lancer Evo VIII MR e a carenagem de um Fórmula 1 possuem mais em comum do que o senso comum possa apontar. Todos possuem uma enorme necessidade de reduzir o arrasto aerodinâmico e ordenar o fluxo de ar em sua volta – e mais do que isso, fazem uso da mesma técnica para conseguir este benefício: os geradores de vórtices, ou vortex generators.
Trata-se de um dos itens de performance mais mal compreendidos do meio automotivo porque o seu entendimento exige uma série de outros conhecimentos conceituais de dinâmica dos fluidos. Felizmente, você, caro leitor, já passou pela essência da coisa em nossa matéria com a análise aerodinâmica do novo Ford GT e basta um sopro extra para captar a coisa.
Contudo, antes de falarmos dos geradores de vórtices vamos dar uma rápida repassada nos conceitos de camada-limite e arrasto aerodinâmico para não deixarmos nenhuma dúvida turbulenta – caso tudo esteja bem ventilado em sua cabeça, pule para o tópico seguinte.
Recapitulando: camada-limite e o fluxo de ar
Embora seja invisível, o ar é um fluido viscoso, não um espaço vazio. É fácil entendermos que um carro em velocidade enfrenta resistência exponencial ao movimento imposta por este fluido, mas o que muita gente não se dá conta é que, sendo um fluido viscoso, o ar escoa e uma fina camada se adere na superfície do objeto, como um filme de óleo ou mel.
Por causa da viscosidade, este fluido escoando bem colado na carroceria interage com o corpo e fica quase estático, com uma velocidade muito menor que o fluido escoando alguns milímetros acima – e assim por diante. Então, não apenas visualize o ar como fluido, mas visualize este fluido escoando na carroceria como várias camadas sobrepostas em degradê, todas em contato uma com a outra como se fossem páginas viscosas de um livro. Quanto mais próximo da carroceria, mais lenta a velocidade do ar, então existem forças de cisalhamento entre estas “páginas” – há fricção e influência mútua. Logicamente, a partir de certa altura em relação ao corpo a influência da carroceria em relação à velocidade do fluido fica mínima.
Camada-limite é o nome desta região onde a bagunça ocorre. É onde há a adesão do fluido ao corpo, sua consequente desaceleração pela adesão viscosa e a notória fricção entre as camadas de ar por diferença de velocidade. Guarde isso: os geradores de vórtices irão atuar na região da camada-limite mais próxima da superfície do objeto.
Num carro, dentre as várias causas que fazem a camada-limite perder adesão e descolar da superfície da carroceria, a principal é a transição muito repentina de uma região de fluxo de alta velocidade (e em decorrência, de baixa pressão) para uma de baixa velocidade (e em decorrência, de alta pressão). Como o fim do teto ou a traseirona de um carro, regiões que são ainda mais sensíveis por ficarem muito pra trás da superfície do objeto – o fluxo da camada-limite já chega ali com baixa energia, deixando a diferença de velocidade para a corrente de ar acima dela ainda maior, se descolando ainda mais facilmente.
Lembre-se de que há diferença de velocidade entre as lâminas de ar dentro da camada limite (ilustração acima). É a fricção causada por esta diferença de velocidade que faz as lâminas “tropeçarem” de cima pra baixo e enrolarem entre si, perdendo ainda mais velocidade e, no pior dos casos, formando uma grande zona de perturbação aerodinâmica cumulativa que gera um turbilhão, um entrelaçado que fica pendurado para muito atrás do corpo na área conhecida como “esteira aerodinâmica”. Essa massa de ar lenta (lembre-se que o fluido é viscoso e há adesão e interação inclusive entre suas camadas, como um grande novelo) é arrastada pelo veículo e aumenta a resistência ao movimento. Eis o arrasto – veja as imagens abaixo.
Nos pontos 1 há um ganho de pressão e redução de velocidade do fluxo. Mas bem menos grave que nos pontos 2.
Para se combater a separação da camada-limite e reduzir o arrasto há duas saídas: ter uma silhueta de gota, que transforme em um gradiente bem sutil a transição de alta velocidade/energia para baixa. Ou então aumentar a energia e a velocidade do fluxo de ar da própria camada-limite, que é quase estática em sua região mais próxima à superfície (imagem abaixo). Como fazer isso? É aí que entram os geradores de vórtice.
A função dos geradores de vórtice
Sendo o ar um fluido viscoso que se adere ao corpo, um gerador de vórtice não consegue alterar esta propriedade física. O que ele faz, contudo, é alterar a interação entre os fluxos de ar lento da camada-limite e o rápido da corrente de ar livre. Como? Ele causa uma perturbação aerodinâmica em miniatura que transforma o fluxo da camada-limite mais próximo ao corpo (fluxo que é quase estático) em vórtices, micro-turbulências ordenadas, como se fossem canudos ou bolinhas de gude girando, deixando-o bem mais rápido e energizado. Com menos fricção e diferença de velocidade entre a corrente de ar livre (na imagem acima, superior à linha branca) e a camada-limite colada à carroceria, a separação de fluxo da camada-limite é postergada, ocorrendo mais para trás do corpo e em menor escala.
É essencial entender que esta fina camada-limite com vórtices ordenados é algo bem diferente de turbulência desordenada arrastada atrás do corpo, esta última causado pela separação da camada-limite em si. A primeira é benéfica porque diminui a fricção entre o corpo e o fluxo de ar, de forma análoga aos roletes de um rolamento (veja o vídeo abaixo aos 10 s para visualizar a mecânica). A última é ruim porque é o arrasto, aquele enorme turbilhão aerodinâmico emaranhado para trás do corpo e que cria resistência ao movimento. São coisas bem diferentes, embora da mesma natureza.
O exemplo dos roletes é excelente para entendermos como que a bola de golfe apresenta menos arrasto aerodinâmico que uma perfeitamente esférica. Na bola de golfe, os roletes do rolamento são representados pelos pequenos turbilhões formados por cada concavidade na superfície da bola – que são geradores de vórtices. Estes turbilhões apresentam menos fricção com a corrente de ar livre que uma camada-limite estática, que é o que aconteceria numa bola perfeitamente esférica. Com isso, o fluxo de ar contornando a bola sofre menos desaceleração, a separação de camada-limite atrás da bola é mais suave e há menos arrasto.
A aplicação mais famosa dos geradores de vórtice é a asa dos aviões. Ao produzir um fluxo de ar mais veloz e com menos fricção aerodinâmica na asa, há menos ruído, vibrações e a sustentação aerodinâmica ganha mais fôlego em condições críticas, como ângulos de ataque agudos e velocidades mais baixas. Como a ilustração mostra, há diversos tipos de geradores – que irão produzir diferentes perfis e extensões de vórtices, mas todos com o mesmo objetivo básico: postergar a separação da camada-limite.
No meio dos carros, a aplicação mais conhecida dos geradores de vórtices está na traseira do teto do Mitsubishi Lancer Evo VIII MR. Como vimos na primeira parte deste post, a região de “queda” formada pelo vigia e pela tampa traseira é crítica para o fluxo aerodinâmico e é a grande responsável pela formação do arrasto aerodinâmico nos automóveis, muito mais do que uma dianteira chapada.
Os geradores de vórtices aqui executam duas funções: (1) alimentar a porção inferior da asa com um fluxo de ar mais limpo, menos turbulento (note no gráfico a ausência do fluxo verde na seta 1) e portanto mais veloz e (2) reduzir o arrasto aerodinâmico formato pelo vigia e pelo corte da traseira. Com isso, o EVO VIII MR ganhou um pouco mais de velocidade final e ainda extraiu 5% a mais de downforce do aerofólio traseiro. Nada mal! Na última foto acima, note como as fitas só assumem padrão caótico após a tampa traseira: a missão do gerador de vórtice – postergar a separação de camada-limite – foi cumprida.
A caráter experimental, o site gringo Autospeed instalou geradores de vórtices na mesma posição do LanEvo, começando com quatro e depois passando para seis e oito unidades. O resultado é facilmente visualizável. A pequena turbulência que afeta as fitinhas dos cantos inferiores pode ter origem no fluxo aerodinâmico da coluna C.
Como vimos no post na análise aerodinâmica do novo Ford GT, muitos veículos do passado empregaram caudas longas e silhuetas de gota na traseira buscando reduzir o arrasto aerodinâmico, mas isso trazia uma série de pênaltis relacionados à inércia (pense no efeito-martelo de uma cauda destas numa curva de alta) e ao centro de pressão aerodinâmica. Os geradores de vórtice trazem a habilidade de se controlar a separação da camada-limite sem precisar alterar a silhueta do veículo.
Quando se leva ao limite o poder dos geradores de vórtices, chega-se automaticamente ao mundo da Fórmula 1. Winglets, barbataninhas e pequenos canais todos possuem a mesma função: gerar vórtices, limpando, ordenando, dificultando a separação da camada-limite e, em alguns casos, direcionando o fluxo de ar para outras zonas de interesse.