Não há como começar esta história de outro jeito, então vamos começar pelo resultado final: nenhum outro carro foi campeão do WRC tantas vezes quanto o Lancia Delta. Foram 46 vitórias e seis títulos no Campeonato Mundial de Rali e, como se não bastasse, foram todos em seguida – de 1987 a 1992. Como a Lancia conseguiu? Veremos.
O ano de 1987 foi o primeiro do WRC depois da extinção do Grupo B, o que significa que todos aqueles bólidos insanos com motor central-traseiro e potência não declarada de até 800 cv eram parte de um passado que, ao menos naquele ano, talvez ficasse melhor esquecido. Foram muitos acidentes e fatalidades, entre pilotos e espectadores, e a FIA decidiu que o melhor era voltar a impor limites para a preparação e a concepção dos carros.
Mas você acha que, com isto, o rali ficou chato? Se sim, você está enganado, e o Delta é uma das maiores provas disso. Como já contamos aqui, quando falamos sobre o modelo de rua feito para homologar o carro de rali, o Delta foi lançado em 1979 e usava a mesma plataforma do Fiat Ritmo que, por sua vez, é o antecessor do nosso Tipo.
E, talvez, quando a Lancia colocou o Delta no mercado, não imaginasse que precisaria dele para competir nos ralis – afinal, em 1979 o WRC ainda usava as regras do Grupo 4 e o carro dos italianos era o Stratos (que, você já deve ter visto, perdeu para o Fiat 131 Abarth, o outro carro dos italianos). Só que, quando o Grupo B foi extinto e deu lugar ao Grupo A, em 1986, já não havia mais Stratos, nem 037, e muito menos a versão melhorada do 037 — o Delta S4, que de Delta só tinha o nome e as linhas gerais da carroceria. Vamos falar dele mais adiante.
O jeito foi usar o Delta de verdade para a temporada de 1987 — e, bem, o resultado não poderia ter sido melhor. De verdade: estamos falando aqui de um hexacampeão de uma das categorias mais desafiadoras de todos os tempos, que exigia demais de carros e pilotos, e ele ainda conseguiu ser melhor que todos os outros seis vezes seguidas! Há que se dar crédito, não é?
Mas chega de superlativos e vamos aos fatos. A FIA havia determinado que os carros do WRC deveriam voltar a ser baseados nos modelos de rua, e o mais apto de todos era o Delta — seu porte, a suspensão independente do tipo McPherson nas quatro rodas (com braços de controle inferiores na traseira) e o fato de ser um carro bem sucedido nas vendas, já com oito anos de mercado, não tornaram a decisão muito difícil.
Obviamente o carro precisava de algumas modificações – afinal, era um hatch com motor transversal e tração dianteira, configuração já ultrapassada havia mais de uma década nos estágios de rali, ainda que seja até hoje a mais usada em carros de passeio. Por sorte, a Lancia não era inexperiente e, com as histórias do Fulvia, do Stratos e do 037 no currículo, os engenheiros sabiam exatamente o que fazer.
A base foi o Delta HF 4WD, versão esportiva lançada em 1986, equipada com um motor de dois litros com comando duplo no cabeçote, mas ainda com oito válvulas — exatamente aquele projetado por Aurelio Lampredi, e que leva seu sobrenome. No hatch de rua, a potência era de 165 cv e o torque, de 29,1 mkgf, que apareciam a baixas 2.750 rpm — na versão de competição, chegava perto dos 300 cv.
Seu maior trunfo, porém, não era o motor, e sim o sistema de tração integral com três diferenciais que, normalmente, dividia o torque em 56% para o eixo dianteiro e 44% para o eixo traseiro mas, dependendo das condições, podia mandar até 70% da força para as rodas traseiras. Com isto o Delta conseguiu desempenho inigualável na sua temporada de inauguração — e ainda deu origem a 5.298 exemplares de rua para homologação (o mínimo era de 5.000).
Naquele ano, os pilotos da Lancia eram Massimo Biasion, Juha Kankkunen e Markku Alén. Juntos, eles venceram nove das 13 etapas da temporada, culminando em uma vitória tripla no Rali Olympus, uma das poucas provas disputadas nos EUA. Sejamos francos, porém: naquele ano, todas as outras equipes de fábrica estavam em desvantagem – a BMW, novata na categoria, tinha o M3; a Ford tinha o Sierra, que não era muito potente e também tinha tração traseira; e marcas como a Opel e a Renault ainda apostavam na tração dianteira. A verdade é que, antes mesmo de a temporada começar, o clima na Lancia já era de vitória, algo que se confirmou com louvor.
No ano seguinte as coisas ficariam um pouco mais complicadas — a Audi esboçou uma reação como Quattro e problemas no câmbio atrapalharam o desempenho dos italianos nas primeiras etapas. Contudo, a Lancia tinha uma nova arma: o primeiro Lancia Delta HF Integrale, que corrigia algumas falhas importantes do carro anterior: as caixas de roda eram alargadas para permitir pneus maiores e maior curso da suspensão (que recebeu novo acerto), além de freios maiores e um motor ainda mais potente, com cabeçote retrabalhado e um novo sistema de injeção eletrônica.
Com o novo carro, que rendeu outra série especial de homologação — agora com 185 cv —, a Lancia dominou a temporada novamente. Ao lado do Delta 4WD, que ainda foi usado esporadicamente e conseguiu uma dobradinha em Monte Carlo, o Integrale faturou duas vitórias triplas e, com 140 pontos contra 79 da Ford, a segunda colocada, conquistou o segundo título em sequência para a Lancia, enquanto o italiano Miki Biasion levantava pela primeira vez a taça do mundial de pilotos. Em 1989, foi quase a mesma coisa — com a diferença de que a Toyota chegou mais perto do título com o Celica. No mais, foi outro ano de glória dupla para os italianos. Já estava começando a perder a graça, mas a Lancia queria mais. E quem não iria?
Sendo assim, ainda em 1989, no Rali de Sanremo, na Itália, estreou uma novidade: o Delta Integrale 16v que, como o nome dizia, ganhou um cabeçote de 16 válvulas e um aumento substancial na potência — fala-se em 365 cv! E, pela primeira e última vez, sua pintura Martini Racing era vermelha, e não branca.
A esta altura, você já deve ter sacado que a Lancia levou outro título. Desta vez, porém, Carlos Sainz ficou com o título de pilotos pela Toyota, ao volante do Celica GT-Four e as disputas começaram a ficar mais emocionantes, com os japoneses dividindo o pódio ao lado dos italianos em quase todas as etapas, que foram bem acirradas.
O ano de 1991 foi ainda mais disputado, com Lancia e Toyota se alternando na liderança ponto a ponto. A temporada foi decidida no Rali RAC, no Reino Unido — Carlos Sainz, da equipe japonesa, só não venceu porque a junta do cabeçote não aguentou o tranco. Juha Kankkunen ficou com o título de pilotos e, pela terceira vez, a Lancia tinha motivos em dobro para comemorar.
Vendo que as coisas não seriam mais tão fáceis dali adiante, a Lancia resolveu tirar uma última carta da manga: o Delta Integrale Evoluzione, com 10 cv a mais, suspensão revisada e carroceria ainda mais larga (e imponente) para acomodar as bitolas maiores. Deu certo: o francês Didier Auriol foi o herói da temporada, vencendo seis etapas e dividindo, quase sempre, o pódio com os outros pilotos da Lancia: Kankkunen, o argentino Jorge Recalde, o também francês Philippe Bugalski e o italiano Andrea Aghini.
No total, a Lancia acumulou 140 pontos, contra 116 da vice-campeã, a Toyota de Carlos Sainz e garantindo seu sexto e último título no WRC. Sainz ficaria com a taça dos pilotos, mas isto não diminuiu nem um pouco o tamanho da conquista da Lancia — afinal, vamos repetir pela última vez, foram seis triunfos em seis anos, algo que jamais se repetiu.
O próprio Sainz chegou a correr pela Lancia no ano seguinte, em uma admitida preparação para assumir um lugar na Subaru em 1994. Mas esta história, vocês já sabem, fica para uma próxima.