FlatOut!
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Car Culture Pensatas

O que nos move

Por que você gosta tanto de carro?

Certamente você já teve de responder a esta pergunta. E fatalmente a resposta saiu engasopada como um motor preparado aspirado a etanol na fase fria. Existe resposta pra isso? Ou há experiências e sentimentos que sequer precisam caber em palavras, bastando ser vividas?

Em algum momento da vida, a lucidez vai surgindo. Felicidade é um fragmento, uma cápsula, um breve lampejo de conforto que interrompe uma massa em sua maioria composta de material obscuro. Você deve olhar o copo meio cheio apenas para manter sua cabeça erguida, porque a verdade é que raramente há tanta água assim. Para se levantar a cada pancada, a cada leão que você precisa matar no dia a dia, a cada faca que você precisa tirar das costas. Nós acordamos e lutamos todo dia para termos mais destes bons fragmentos, cápsulas, lampejos. E, com sorte, conseguimos uma boa frequência deles.

Uma chave na mão. Você já conhece a textura do banco, do volante, do pomo do câmbio. Como o seu tênis velho favorito da escola, você o veste, pois já está moldado ao seu corpo. Cada som e vibração, cada carga de acionamento necessária, tudo já está impresso em sua memória muscular e sensitiva como se fosse parte de você – de forma que qualquer estranheza é detectada pelo seu subconsciente imediatamente.

O carro é uma plataforma, uma tela em branco – ou, como dizia Graham Hill, o pincel. Daqui em diante, cada um de nós pinta de uma forma: um passeio bucólico no fim de semana, ou investindo horas na pista para buscar perder míseras fatias de segundo, ou um encontro de posto de gasolina com outros loucos como nós, ou momentos solitários ou bem acompanhados na garagem, construindo, desconstruindo. Refazendo, errando e aprendendo pela arte do aperfeiçoamento.

A tela em branco sequer precisa existir para a arte ser criada: quantos não sonham acordados, vendo vídeos, pesquisando catálogos, sites de classificados e fazendo builds imaginários, rabiscando em cadernos e telas de computador sketches e montagens do sonho? Acelerando virtualmente em circuitos de todo o mundo? Fazendo autódromos delimitados com cartas de baralho, narrando corridas com miniaturas? Se entediando em papos de festa, enquanto sua mente viaja com roncos, reduções de marcha e pontos de tangência?

Apenas uma coisa costura do piloto profissional ao colecionador antigomobilista ao entusiasta fora-da-lei ao adolescente sonhador. Quando a viseira se abaixa, o perfume do couro gasto é inalado, a luz verde se acende ou a projeção é feita nos sonhos, você é levado para outro lugar – onde você é um ser livre. Os problemas da vida são abandonados para trás. Talvez seja isso o que nos move.

Não é um privilégio apenas nosso. Músicos, pintores, fãs de cinema, de literatura, atores, artistas, o consumo e a vivência da arte de forma geral é o combustível destes deslocamentos espaço-temporais. Cronotopo. Com a gente, é parecido, mas há uma diferença: com o carro, você é literalmente deslocado no espaço e, de forma relativa, no tempo. Quem não ama, simplesmente não entende. E nem precisa. É um prazer e um problema nosso.

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Como toda máquina, eles vão quebrar. Quanto mais antigo e mais fuçado, mais problemas. Mas nossa cumplicidade com a sua falibilidade mecânica está sempre lá. Vinicius de Moraes disse que o uísque é o melhor amigo do homem, o cachorro engarrafado. Para nós, há também uma versão de lata, couro e borracha.

Nós, loucos, nos reconhecemos. Sim, todos aqui possuem um amigo – ou muitos – que surgiu pelo simples reconhecimento da causa em comum. Também nos desentendemos, especialmente quando julgamos os outros. Quando sobra ego e falta maturidade. No fim, acaba sendo um simulacro da própria vida: aqui, a massa obscura é feita de quebras mecânicas, de vendedores mal-intencionados, de gente falando mal de você ou de seu carro às suas costas. Mas a cápsula de bons momentos está à sua disposição e a média deles é infinitamente maior do que no dia a dia.

E as boas surpresas da vida. Quando a união, o companheirismo e a camaradagem surgem espontaneamente, do nada. Quando você tem um sonho, que mobiliza gente que sequer se conhece e que voluntariamente trabalha para que você o veja de pé. Mesmo que, por alguma razão, sua corrida tenha se encerrado muito antes da bandeira quadriculada.

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Caro Cláudio, esta é a Ford Belina Del Rey com V8 central-traseiro dos seus sonhos. Foi projetada com máxima dedicação pelo designer Victor Bravo, com muitas referências ao Shelby GT350, ao GT40 e aos carros da Turismo 5000. Eu sei que você está aí todo acelerado pra pegar as chaves das minhas mãos, mas antes preciso te dar alguns toques pra você não fazer bobagem na pista. Fiz um breve shakedown com ela, decidimos mudar uma ou outra coisa nos ajustes pra esse primeiro estágio, mas mesmo assim está um carro que morde, e muito. Vamos começar pelo o que interessa, não é?

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Nas suas costas há um berço estrutural que abraça um V8 302 Windsor 4.9 que é parecido, mas não é exatamente aquele de Maverick. Trata-se de um motor de Ford GT40 1969, equipe de John Wyer, com quatro parafusos por mancal, cabeçotes Gurney-Weslake refluxados com válvulas 2,03″ na admissão e 1,62″ de escape, dutos imensos, comparáveis aos do Boss 302, e um quatrilho de Weber 48 IDA conectadas a um air box, que capta ar fresco das entradas de ar laterais. Pra esse primeiro estágio, optamos por um comando de válvulas mecânico bravo, que vai te gerar algo próximo a 510 cv a 7.800 rpm – quase 800 rpm mais que os carros de corrida da época. É um motor girador e compacto. Colocamos os radiadores lá na frente. O Victor projetou um capô parecido com o do GT40, com sistema de escoamento aerodinâmico por cima. Quase um milagre pra um Ford V8 small block, mas a temperatura está estável em todas as condições de abuso!

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Pra ajudar na distribuição de peso, optamos por plexiglass em todo o conjunto traseiro. A tampa traseira e o capô são de fibra de vidro, as portas são de lata e foram aliviadas com a remoção da chapa interna. Os coletores de escape do tipo bundle of snakes ficaram uma obra de arte, são quase iguais aos do GT40. Falando em arte, por conta das saídas de escapamento, o Victor fez um para-choque traseiro inteiramente novo, com a placa deslocada para baixo. O assoalho está quase inteiro selado, agacha aí pra ver. O que você não vai ver tão facilmente são todas as soldas que foram adicionadas ao monobloco nas junções das chapas com as longarinas. Stitch welding, dude!

Para o dia em que você se acostumar a 510 cv nessa encrenca e realmente estiver tirando todo o suco do conjunto, temos aqui um monstro dentro de uma caixa. Outro 302. Mas essas 302 polegadas foram obtidas com um bloco moderno, de alumínio: o diâmetro dos cilindros é muito maior e as bielas são imensas de longas. É um short stroke. Parece carburado, mas é um conjunto de injeção da Inglese (foto abaixo). Comando roletado. Não vou dizer a potência, mas vou te dar um número e te confirmar uma coisa: 9.000 rpm… e substancialmente mais que os 650 cv que você idealizou no começo. O torque máximo está só 1.400 rpm abaixo. Deixa esse pra um dia, ok? Talvez ele precise de um redimensionamento completo do conjunto dinâmico, começando com um diferencial de relação curta. Nesse motor aí, se você chamar uma redução de marcha um átimo antes da hora, você vai ter muito pedaço de motor no colo.

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A gente não tinha muita opção à mão em termos de transmissão. Colocamos um transeixo ZF de cinco velocidades do De Tomaso Pantera. O trambulador é um pouco duro, troque as marchas com paciência e precisão. É, a embreagem está muito dura. Vamos adotar um sistema hidráulico depois. Depois do shakedown, optei por deixar o diferencial sem bloqueio neste primeiro momento. O carro estava muito arisco de traseira após o ponto de tangência. Estou encomendando com a Quaife um autoblocante que vamos instalar na próxima parada. Até lá, é melhor você pegar a mão com um conjunto mais tolerante.

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A Belina ganhou quase 30 cm de bitolas com os alargadores. Cuidado na hora de acelerar em piso ruim, Cláudio, o chão tá comandando muito no sistema de direção por efeito alavanca depois que alargamos tudo. Os pneus slick vintage Avon FlatOut Series dão bastante aviso, mas cuidado quando estiverem frios, especialmente com a travagem de rodas. Botamos freios Girling por uma questão histórica. Eles estão segurando a onda, mas a proporção de potência para aceleração e frenagem está totalmente off, nunca se esqueça disso. As rodas Halibrand de 15″ não permitiram discos maiores do que 280 mm. Pode pisar com vontade nos freios, o peso está 59% atrás. No total, 970 quilos. O sistema de direção é do Mustang II. Bandejas custom made com braços em duplo A reguláveis na frente e atrás, amortecedores Öhlins.

Depois do shakedown, chegamos em dois ajustes de geometria e carga de suspensão: o ideal pra performance e o mais seguro. Comecemos por este último, com menos cáster, zerado de divergência, apenas 1,5 negativo de cambagem na dianteira e um grau negativo atrás, e dianteira um pouco amarrada com carga extra nos amortecedores. O ajuste ideal deixa o carro neutro nas curvas longas, mas isso é uma experiência bem assustadora quando você tem tanto torque ao pé direito.

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De forma geral, cara, você vai sentir o carro estranho. Carro antigo de motor central-traseiro é assim mesmo. Na entrada de curva a frente não aponta, você vai precisar refinar sua técnica de trail braking e usar um pouquinho de pressão no freio até chegar no ponto de tangência. E dali pra frente, a traseira vai querer virar ao contrário com qualquer cutucada a mais no acelerador. Ela tem só 2,43 m de entre-eixos, só dois centímetros mais que o GT40.

Você vai xingar muito nas primeiras horas de vôo, mas aposto que estes xingamentos vão sair no meio de várias gargalhadas. Aos poucos, tudo vai fazer sentido. E não se preocupe com qualquer problema que acontecer com o carro. Conte com nossa lealdade para trazer paz para o que for.

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Nossos mais profundos agradecimentos à toda comunidade de leitores Flatouters e em especial ao designer Victor Bravo (confira o site e curta a sua fanpage) pela homenagem e a projeção do sonho do querido leitor Cláudio, que infelizmente não está mais entre nós. A Síndrome do Pânico é um transtorno de ansiedade que gera ataques de medo extremos e desproporcionais ao contexto – mas que são extremamente reais e ameaçadores para quem sofre desta condição. Profissionais da área afirmam que o tratamento mais efetivo combina medicamentos e terapia comportamental. Aos amigos e parentes de quem está ao lado de alguém nesta condição, é importante buscar orientação profissional e ter clareza para o equilíbrio entre não pormenorizar o pânico e não deixar de incentivar a pessoa a manter uma vida ativa.