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100 anos da GM Brasil: O MAO lembra de seus Opalas

Hoje, para começar nossa pequena homenagem aos 100 anos da GM, resolvemos republicar a sensacional história do MAO (e seu avô) e os Opalas que marcaram sua vida. O objetivo aqui é, hoje, ao invés de listar a história empresarial da GM do Brasil, tentar contar um pouco de como os seus produtos se tornaram importantes para os brasileiros de uma forma mais pessoal; uma história não só de carros, mas de gente.

Uma forma de começar a homenagem aos 100 anos de GM do Brasil que planejamos aqui: uma que, numa série de reportagens, pretende contar tudo de grande (e de pequeno) que a empresa já fez aqui no país. Uma série do tipo que só o assinante do FlatOut tem! Aguardem!

Esta matéria aqui saiu originalmente em 16 de setembro de 2021 como parte do conteúdo diário de nosso site, restrito para assinantes, mas agora está aberta a todos, para que vocês conheçam um pouco deste vasto conteúdo. Se você não é assinante, considere ser: é uma forma que você pode contribuir para o que o entusiasmo por essa máquina maravilhosa chamada automóvel não morra no Brasil. Aqui, nós o reverenciamos ainda, todo santo dia. Boa leitura!

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Precious love, I’ll give it to you
Blue as the sky and deep
In the eyes of a love so true”

Ravensburg, Alemanha, 1933. A família Hanser olhava apreensiva os desenvolvimentos políticos e econômicos do país. Foi o ano em que o povo carregou em seus ombros um novo líder, que prometia um país grande, patriótico, maior e mais sério, contanto que lhe dessem plenos poderes para que pudesse trabalhar sossegado, sem interrupção de ninguém, ou conversa fiada; um homem forte para fazer um país forte. Ninguém achou que aquele bigodinho esquisito e o discurso militarista fossem um problema; rapidamente era o novo líder absoluto de um novo Reich que era para durar 1000 anos.

Chevrolet 1938: o início

Claro que essa nova Alemanha não era para todo mundo; ame-a ou deixe-a. Os Hanser não eram judeus, ciganos ou qualquer outra etnia normalmente associada ao extermínio que se seguiu. Mas mesmo assim, dos dez filhos do casal, em breve metade fugiria para fora do país, seguindo suas vidas nos EUA, no Brasil e na Suíça. A outra metade, que ficou, não sobreviveria para ver o ano de 1945. Seu pecado? Eram católicos apostólicos romanos, não alinhados com o novo regime. Não eram luteranos protestantes tolerados pelo governo, e não concordavam com assassinato em massa, e guerra. Os Hanser que morreram até o fim da guerra eram todos padres, que ficaram em suas congregações. Quem fugiu, sobreviveu.

O Opala do meu avô era assim; mas seis cilindros 3800

Albert Hanser veio para o Brasil. Como não poderia deixar de ser, se deu mal logo de cara. Comprou em Ravensburg um título de uma fazenda em Pomerode, Santa Catarina, de um pároco que fazia isso na cidade então. Depois de tantos meses de navio, depois trem e carroça, ao chegar na cidade descobriu que o seu papel valia nada. Caiu literalmente no conto do vigário…Sua formação de técnico florestal o ajudou: um alemão daquela comunidade conhecia os Weiszflog, outra família alemã que fizera fortuna em São Paulo, com madeira e papel. Com uma carta de recomendação e já sem dinheiro, Albert chega em Caieiras, perto da capital de São Paulo, e lá consegue um emprego. Caieiras se tornaria sua casa, e a Cia Melhoramentos de papel (nome mudado durante a guerra; Weiszflog era nome inimigo então), seu emprego até a aposentadoria.

Mas divago; o importante aqui é que Albert Hanser adorava automóveis. E, estranho para um alemão, gostava mesmo é de Chevrolet. Quando se estabelece, casa e constitui família em Caieiras durante a guerra, compra um Chevrolet  Master Deluxe Sedan 1938 que é seu xodó; o mantém por quase 10 anos. Seus filhos, ainda vivos, lembram claramente do carro subindo a serra de Santos sem esquentar; e a felicidade schadenfreude do pai ao ver os Ford fervendo no acostamento.

É por isso então que em 1969, quando é lançado, Albert Hanser é um dos primeiros compradores do novo Opala. Um Chevrolet brasileiro! Na verdade, um Opel, mas com a mecânica Chevrolet seis em linha que tanto admirava. Um carro perfeito para ele. E a felicidade de estarmos construindo um novo país nos trópicos, com uma indústria diferente amalgamando várias culturas, não lhe escapou, claro. O Brasil era seu país agora, e o Opala não era nem alemão, nem americano, apesar de geneticamente ter traços de ambos: era, como ele, um brasileiro de alma.

Albert Hanser (de branco) com sua C-14: o MAO é o menino do meio

Comprou um modelo básico, não de luxo, mas com o motor seis cilindros, 3800, que tanto aprendeu a admirar em outros Chevrolet. Era um homem de posses agora, mas, como a maioria dos seus conterrâneos, ascético e lógico ao ponto da pão-durice: para que pagar mais em acabamentinhos melhores? É com esse Opala novinho azul-calcinha que, com sua esposa em setembro de 1969, Albert Hanser vai de Caieiras até a longínqua Itabira, MG, quase 700km dali, para visitar sua filha e conhecer seu primeiro neto que acabara de nascer. Ao chegar lá, não tem paz: na cidade remota era o primeiro Opala que aparecia, e onde parava, uma multidão se formava envolta, curiosa em ver algo novo, diferente, moderno.

MAO com o pai, C14, 1969

E quem era o recém-nascido pimpolho chorão que infernizava a pequena casa em Itabira quando ele chegou? Você já deve ter adivinhado: Marco Antônio Oliveira. Eu mesmo. Nasci praticamente ao mesmo tempo do Opala: ele chegou alguns meses antes, mas na minha Itabira natal, fui eu que cheguei um pouco antes. E veja só, por minha causa, o primeiro Opala que a cidade viu veio até ela. Não fiz muito que é digno de lembrança na vida, mas esse é um bom epitáfio até: “Trouxe o primeiro Opala para Itabira.”

MAO e a filha, 2001, C20 1996

É por isso que quando me perguntam o que acho do Opala, eu não sei responder. Por profissão avalio e projeto automóveis a trinta anos já, então deveria responder isso como faço com todos eles: listando suas deficiências e vantagens, o que é bom e o que é ruim nele, no contexto de sua época, e no contexto de hoje. Mas é talvez o único carro em que isso é completamente impossível para mim.

Não há maneira de olhá-lo objetivamente. São como minha família, minha casa de infância, o lugar onde deixei de ser criança e me tornei adulto. É para mim o exemplo claro de que o automóvel é muito mais que uma simples máquina. É casa e família, é provedor de liberdade e ligação com o meu passado e meu futuro, é tradição e superpoder. Não só o superpoder de me levar a qualquer lugar no mundo a velocidades e conforto superiores. Também o superpoder de me levar ao passado, e de me fazer entender quem eu sou e de onde vim, de uma forma imediata e profunda. Opala me lembra de meu avô, é indivisível dele, e todo mundo sabe como essas coisas estragam qualquer avaliação racional.

Por muito tempo depois disso, quando vô Hanser trocava de Opala, meu pai comprava o velho. Então, em casa sempre tínhamos um, até o momento em que meu pai começou ele mesmo a comprar Opalas zero-km. Eventualmente, eu também tive os meus. Eles existem aos montes na minha memória; uma conta rápida de cabeça diz pelo menos dez. Mas vale a pena falar só dos três mais importantes

 

1984

Era quase um ritual, todo domingo de manhã. Tinha menos de 14 anos e uma obsessão doentia por automóveis; na minha cabeça rodava pelo mundo em cupês impossivelmente potentes em busca de… mulheres, sucesso, dinheiro, a borda do mundo? Não sei por que motivo rodava em direção ao horizonte o tempo todo em minha imaginação, mas ah, como eu rodava. Já no mundo real, minha conexão física com o automóvel, meu entusiasmo, era exercitado apenas nas manhãs de domingo, com este ritual.

Em Caieiras: MAO é o moleque maior

Descia até a garagem, de um carro só e fechada com um cadeado em uma porta que parecia de celeiro; fechada não se via o que tinha lá dentro. Abria o cadeado, escancarava as portas, e lá dentro o sol batia tirando o mofo da noite, iluminando as sensuais curvas da lateral do carro. Para qualquer pessoa normal aquilo era algo longe de invejável. Apenas um carro velho, já bem enferrujado pela maresia de Niterói, que batia no vento ali na montanha em frente à praia de São Francisco onde a gente morava. Mas para mim, era muito mais que isso; era meu passaporte para a liberdade, assim que aparecesse minha carteira de motorista. E, naquela época, um dos carros mais potentes e velozes que se podia ter: um Opala seis cilindros.

Hoje parece estranho que um carro com pouco mais de dez anos fosse velho e enferrujado, mas carros envelheciam e enferrujavam então; simplesmente eram assim. No caso, era um cupê bege 1972, Especial (que em Chevrolet significa tudo menos isso; era o modelo básico), com o motor 4100 seis cilindros, e câmbio de três marchas na coluna. Calotas cromadas em rodas finas, calçando pneus diagonais “recauchutados”; meu pai usava aquilo só para transporte. Era mais um carro que “herdara” de vovô Hanser.

Para mim, era o meu carro. Tinha permissão para manobrá-lo, mas só para lavar; todo domingo de manhã eu fazia isso. Sentava no rasgado e funhunhado banco do motorista, passava a mão no fino volante carinhosamente, puxava a alavanca de câmbio na coluna para mim, e depois para cima selecionando a ré. Pé na embreagem, me inclinava para alcançar a chave no painel e girá-la. O motorzão acordava fácil e quase nem parecia vivo em marcha-lenta. Acelerava e ele fazia barulho só pela admissão: swooosh-swooooosh. Ao mesmo tempo, balançava de um lado para o outro, uma reação ao movimento do enorme motor ali na frente. Obviamente fechava os olhos e imaginava ir embora, numa estrada que nunca tivesse fim…

Mas na realidade, apenas o tirava da garagem, e o lavava e encerava cuidadosamente, acariciando as curvas e retas de sua carroceria, ignorando os buracos de corrosão, e o admirando longamente. Nenhum adulto ama com este amor adolescente; aquele desejo comprido impossível de acontecer antes de se tornar adulto, que impulsiona a imaginação e nos marca profundamente. Ninguém dirigiu o Opala como eu o dirigi… na minha mente adolescente.

Meu avô trocou o sedã 3800 azul por este cupê 4100 em 1972, quando o cupê foi lançado, por influência de meu tio, então um adolescente também doente por carros. Com ele, meus avós fizeram uma viagem até a Argentina com meus pais, e foi o carro dele por muito, muito tempo. Depois veio para casa em Niterói, onde de novo permaneceu como segundo carro por muito tempo. Eu achava que seria meu primeiro carro, e certamente o teria até hoje se isso tivesse acontecido. Mas a realidade interveio. Meu pai precisava pagar uma obra em casa e não tinha dinheiro; deu o Opala em pagamento ao pedreiro. Valia quase nada na época. Mas para mim, valia tudo.

Não posso criticar meu pai em nada; tive sorte de tê-lo. Mas numa coisa éramos diferentes: ele não dava valor algum a automóveis. Nunca realmente o perdoei por ter vendido este carro; já ele simplesmente nunca entendeu a minha insatisfação com a “venda” daquele carro véio todo cacado. Mas até nisso me ensinou uma lição: tudo que vale dinheiro, pode ir embora de uma hora para outra. É bom a gente se acostumar com isso.

 

1988

O volante Walrod tinha centro baixo, diâmetro perfeito e aro de madeira, que combinava com o interior em mil tons de marrom. O painel era clássico Opala, plano e lá longe, e 1980, ano do carro, o último que seria assim. Com os bancos individuais, e o câmbio de quatro marchas no chão, dava uma sensação legal: parecia uma coluna longa como a de um Mercer T35, volante perto e coluna comprida, uma perna de cada lado. Um exagero exdrúxulo essa analogia com o Mercer, mas é o que a minha cabeça imaginava.

Estava feliz como poucas outras vezes. Atrás de mim, Niterói e a infância presa aos ônibus, escolas e mamãe. Adiante, São Bernardo do Campo, a FEI, o curso de engenharia automobilística, e a vida adulta que parecia estar começando exatamente ali. Aqui comigo, um cupê Opala Comodoro 1980, comprado baratinho numa época que seu alto consumo era tabu, mas também por seu estado de conservação longe do perfeito. Mas o que me importava se a pintura estava fosca, o ar-condicionado não funcionava, e dois vidros não baixavam, com manivelas quebradas? Debaixo do capô estava um 250-S, e o câmbio era o manual de quatro marchas: era o carro mais veloz do Brasil, segundo as publicações da época, e num tempo de importações proibidas, isso significava muito. E sim, meu primeiro carro foi um Opala 250-S.

O 3800: início

Fora a sensação de liberdade desta viagem, o carro ajudava muito. O câmbio trocava as marchas com um clé-cléck delicioso, preciso, um prazer. A direção hidráulica podia estar precisando de uma correia nova na bomba (fazia barulho manobrando) mas ali na estrada, em conjunto com o Walrod, dava um peso legal. E o motor era pura alegria. Girava bem, diferente do 4100 normal, e o som do escapamento era intoxicante, um bróóóóóóóó maravilhoso ao se cravar o pé. Aquela bigorna pesada lá na frente tinha uma baita saúde, e sempre pedia mais espaço, mais acelerador, mais tudo! Um Tim Maia volante. No trecho sinuoso de curvas de raio longo da Dutra, ali perto de Volta Redonda, era uma delícia; e minha empolgação e velocidade, subiam num crescendo.

Ao apontar para o retão de Resente, na época uns 3 km arborizados absolutamente retos e sem trânsito, a fita cassete no painel chega á última faixa: Layla, de Eric Clapton. Ao ouvir os acordes iniciais na ponte velha, entro no retão de pé embaixo. Seguro ele lá resoluto em descobrir a máxima do carro; a frente vai ficando leve aos 160 km/h no velocímetro, mas nem o carro, nem eu, estão dispostos a desistir. Aos pouquinhos, passa de 200km/h, e a reta chega ao fim. Tiro o pé, abro a janela e acendo um Marlboro Lights; em dias assim um cara tem que parar um pouco e agradecer sua sorte.

Muito aconteceu neste Opala nos dois anos que passamos juntos. Conheci minha esposa, que na época se apaixonou por mim, mas não pelo carro velho, barulhento e nada discreto. Assisti com ele várias corridas em Interlagos, onde outros Opalas tremiam o chão em uníssono.

Me meti num sem-fim de competições ilegais pelas noites de São Paulo, coisa irresponsável e criminosa, mas que na época era tolerada e até esperada entre entusiastas. Tempos diferentes, de menos trânsito e gente nas ruas. Aprendi que não importa o que você tenha, sempre existe gente mais rápida que você; tomei buchas de Mercedes 190E 2.3-16; de outros Opalas com triplas de Weber e DFV; até de um Fusca bravo que parecia querer levantar as rodas do chão quando acelerou do meu lado. Ganhei algumas também, talvez mais do que perdi, mas ao aprender esta lição, decidi que competição não era para mim, e parei. Mas atenção Moparzeiros: Dodge era freguês, sempre. O choro é livre.

Cada país tem o carburador que merece

Um dia de madrugada, chegando em casa sozinho e devagarzinho para não gastar o restinho da preciosa gasolina que sobrava no tanque, parei num sinal no começo de uma subida. Do meu lado, para um Escort conversível novinho. A dono acelera e o carro espirra; obviamente tinha uma turbina pendurada no CHT. Não estava no espírito, mas o deixei a ver a traseira do Opala velho a subida inteira. Até que, lá em cima, talvez a 500m de casa, acaba a gasolina e ele me passa. Foi a gota d’água. Cansado de ser “obrigado” a competir toda hora e lugar, e ficar sem gasolina (saía de noite com uma quantia fixa de gasolina, senão todo meu dinheiro acabaria) quase toda noite, desisti. Coloquei ele a venda no dia seguinte. Depois de voltar lá onde ele estava com um galão de gasolina na mão, andando, claro.

 

2006

Antes de contar essa tenho que contar outra de tempos mais irresponsáveis. Quando trabalhei na VW em Resende de 2002 a 2006, o retão de Resende, ainda arborizado e parte do caminho da cidade até a fábrica, era terra de ninguém. O povo daquela fábrica era um bando de doido; um monte de maníaco furioso por velocidade que de alguma forma, acabaram juntos em uma fábrica de caminhões no interior do estado do Rio de Janeiro.

Todo mundo andava de pé embaixo, o tempo todo. Era uma loucura. Os executivos andavam de A3 e Golf GTI de 180cv, mas o resto do povo não ficava atrás. Um amigo, o Chico, tinha um Corcel cupê que fora se seu avô. Mas que tinha a parte de baixo do monobloco substituída pela do Del-Rey 1.8, e um 1.9 ardido com comando e uma Weber IDF40. Era muito engraçado os sustos que o povo levava com o Chico, baixinho, de óculos e meio careca, num Corcel de aparência de velho e mal cuidado (era um “ORD” porque o F caiu e não foi substituído), mas passando o rodo geral. Outro amigo ia todo dia trabalhar numa Saveiro turbo de 500 cv com conchas, cinto 5 pontos e rollcage. Outro, tinha um Gol 1.0 16V Turbo original, mas a álcool e com turbina maior, que era um terror do retão. Um povo totalmente e positivamente maluco.

Eu tinha nessa época quatro carros legais, mas o que interessa aqui era o meu segundo Opala: o Morcego Negro. Um maravilhoso Opala de Luxo preto, cupê, 1974, com três marchas na coluna e motor seis em linha 4100: meu tipo preferido de Opala, e o carro que mais combina comigo que já tive em toda minha vida. O seis não era original: um DFV 446, comando Iskenderian bravinho, cabeçote trabalhado na Paula Faria em São Paulo. O escape era um seis em 2 que tinha um barulho alto, mas delicioso quando se cravava o pé.

Mas tentava de todas as formas ficar de fora do Grand Prix do Retão. Era casado, com dois filhos e uma cachorra para criar; já tinha tido minha cota de competições ilegais durante minha vida. Não queria provar nada. Usava um dos meus outros carros para ir trabalhar por isso: não era minha praia.

Mas numa bela manhã de sexta-feira estou eu entrando no retão a caminho de mais um dia de labuta, naquele dia de Opala. Pego um pouco de trânsito no início, um caminhão lentamente ultrapassando outro. Mantenho boa distância dele, e me distraio abrindo o porta-luvas em busca de uma fita para ouvir. Nesse momento, um Passat preto novinho me ultrapassa pela direita, e entra no espaço entre o caminhão e o Opala, me obrigando a frear.

Eu não ligo em ser ultrapassado pela direita; se fui mané de me distrair e estar devagar à esquerda, mereço. Mas entrar no meu colchão de distância do carro adiante desse jeito é irritante. Fiquei bem chateado. Olhei bem para a traseira do Passat. Modelo novo, recém-lançado, nunca tinha visto (B6). Certeza que é de algum maldito chefe da VW. E é o 2.0 sem turbo, pelo logo “2.0 FSI” atrás. Não era exatamente algo veloz.

Quando o caminhão adiante finalmente saiu da frente, ele cravou o pé. E eu também. Tive que frear! Comecei a rir e dar luz, empurrando o carro novinho com o Opala velho. Mas o cara não dava passagem. Lá pelo meio do retão finalmente abriu, e eu sumi, fui embora, gone. Ao ultrapassá-lo, porém, percebi que era o Gerente Geral da fábrica, notório mau perdedor. Ah, a minha sorte…

Continuei acelerando, na esperança que não soubesse quem era. Contornei o retorno escorregando no sofá do Opala, o mais rápido que pude, e voltei pelo outro sentido do retão, ainda em direção à fábrica. Mais adiante, de novo dois caminhões; certamente iria me alcançar. Pelo retrovisor o vi chegando, impotente. Nunca baixou velocidade; quando chegou pertinho de mim caiu direto no acostamento, a uns 200 km/h, e passou eu, caminhões, e tudo mais. Pelo acostamento! Como disse, só dava maluco.

Na reunião de fábrica mais tarde no mesmo dia, pela primeira e última vez na vida ele falou comigo. Ao passar do meu lado em direção a sala, parou na minha frente e disse: “Engenheiro, anda mais devagar né? Se você morrer antes de acabar este projeto o Helinho enfarta!”

Helinho, claro, era meu chefe. Minha vontade era dizer: “que nada, quem ia chorar mesmo é a sua patroa!”, mas achei melhor é ficar quieto. Até este exato momento. Vingança, todos sabem, é um prato melhor servido frio. E o Morcego Negro? Infelizmente a vida anda para frente e as prioridades mudam, e acabei por vende-lo. Sentia que seria difícil ter outro Opala; este era o melhor que podia ter na minha cabeça, perfeito para mim. Um carro que reformei e fiz como sempre desejei. Ao vendê-lo, um ciclo se fechava.

Mas meu amigo Muradinho me impediu de entregar o carro antes de marcar esse fechamento de ciclo. No dia em que ia entregá-lo ao novo dono, fomos até a Via Anchieta, para reproduzir uma foto de meu avô com o cupê bege 1972. Uma maneira bem legal de fechar esta história, e uma despedida final bacana. Ao Opala, e ao meu avô Hanser, que o Senhor o tenha em bom lugar.

Onde quer que meu avô esteja, certamente chegou lá dirigindo um cupê 4100 bem legal e novinho, e tirado zero km na filial metafísica da concessionária Luchini de Jundiaí. E com câmbio de três marchas na coluna, claro!

Saudades, vô! Em breve, nos veremos de novo, em um lugar melhor e sem limite de velocidade. Um abraço, e até lá.