No fim de 2014 mostramos aqui um momento único: o motor de quatro cilindros e 28,5 litros do Fiat S76, de 1911, foi ligado pela primeira vez depois de 100 anos – e nós pudemos apreciar o ronco imponente e até assustador de um carro feito para quebrar recordes de velocidade há mais de um século. Agora, chegou a hora de ver o carro em ação novamente depois de tanto tempo. E, como a gente esperava, é simplesmente espetacular.
Como contamos na ocasião, o Fiat S76 foi construído em 1911 com uma missão muito importante: superar o recorde de velocidade estabelecido no ano anterior pelo Blitzen Benz, outro dos grandes, potentes e violentos carros que surgiram no início do século para satisfazer o recém descoberto gosto por velocidade do homem.
Fiat S76, 1913 / Foto: TheOldMotor.com
O Blitzen Benz veio ao mundo em 1909, décadas antes de a Mercedes e a Benz se juntarem para criar uma das maiores fabricantes de automóveis da Alemanha (e depois, do planeta). Ele já era um monstro, com um quatro-cilindros de 21,5 litros, transmissão por corrente, uma enorme carroceria que já dava os primeiros passos no aproveitamento da aerodinâmica e, em 1910, um recorde de 211,4 km/h em Daytona Beach, nos EUA.
Na ocasião, o Blitzen Benz tornou-se o veículo terrestre mais veloz do planeta – 1,4 km/h mais rápido que o recordista anterior, um trem elétrico que, em 1903, chegou a 210 km/h em uma ferrovia alemã.
Recordes de velocidade eram extremamente disputados naquela época, e não demorou para que outras fabricantes de automóveis reagissem. Ainda em 1910, a Fiat construiu o primeiro exemplar do S76 com o objetivo de superar o Blitzen Benz. Logo de cara, que fique claro: ele nunca conseguiu, não oficialmente. Contudo, alguns outros recordes foram quebrados.
No primeiro, em 1911, o primeiro S76 chegou aos 186 km/h em uma milha em Saltburn Sands, no norte da Inglaterra – exatamente o mesmo lugar onde Sir Malcolm Campbell, o primeiro homem na história a ultrapassar a barreira dos 300 km/h, bateu seu primeiro recorde de velocidade, atingindo os 222 km/h em 1922. Campbell, depois, seria um dos pioneiros dos recordes de velocidade em Bonneville Salt Flats.
Em 1911 a Fiat construiu outro S76 e, dois anos depois, o piloto franco-americano Arthur Duray o levou para Ostende, na Bélgica, para tentar levá-lo a mais de 211,4 km/h. Dizem que ele conseguiu, e levou o segundo S76 (que era idêntico ao primeiro) aos 215,6 km/h. Contudo, a equipe responsável por aferir a velocidade não conseguiu medições precisas por causa do mau tempo e o recorde nunca foi oficializado.
De qualquer forma, o carro que rodou pela primeira vez em um século é um dos dois, correto? Bem, não exatamente. Na verdade, está mais para dois carros transformados em um. De acordo com um artigo de 2014 da revista Race Tech, o homem que levou o projeto a cabo, Duncan Pittaway, comprou os primeiros componentes do S76 em 2002, na Austrália, e os levou para o Reino Unido. Lá, ele descobriu que o chassi e a carroceria, ambos em um estado não muito bom, eram peças de um carro histórico.
Foto: jn.passieux.free.fr
Duncan conseguiu acesso ao projeto original do S76 e, comparando medidas e componentes com os pedais e a caixa de direção, chegou à conclusão de que aquele era, de fato, o carro usado por Arthur Duray na bélgica em 1913. Por si só, seria uma descoberta incrível mas, depois de alguns anos de pesquisas e viagens, ele conseguiu encontrar o motor do outro S76. Então ele vez o que qualquer um de nós faria: juntou tudo para construir um único S76.
Quer dizer, não “o que qualquer um de nós faria” porque pouquíssimas pessoas no mundo conseguiriam pegar um motor de 28,5 litros construído há mais de um século, encontrar os esquemas originais, reconstruir componentes como cabeçote, pistões e bielas e ainda colocar tudo para funcionar. Foi exatamente isto o que ele fez, em um processo que estava previsto para chegar ao fim em julho do ano passado, mas não chegou. Dá para entender, afinal não estamos falando da construção de um kit car, e sim de um verdadeiro pedaço de história sobre quatro rodas.
Foto: Goodwood Road & Racing
Duncan chegou ao ponto de, sozinho, construir uma caixa de câmbio de quatro marchas seguindo as especificações originais. E mais: sem qualquer tipo de formação em engenharia automotiva.
Assim, ele conseguiu recriar um S76 completo, pintado de vermelho (a cor oficial dos carros de corrida italianos da época) e equipado com um monstro de quatro cilindros, 28,5 litros e 300 cv berrando alto e cuspindo fogo pelas saídas de escape. O detalhe é que a concepção do motor é relativamente moderna: ele tem três velas de ignição por cilindro, dezesseis válvulas e comando no cabeçote, não muito diferente de qualquer quatro-cilindros mais moderno – exceto pelo fato de cada cilindro deslocar mais de sete litros.
Duncan foi convidado há algumas semanas por Lord March, o dono da mansão onde acontece o Goodwood Festival of Speed, para o shakedown do S76 e também para uma sessão de testes em sua famosa ladeira. E foi assim que o monstruoso Fiat acelerou de novo pela primeira vez em 100 anos – com vigor surpreendente, diga-se.
Ele será uma das atrações do Goodwood Festival of Speed deste ano, que acontecerá entre os dias 25 e 28 de junho. Lord March já anunciou que, na edição de 2015, haverá uma categoria especial para carros como o S76 e o Blitzen Benz.