Não é preciso ser um fã fervoroso do Porsche 911 para admirar um dos esportivos mais deliciosamente ariscos já feitos na história da humanidade: o Porsche 930, versão turbinada que estreou em 1975 como especial de homologação para a FIA. Ele tinha um flat-six arrefecido a ar sobrealimentado que, nos primeiros modelos, entregava 260 cv.
Tanta força assim (para a época), somada a um turbo lag assassino, ao entre-eixos curto e ao peso do motor localizado na traseira tornavam o Porsche 930 extremamente desafiador de se pilotar rápido. Era preciso sangue frio para domar aquela traseira, especialmente porque os controles de tração e estabilidade eram as mãos, os pés e os instintos de quem se sentava ao volante.
Quando chegou a hora de transformá-lo em um carro de corrida, a Porsche seguiu duas receitas: a do Grupo 4 da FIA, que deu origem ao Porsche 934 – um 930 com para-lamas alargados e um flat-six de três litros com turbo e quase 500 cv; e o Porsche 935, que seguia as regras mais liberais do Grupo 5 e, com isto, era praticamente um protótipo. Quer uma evidência? Então tome logo várias: estas fotos são do Porsche 935 de Bob Akin, que competiu com ele nas 24 Horas de Le Mans de 1982.
O Porsche 935 era o mais próximo que se podia chegar de um protótipo sem abandonar todos os elementos do Porsche 911. Se você leu sua história aqui no FlatOut, sabe que um 935 foi o vencedor das 24 Horas de Le Mans de 1979. E sabe também que o seu motor era um pouco menor que o do 930, pois o regulamendo do Grupo 5 definia que motores naturalmente aspirados poderiam deslocar até quatro litros.
No caso dos sobrealimentados, multiplicava-se o deslocamento por 1,4 para manter as coisas justas. Sendo assim, de três litros, o boxer passou a 2,85 litros – multiplicados por 1,4, o resultado era 3,99. A potência ia de 560 cv a mais de 800 cv, dependendo da pressão do turbo, que variava entre 1,35 e 1,55 bar. O câmbio era manual de quatro marchas, com diferencial blocante.
O regulamento do Gupo 5 já permitia modificações muito mais radicais que o Grupo 4, o que acabou dando origem ao flatnose (“nariz chato”) do 935, como também já foi comentado aqui no FlatOut. No carro de Bob Akin, porém, as coisa ficaram ainda mais extremas. Deve ser o flatnose mais flat que já vimos.
Um nariz tão baixo tinha sua razão de ser: aerodinâmica. Apesar de ter competido em 1982, o carro de Bob Akin foi concebido nos anos 1970, a era da aerodinâmica no automobilismo. A regra era cortar o ar com mais facilidade e assim, conseguir mais velocidade nas retas.
É só lembrar do efeito-solo na F1; os Winged Warriors de Daytona (Plymouth Superbird e Dodge Charger Daytona, tão velozes que foram banidos das pistas) e, claro os protótipos de Le Mans. No caso deste carro, tem algo especial: o nariz não é Porsche, e sim enxertado de um Lola T600, protótipo britânico do Grupo C, o mesmo do Porsche 962. Mas nem dá para ficar bravo com esta heresia, dá? E, além de tudo, o radiador tão baixo ajuda a deixar o centro de gravidade mais próximo do chão.
Instalada a carenagem, é possível ver os dutos de ventilação e o escoador aerodinâmico atrás do radiador. Esta solução começou a ser adotada na década de 1960, e o exemplo mais conhecido provavelmente é o Ford GT40.
Caminhando pela lateral, podemos perceber o recorte atrás do pneu dianteiro. Não é só para deixar o visual bacanudo, e sim uma tentativa de reduzir o arrasto aerodinâmico naquela região. O problema é que, ao utilizar como base a plataforma antiga do 911, ficam evidentes as limitações provenientes da idade: o monobloco original é estreito demais.
A carroceria alargada ao extremo é o resultado de uma espiral. Os turbocompressores e seu sistema de dutos adiciona ainda mais peso à traseira, e também é responsável pelo torque monstruoso do flat-6 (que também tem um lag aterrorizante). As consequências são duas: aumento da inércia e, por isso, da transferência lateral de peso; e a necessidade de pneus extremamente largos para lidar com todo o toque e tracionar o máximo que for possível. Só que os pneus largos também ajudam a aumentar a transferência lateral de peso, o que exigiu bitolas extremamente largas. Por isso os pneus ficam quase 100% para fora da linha das janelas.
Ainda na traseira: note como ela é longa. Já tratamos deste assunto aqui – é uma solução para reduzir o descolamento das camadas aerodinâmicas em alta velocidade, evitando turbulências e aumentando o downforce. Também é uma característica típica de vários carros de corrida da década de 1970, como o 935 Moby Dick e o Porsche 917 Langheck.
Com tantas adaptações, a real é que restou muito pouco da plataforma original do 911 aqui: apenas o para-brisa, o teto e as colunas. E, ainda assim, o ângulo do para-brisa com o teto foi modificado, também por razões aerodinâmicas.
Dito isto, ainda é possível enxergar um 911 por baixo de toda esta “armadura”, pois sua silhueta característica é inconfundível. Aliás, tantos aparatos aerodinâmicos nos fazem lembrar de outra categoria praticamente “sem limites” neste quesito: a Stock Car nos fim dos anos 1980. O carro abaixo, quase irreconhecível, é o Chevrolet Opala com o qual Ingo Hoffman correu em 1988:
Mas, voltando ao Porsche 935. Bob Akin competiu nas 24 Horas de Le Mans de 1982 com ele, mas durou apenas duas horas: teve de abandonar a corrida por um problema no tanque de combustível auxiliar. O carro ainda competiu em algumas provas de endurance naquele ano antes que Akin decidisse encostá-lo em um canto de sua oficina, até vendê-lo em 1999.
O novo dono, Jacques Rivard, mandou restaurar e refazer motor e câmbio e, até recentemente, corria com o 935 em provas históricas. Então, decidiu vendê-lo, mas primeiro o enviou para a Canepa para uma boa revisão e uma caprichada sessão de detailing. É por isso que ele está tão bonito, e anunciado no site de classificados James Edition por singelos US$ 1,2 milhão, ou quase R$ 4 milhões em conversão direta.