O Salão de Tóquio de 1989 foi possivelmente o mais importante da história do automóvel japonês. Era o auge da bolha econômica, e as fabricantes japonesas apresentaram alguns dos carros mais icônicos já criados: o Honda NSX, o Nissan Skyline GT-R R32, o Mazda MX-5 Miata, o Subaru SVX, o protótipo do Mitsubishi 3000GT. Era uma constelação de lendas nascendo ao mesmo tempo.
E ali, no meio de tudo isso, estava um carrinho esquisito de duas portas, com cara de Suzuki Samurai misturado com Honda City, chamado RAV-FOUR.

A Toyota o descreveu como um “carro 4×4 neo-urbano projetado para atender aos estilos de vida ativos dos jovens moradores das cidades”. O nome era uma sigla: Recreational Active Vehicle with 4-wheel drive — veículo recreativo ativo com tração nas quatro rodas. Mas em japonês, “RAV” soa como ラブ (rabu), que é exatamente como se pronuncia a palavra em inglês “love” (amor). Foi uma jogada de marketing inteligente, mas que não impediu o conceito de ser completamente ofuscado pelos esportivos ao seu redor.



Ninguém prestou muita atenção. Tinha tudo para ser só mais um estudo de design, uma daquelas ideias malucas que são interessantes, mas todo mundo sabe que nunca sairiam do papel. Mas desta vez foi diferente.
A história do RAV4 começa, na verdade, em 1986 — três anos antes daquele Salão de Tóquio. Foi quando designers da Toyota começaram a esboçar a ideia de um veículo compacto com tração integral, construído sobre uma plataforma monocoque de carro de passeio em vez do chassi robusto dos jipes tradicionais.
Era uma ideia simples: criar um carro que tivesse a agilidade, o consumo e o conforto de um hatchback, mas com a posição elevada de direção, a tração integral e a versatilidade de um SUV. Um carro para quem queria as vantagens de um 4×4 sem os inconvenientes — o consumo alto, a dirigibilidade ruim, o tamanho exagerado. Simples, certo?
Errado. Por que em 1989, praticamente não existia mercado para isso. Os SUV eram o Land Cruiser, o Pajero, Hilux, o Ford Bronco ou o Chevrolet Suburban — veículos pesados, com chassi separado, consumo grotesco e vocação para trilhas sérias. Havia ainda o Jeep Cherokee, que usava uma carroceria que, tecnicamente, era um monobloco, mas, na prática, tinha um chassi simplificado integrado ao assoalho. Era leve para um SUV, mas ainda assim, mais pesado que uma perua de porte semelhante. Mas isso não fazia diferença, na época: quem precisava de tração integral comprava um SUV. Quem queria economia e praticidade comprava uma perua.
O projeto quase morreu. Foi engavetado por anos até que os departamentos de vendas da Toyota no Japão e na Europa — aqueles que lidavam diretamente com os clientes — perceberam algo que os engenheiros não tinham visto. Eles estavam em contato com o mercado. E o mercado estava mudando.

As cidades estavam ficando mais caóticas. O trânsito piorava. As ruas estreitas do Japão e da Europa não comportavam os SUV tradicionais — como o próprio Cherokee, que foi vendido na França. Mas ao mesmo tempo, as pessoas queriam altura, espaço, segurança. Queriam se sentir protegidas no trânsito, ter boa visibilidade, carregar mais coisas. Elas só não sabiam que queriam tudo isso em um carro menor.
Em março de 1991, o projeto saiu da gaveta e voltou para a mesa. Nonaka recebeu o sinal verde e o desenvolvimento começou de verdade.
A Toyota, àquela altura, já era uma das maiores fabricantes de SUV do mundo. Seu Land Cruiser estava completando 40 anos de mercado e o 4Runner estava indo muito bem nos mercados onde era vendido — especialmente nos EUA, a terra dos SUV. Mas quando a Toyota decidiu fazer um SUV compacto, não havia referências além do Lada Niva e do Jeep Cherokee XJ — ambos com um chassi integrado à carroceria, um pouco diferente do monobloco com longarinas como conhecemos.
O ponto de partida foi a criação de uma nova plataforma exclusiva para o modelo. Ela unia características do Corolla E100 e do Carina T170 — o que lhe permitiu ter um sistema de tração integral, algo que, para a Toyota, era fundamental para o sucesso do carro. Afinal, a capacidade de tração sempre foi o apelo dos SUV. O objetivo do novo carro era justamente combinar essa capacidade de tração à praticidade de um carro menor. Sem ela, o carro não faria sentido. Ao menos na época.

O sistema de tração integral era permanente, distribuindo a força entre os eixos através de um diferencial central tipo engrenagem cônica (bevel gear). E aqui está o detalhe importante: esse diferencial podia ser travado manualmente pelo motorista através de um botão no painel. Quando travado, a distribuição de torque ficava fixa em 50/50 entre dianteira e traseira. Quando destravado, o sistema agia como um diferencial livre, permitindo que os eixos girassem em velocidades diferentes.
Como no Carina e em outros modelos AWD da Toyota, não havia reduzida. A transmissão podia ser manual de cinco marchas ou automática de quatro — a automática, aliás, tinha modo esportivo e adaptava as trocas ao estilo de condução do motorista.
A suspensão era totalmente independente nas quatro rodas. Na dianteira, McPherson com braços inferiores em formato de L e barra estabilizadora. Na traseira, braços arrastados com molas helicoidais e amortecedores separados — um desenho compacto que combinava curso longo e conforto. A altura livre do solo era de 200 mm, suficiente para passar por obstáculos urbanos sem raspar o assoalho, mas sem exageros off-road.

O motor era o 3S-FE de 2.0 litros e 16 válvulas, usado no Camry e no Carina, montado transversalmente. Nada de extravagâncias. Apenas 129 cv (133 hp em algumas especificações) e 19,0 kgfm de torque, mas suficiente para um carro que pesava pouco mais de 1.200 kg. A relação peso/potência ficava próxima de 9,3 kg/cv — não era um foguete, mas também não era lerdo. Para um veículo com tração nas quatro rodas e vocação urbana, era mais do que adequado.
Para compensar a ausência de um chassi convencional, o monobloco usava aço de alta resistência em pontos estratégicos, o que permitiu que ele fosse leve, mas rígido, mantendo o comportamento dinâmico de carro. A rigidez à torção chegava a 14.700 Nm/grau — como comparaçào, o Bugatti Veyron tem 22.000 Nm/grau de rigidez.
O resultado era um veículo de apenas 3.690 mm de comprimento e 1.660 mm de largura — mais curto que a maioria dos hatches médios de hoje. O entre-eixos era de apenas 2.200 mm — o Volkswagen Gol da época tinha 2.470 mm de entre-eixos. Apesar do porte reduzido, o SUV tinha posição de direção elevada, boa altura do solo e um visual divertido, quase um brinquedão, com o estepe pendurado na tampa traseira — um elemento que não era apenas estético, mas que liberava espaço no assoalho do porta-malas, afinal, havia um diferencial no eixo traseiro.
O interior acomodava quatro pessoas com conforto razoável. O banco traseiro era bipartido e rebatível, transformando o porta-malas de 328 litros em 1.025 litros com os bancos abaixados. Os materiais eram simples mas bem acabados — típico da Toyota dos anos 1990, quando “durabilidade” ainda valia mais que “aparência premium”. A versão de três portas tinha um charme específico: as portas eram enormes, facilitando o acesso ao banco traseiro. E sim, entrar atrás em um carro de três portas sempre foi um exercício de contorcionismo, mas a Toyota compensou com aberturas generosas e bancos dianteiros que deslizavam bastante para a frente.

Em outubro de 1993, a Toyota levou uma versão revisada e quase definitiva do conceito ao Salão de Tóquio. Dessa vez, o nome estava encurtado para “RAV 4” (com espaço), e o carro estava bem mais próximo da produção. As especificações tinham sido refinadas: suspensão independente nas quatro rodas com curso de 180 mm na dianteira e 170 mm na traseira, diferencial traseiro autoblocante tipo Torsen como opcional, ABS nas quatro rodas, teto solar duplo de alumínio removível — um elemento que se tornaria opcional no modelo de produção — e aquele banco traseiro rebatível que virou assinatura do segmento.

O conceito de 1993 tinha até detalhes curiosos que não chegariam à produção, como para-choques destacáveis e ganchos de reboque integrados ao design — elementos que reforçavam o lado aventureiro sem exagerar no visual off-road raiz.

A Toyota sabia que tinha algo especial nas mãos. Não era perfeito — nenhum carro pioneiro é. Mas era original, funcional e respondia a uma demanda que o mercado nem sabia que tinha. O trabalho duro começaria na etapa seguinte: convencer as pessoas de que aquilo fazia sentido.
Em março de 1994 a Toyota levou o RAV 4 ao Salão de Genebra, na Suíça. As vendas começaram no Japão dois meses depois, em maio. A expectativa inicial era modesta: 4.500 unidades por mês — afinal, era um nicho. Um experimento em um segmento que não existia. Ninguém esperava milagres.

Mas às vezes eles acontecem: naquele primeiro mês de vendas a Toyota recebeu 8.000 pedidos. A produção foi dobrada imediatamente para dar conta da demanda projetada para Europa, África, Austrália e América Latina, onde ele seria vendido a partir de junho. Em janeiro de 1996, ele chegou aos EUA, onde a Toyota apostou tudo na versão de cinco portas. Diferentemente do que a Toyota esperava, não era preciso explicar nem convencer as pessoas. O RAV 4 fazia sentido para elas.
A imprensa, inicialmente cética, foi aos poucos se rendendo. Nos EUA, onde o conceito de “cute ute” (algo como “utilitário fofo”) ainda era motivo de piada — um legado dos próprios japoneses e suas picapes compactas dos anos 1970 —, o RAV4 chegou com uma proposta diferente de tudo que existia no mercado. De repente aparecia aquele carrinho japonês compacto, com visual simpático, prometendo versatilidade sem o peso e o consumo dos SUV tradicionais — e com a confiabilidade que fez a fama da Toyota no país.

A recepção inicial foi morna. Havia ceticismo. “Quem vai querer isso?” “É pequeno demais.” “Não parece robusto o suficiente.” Mas bastou as primeiras unidades chegarem às mãos dos consumidores para a percepção mudar.
O Rav 4 era ágil na cidade — muito mais fácil de estacionar que um Explorer. Consumia pouco — a média ficava entre 8,9 km/l e 9,8 km/l em percurso combinado, algo impensável para um SUV na época. O porta-malas era decente — 328 litros com os bancos em pé, mais de 1.000 litros com eles rebatidos. Dava para levar a família com conforto. E se a estrada ficasse ruim, a chuva viesse forte, a neve surpreendesse ou fosse necessário sair do asfalto, ele resolvia. Simples assim.

Em 1997, a revista Automobile Magazine nomeou o RAV4 como “Automobile of the Year”. Foi quando o mercado realmente acordou. Não era mais só “aquele carrinho japonês esquisito”. Era o carro do ano. E os números confirmavam. Em 1994, a Toyota vendeu cerca de 53.000 RAV 4 em todo o mundo — lembre-se: a expectativa era vender 31.500 naqueles sete primeiros meses. No ano seguinte, o primeiro ano cheio, o número dobrou e passou das 100.000 unidades.
Em 1996, com a chegada aos EUA, a produção triplicou. Em apenas três anos, o RAV 4 passou de experimento a fenômeno. A Europa abraçou o conceito rapidamente. Em um continente onde as ruas são estreitas, o combustível é caro e o espaço é premium, o RAV 4 fazia todo sentido. Considerando as gerações seguintes, a Toyota já vendeu mais de 2 milhões de RAV 4 no Velho Mundo.

No Japão, onde o carro nasceu, o sucesso foi instantâneo. A campanha de marketing com Takuya Kimura — o galã mais famoso do país — tornou o RAV 4 especialmente popular entre mulheres jovens. A Toyota oferecia personalização completa: qualquer combinação de cores externas e internas, incluindo estampas de camuflagem e até a opção de pintar as colunas da porta em cor contrastante, simulando um santantônio. Era quase como customizar um tênis.
E o mais importante: todas as outras fabricantes perceberam. A Honda, vendo o sucesso do RAV 4, lançou o CR-V em outubro de 1995 — apenas um ano e meio depois do RAV4 chegar ao Japão. A Subaru trouxe o Forester em fevereiro de 1997. A Nissan apresentou o X-Trail. Até os americanos entraram na onda: a Ford fez o Escape e a Chevrolet, o Equinox. O RAV 4 criou um segmento validando a ideia de que havia demanda para veículos que não eram nem carros nem SUV, mas algo no meio. E esse “algo no meio” viria a dominar o mercado nas décadas seguintes.
O RAV 4 funcionou por uma razão muito simples: ele não tentou ser tudo para todos. Ele tinha um propósito claro e fazia aquilo muito bem. Não era um jipe de verdade. Não prometia escalar montanhas ou atravessar rios. Mas para 99% das pessoas, 99% do tempo, ele era mais do que suficiente. Melhor ainda: era confortável, econômico e fácil de dirigir.
Hoje, mais de 30 anos depois, o RAV 4 já vendeu mais de 15 milhões de unidades em 180 países. É um dos SUV mais vendidos da história. Em 2018 e 2019, foi o SUV mais vendido do mundo. Em fevereiro de 2025, superou até a Ford F-150 como o veículo mais vendido nos EUA — encerrando um reinado de quase quatro décadas da picape.

Se você olhar para o RAV4 hoje é difícil reconhecer o pequeno brinquedinho de menos de quatro metros que apareceu em 1994. A primeira geração do RAV4 teve algo que é fundamental em um carro: personalidade. Era pequeno, simpático, divertido. Tinha aquele estepe na tampa traseira que virou sua assinatura visual. Tinha aquele jeitão de aventureiro urbano que não se levava muito a sério. E talvez tenha sido justamente isso que fez a diferença.


