“Seu futuro ainda não foi escrito. O futuro de ninguém foi. Seu futuro é aquilo que você faz. Então faça um bom futuro”. – Dr. Emmett Lathrop Brown
Preciso começar esta matéria com uma citação por que foi ela que me inspirou nas análises sobre o tal “futuro elétrico” do automóvel nos últimos cinco ou dez anos. Quem gosta de cinema sabe de onde ela veio: a cena final da trilogia “De Volta Para o Futuro”. Ela funciona bem por que, apesar da fantasia, é baseada na realidade: o futuro não existe. E como os três filmes nos ensinam o tempo todo, as ações presentes é determinam o que irá acontecer lá na frente. As ações, não as intenções.
O devaneio europeu de banir os motores de pistão do mercado em 2035 era uma intenção. A ação ficou por conta da engenharia e do mercado — e os dois deixavam claro que o carro elétrico como única opção não seria viável até 2035. Tudo estava nas entrelinhas, nesse mundo onde desastres de RP forjados são mais temidos que afrontas à cultura do povo. Bastava saber ler.
Além disso, se há algo que a gente aprende com o tempo é que a modernidade costuma ser um punhado de velhos erros vestidos com roupas novas. Nesse caso dos motores a combustão versus motores elétricos, é literalmente isso: uma embalagem nova para o velho erro de apostar contra o motor de combustão interna. E ele não é o único erro.
O automóvel tinha três formas básicas de propulsão, durante sua infância: combustão interna, vapor e eletricidade. As três tecnologias disputaram livremente no mercado e uma delas venceu por seus próprios méritos. Das três, as combustão se mostrou a mais prática. Carros a vapor demoravam a formar pressão e eram complicados de operar. Carros elétricos eram lentos e limitados em autonomia — e as recargas eram demoradas como ainda são. No fim, o carro a combustão, mesmo com seus defeitos, foi a melhor solução viável para atender as demandas dos motoristas. Foi a primeira vez que a combustão se provou superior, e a primeira vez que apostaram contra ela.
A vitória da combustão nesta corrida deveria ser suficiente para manter todas formas alternativas de propulsão em laboratórios e campos de prova até que elas se mostrassem iguais ou superiores a ela. Mas o passado era primitivo, hoje temos tecnologia. Quem sabe dá certo?
E assim o “fim do motor de combustão interna” se tornou um fantasma que assombra as garagens há décadas, ora apresentado como necessidade ambiental, ora como imposição econômica. É uma história escrita por ondas sucessivas de previsões que anunciam o o colapso definitivo, seguidas por evoluções técnicas ou simplesmente com um choque de realidade que faz os legisladores transformarem o fracasso em “uma nova estratégia” até que o assunto esfrie.
A primeira grande profecia da morte da combustão não nasceu da escassez de combustível, como poderia parecer a quem lembra da Crise de Suez e de 1973. Quem trouxe a aposta contra a combustão foi o ar. Ou melhor, o escape dos motores.
No final dos anos 1960, cidades como Los Angeles e Tóquio viviam sob uma névoa densa chamada “smog”, uma nuvem com cor de bigode de tiozinho fumante que pairava sobre as grandes cidades, causando problemas reais e imediatos, como doenças respiratórias e uma cobertura de fuligem impregnada pela cidade. Até o asfalto era mais sujo por causa das partículas emitidas.
Era um problema visível, mensurável e politicamente incontornável. O Japão foi o primeiro país a adotar medidas para combater os efeitos da combustão interna: em 1966 o Ministério dos Transportes instituiu os primeiros limites de emissões do planeta, visando controlar o volume de CO2 expelido pelos carros vendidos no país. A proposta de controle foi aprovada pelo governo e, em 1968, foi aprovado o “Air Pollution Control Act”, a primeira lei de emissões do planeta.
Os EUA fizeram o mesmo: discutiram a questão nos anos 1960 e criaram a estrutura burocrática para institucionalizar o controle de emissões. Em 1970, dois anos depois do Japão, foi criada a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) que consolidou o “Clean Air Act”. Na época, acreditava-se que era impossível reduzir emissões de monóxido de carbono, hidrocarbonetos e óxidos de nitrogênio sem tornar o motor de combustão interna ineficiente e caro a ponto de ser inviável. As normas de emissões eram um paliativo enquanto não se encontrava uma solução definitiva.
Relatórios do National Research Council, publicados em 1974, especulavam que, por volta do ano 2000, o motor térmico poderia se tornar inviável em grandes centros urbanos, sendo substituído por alternativas elétricas ou até a vapor.
A resposta, contudo, foi um contra-ataque da engenharia: os carburadores deram lugar a sistemas eletrônicos de gerenciamento e sensores de oxigênio passaram a monitorar a combustão em tempo real. Depois veio o catalisador de três vias para controlar de vez o que era emitido pelo cano de escape. Problema resolvido. Por enquanto…
Nos anos 1990, quando o Conselho de Recursos Atmosféricos da Califórnia (CARB) descobriu que a GM estava desenvolvendo um carro elétrico, ele atropelou a realidade e logo criou uma lei que obrigava todas as fabricantes a terem carros elétricos em seu portfólio. Nem mesmo a GM sabia se o negócio ia funcionar, mas os burocratas politiqueiros decidiram que o futuro seria elétrico e a realidade que se virasse para realizar esse desejo. Assim nasceu o “ZEV Mandate”, algo como “Obrigatoriedade do Veículo de Emissão Zero”.
Era uma decisão claramente política, afinal, como eu disse, a GM mal sabia se o seu carro elétrico seria viável tecnicamente, quanto mais no mundo real. A regra exigia que 2% das vendas fossem de veículos de emissão zero em 1998, número que subiria para 10% em 2003. A base técnica para a regra não existia. Era o típico produto de políticos fazendo pose de salvadores. A meta, claro, era extinguir a combustão interna e substituí-la pelos elétricos.
A prova maior de que o CARB agiu politicamente e não tecnicamente é que, enquanto a GM desenvolvia o tal elétrico, as fabricantes estavam investindo em outras tecnologias para refinar o controle de emissões. Foi durante a vigência do ZEV Mandate que nasceram o comando variável de válvulas e a injeção direta de combustível com controle eletrônico — duas tecnologias essenciais para o controle de emissões até hoje.

O carro elétrico da GM se tornou o EV1, lançado em 1996 como consequência do ZEV Mandate. Era um programa comercial, mas experimental. Os carros eram oferecidos em leasing e teriam de ser devolvidos à GM ao final do contrato, sem a possibilidade de compra. O carro fez sucesso inicial, mas a GM percebeu que aquele carro, apesar da demanda, era economicamente inviável.
O fim do programa não teve nada de conspiratório, como o documentário “Quem Matou o Carro Elétrico” tentou sugerir de forma rasa: a barreira era a mesma que os elétricos enfrentam até hoje: a densidade energética das baterias. As baterias de chumbo-ácido e, posteriormente, níquel-hidreto metálico, eram caras e tinham autonomia limitada. Ele só funcionou por que a fábrica incluiu o “prejuízo” como custo do projeto.
Em 2003, o mesmo ano em que o EV1 saiu de cena, os fabricantes entraram em um acordo com o CARB para incluir outras tecnologias e compromissos com a redução de emissões. O motor de combustão saiu dessa fase não apenas vivo, mas fortalecido, entrando em uma era de refinamento técnico sem precedentes.
Entre 2000 e 2014, instalou-se uma falsa calmaria. O discurso de banimento praticamente desapareceu das publicações técnicas, substituído pela obsessão por eficiência incremental. Foi a era de ouro do downsizing, da disseminação gradual da injeção direta agora viável em escala industrial, dos turbocompressores de baixa inércia e da redução sistemática de atrito interno. O progresso era constante, mensurável e previsível.
Documentos da SAE e relatórios da McKinsey publicados em 2011 apontavam para um futuro de convivência tecnológica. A Toyota apostava nos híbridos, combinando o ciclo Atkinson com eletrificação parcial, não como uma transição provisória, mas como solução estrutural para a maior parte do mercado. Em 2012, o motor de combustão era visto como uma tecnologia madura, limpa e soberana, essencial para cerca de 90% das aplicações globais. Até mesmo o diesel despontou como uma tecnologia promissora para o futuro.

Ironicamente foi o próprio diesel que encerrou a era de paz da combustão interna: em setembro de 2015 as autoridades europeias descobriram que a Volkswagen (e várias outras fabricantes) fraudaram os testes de emissões com um software que detectava que o carro estava sendo testado e alterava a operação do sistema de injeção para que ele fosse aprovado.
O escândalo foi apelidado “Dieselgate”, e o motor de combustão interna passou a ser visto como um vilão do meio-ambiente, colaborando com a poluição e acelerando as mudanças climáticas. Quando a Volkswagen admitiu o uso de dispositivos de derrota em motores TDI, a relação de confiança entre reguladores e centros de engenharia foi rompida. O debate deixou de ser sobre eficiência termodinâmica ou viabilidade técnica e passou a ser sobre moralidade política.

A partir dali, a linguagem da redução progressiva de emissões foi substituída pela retórica do banimento total. Pela primeira vez na história, governos passaram a anunciar prazos para o banimento dos motores de combustão interna — 2030, 2035, 2040 — sem que existisse uma solução tecnológica de custo equivalente pronta para assumir o lugar do motor térmico.
E aqui entramos na repetição dos erros do passado com roupa nova. Os banimentos propostos nos últimos 10 anos, são exatamente o que o CARB fez há 30 anos: impor uma tecnologia que ainda não é viável e apostar que a força da lei é suficiente para moldar a realidade. E como se o ZEV Mandate não tivesse ensinado nenhuma lição, esse novo erro foi ainda mais agressivo: em vez de uma transição progressiva, começando em 2%, depois 10% etc, foi estipulado um prazo final para que 100% dos carros fossem elétricos. Um devaneio coletivo jamais visto na história da política. Os burocratas realmente agiram como se a realidade se dobrasse a eles. Se hoje soa absurdo, imagine como veremos esse episódio em 20 ou 30 anos.
Após o Dieselgate, criou-se a impressão de que o desenvolvimento do motor térmico havia estagnado ou, pior, de que tudo o que restava era maquiagem regulatória. A realidade é oposta. Repetindo a história dos anos 1990, sob o ZEV Mandate, o período pós-2015 marcou uma aceleração técnica sem precedentes, desta vez impulsionada por pressão extrema. Nunca antes tantos recursos foram investidos para extrair cada décimo percentual de eficiência térmica de um ciclo Otto ou Diesel.
Durante décadas, a eficiência térmica de motores a gasolina orbitou a casa dos 25%. Nos anos 1990, atingir 33% já era motivo de orgulho acadêmico. O salto começou de forma discreta, quase invisível ao consumidor. Taxas de compressão voltaram a subir depois de anos de retração, agora viabilizadas por controle preciso de ignição, sensores de detonação mais rápidos e câmaras de combustão otimizadas por simulação computacional. Aquele velho limite imposto pela gasolina deixou de ser um muro e passou a ser um obstáculo negociável.
A injeção direta, cuja semente havia sido plantada ainda nos anos 1990 por Mitsubishi e Toyota, finalmente encontrou maturidade industrial. Com pressões cada vez mais elevadas e controle preciso do jato, é possível manipular a formação da mistura em tempo real, resfriar a carga pelo próprio combustível e operar com compressões que seriam impensáveis na era da injeção no coletor.
O verdadeiro divisor de águas, porém, veio quando os engenheiros passaram a atacar o problema pelo lado menos intuitivo: a ignição. Motores como o Skyactiv-G, da Mazda, mostraram que era possível operar com taxas de compressão acima de 14:1 em produção em massa, algo viabilizado não por gasolina milagrosa, mas por controle extremamente preciso de ignição, geometria de câmara, resfriamento da carga e uso estratégico de recirculação interna de gases. em produção em massa, flertando perigosamente com conceitos de combustão homogênea por compressão. O passo seguinte veio com a pré-câmara.
Ao utilizar uma pequena câmara auxiliar para iniciar a combustão — seja em sistemas de pré-câmara passiva, seja em soluções ativas com injeção dedicada — com múltiplas fontes de centelha, motores de pré-câmara transformaram a propagação da frente de chama em um evento controlado, rápido e extremamente eficiente. Aquilo que antes era privilégio de motores de Fórmula 1 começou a migrar, em versões civilizadas, para aplicações de rua e industriais. O resultado foi uma combustão mais completa, menos suscetível à detonação e capaz de operar com misturas mais pobres sem penalidades severas.
Esses avanços abriram caminho para regimes que, por décadas, habitaram apenas papers acadêmicos. O HCCI (Homogeneous Charge Compression Ignition) propõe a ignição espontânea de uma mistura homogênea por compressão, sem centelha, enquanto o RCCI (Reactivity Controlled Compression Ignition) controla esse processo combinando combustíveis de diferentes reatividades. Ainda que raramente existam em estado puro em motores de produção, seus princípios passaram a informar calibrações híbridas de combustão controlada. Ainda que raramente adotados em estado puro, seus princípios passaram a informar calibrações reais, permitindo transições suaves entre combustão por centelha e por compressão conforme carga e rotação. O motor deixou de funcionar em um único modo. Ele passou a escolher como queimar o combustível

O resultado concreto desse processo foi um salto histórico. Motores a gasolina modernos já operam com eficiências térmicas próximas ou superiores a 40% em condições específicas de carga e rotação, algo que até recentemente era considerado inalcançável fora de ambientes de laboratório. Em aplicações específicas, números que beiram 45% deixaram de ser hipótese. Para qualquer engenheiro formado antes dos anos 2000, isso soaria impossível.
No campo dos motores Diesel, o avanço foi ainda mais brutal, especialmente em aplicações pesadas e estacionárias, onde algumas soluções migraram parcialmente para veículos leves. A combinação de pressões de injeção estratosféricas, múltiplos pulsos por ciclo e controle de recirculação de gases levou motores de produção a ultrapassar a marca de 50% de eficiência térmica.
Nada disso aconteceu isoladamente. Paralelamente, a eletrificação parcial deixou de ser ideológica e passou a ser funcional. Sistemas híbridos modernos não existem para substituir o motor térmico, mas para protegê-lo de suas zonas de ineficiência. Ao eliminar partidas a frio frequentes, operar o motor próximo de seu ponto ótimo e recuperar energia que antes virava calor nos freios, o híbrido tornou-se um amplificador da eficiência do motor, não o seu algoz.

Quando o ciclo de vida — sempre dependente da matriz energética local — esse conjunto técnico desmonta o dogma dominante. Um motor moderno, operando com biocombustíveis avançados ou combustíveis sintéticos, pode apresentar uma pegada de carbono comparável — ou inferior — à de um veículo elétrico produzido com baterias de alto impacto ambiental e alimentado por uma matriz elétrica intensiva em carvão. Na prática, um carro flex que roda com etanol no Brasil, é mais limpo que um carro elétrico que usa energia de usina termelétrica na Alemanha.
O problema é que essa vantagem não cabe em slogans, não rende manchetes fáceis e não se traduz automaticamente em narrativas políticas simples. Explicá-la, exige atenção e mais linhas do que os slogans que favorecem o banimento do motor térmico — como se estivéssemos regulando carburadores e soprando giclês, em vez de usar um blend de gasolina e etanol em um sistema termodinâmico de altíssima complexidade e eficiência.
O motor a Europa tentou aposentar à força é, paradoxalmente, o mais eficiente, limpo e sofisticado que já existiu. O purgatório em que ele foi colocado não é resultado de falência técnica, mas de sucesso excessivo em um mundo que já decidiu qual deveria ser o próximo capítulo da história — antes mesmo de terminar de escrever o atual.
No próximo capítulo, veremos o futuro da combustão — especialmente agora que as fabricantes têm alguma segurança para continuar desenvolvendo-os.
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