FlatOut!
Image default
Car Culture

A Brasilia de rali que atravessou o Saara e a Europa – e voltou para contar a história

A Brasilia azul e laranja de Ingo Hoffmann foi, sem dúvida, a Brasilia mais famosa da história do automobilismo, mas ela não foi a única. Na própria Divisão 3, houve várias outras Brasilias com preparação semelhante à de Ingo Hoffmann e ou com alterações mais radicais como a Brasilia do piloto J.A. Bruno, que tinha a dianteira aerodinâmica, baixa como a de um protótipo da época.

Mas houve ainda uma outra Brasilia que fez história mundo afora — e não estou falando da Brasilia do Sr. Barriga, e sim da Brasilia que disputou o Rali da Copa do Mundo em 1974, com os pilotos Claudio Mueller e Carlos Weck. Algumas fontes mencionam Ingo Hoffmann como piloto desta Brasilia, mas ele estava no Brasil, ocupado conquistando o título da Divisão 3.

O Rali da Copa do Mundo, como seu nome sugere, foi o segundo e último dos ralis organizados como parte dos eventos das Copas do Mundo de futebol de 1970, no México, e 1974, na Alemanha. A primeira edição partiu de Londres, Inglaterra, e terminou na Cidade do México, a capital Mexicana, pouco antes do início da Copa do Mundo. Como o rali pretendia também promover a copa do mundo, ele passou por diversos países, saindo da Inglaterra, depois para a França, Alemanha, Áustria, Hungria, Iugoslávia, Bulgária, Itália, França de novo, Espanha, Portugal, então atravessou o Atlântico para chegar ao Brasil antes de seguir para o Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Panamá e Costa Rica antes de, finalmente, chegar ao México.

Esta primeira edição foi um acontecimento e tanto, com mais de 100 carros inscritos e todos os tipos de preparação e competidores, desde amadores com carros de rua, até pilotos profissionais apoiados por fabricantes. Os vencedores foram Hannu Mikkola e Gunnar Palm, a bordo de um Escort 1850 GT Mk1 apoiados pela Ford britânica e pelo jornal Daily Mirror. É por causa desta vitória que o Ford Escort Mk1 também é conhecido como “Escort Mexico” — ele teve uma edição especial comemorativa e o apelido se estendeu, informalmente, àquela geração.

Na segunda edição o rali partiu novamente de Londres, mas agora em direção a Munique, na Alemanha Ocidental (ela era dividida em duas, lembra?). A crise do petróleo de 1973 atrapalhou um pouco as coisas. O número de inscritos foi bem menor, com “apenas” 70 carros e o percurso não teve nenhuma travessia marítima, provavelmente para reduzir custos. Em vez disso, ele se estendeu pela África antes de retornar à Europa. Depois da Inglaterra, os carros foram para a França, Espanha, Marrocos, Argélia, Níger, Nigéria, Argélia de novo, Líbia, Tunísia, Itália, Turquia, Grécia, Iugoslávia e Alemanha.

Entre os 70 carros estava a Brasilia de Claudio Mueller e Carlos Weck, patrocinados pela APLUB, uma associação de previdência privada de profissionais liberais, criada no Rio Grande do Sul. O plano foi apresentado à Volkswagen em 1973 por Carlos Weck e Jorge Ullmann, então campeões brasileiros de rali. A Volkswagen, na época, se interessou pois a Brasilia era um carro recém-lançado e a exposição do modelo em uma competição internacional com tamanha exposição poderia ser uma boa oportunidade de conquistar novos mercados para exportação. A Brasilia acabaria exportada para o México, Filipinas, Nigéria, Portugal, Bolívia, Venezuela e Chile, mas a Volkswagen não apoiou a equipe, que foi com um carro comprado com recursos dos patrocinadores.

A Volkswagen não foi a única fabricante a não participar do negócio oficialmente. A já mencionada crise do petróleo, além de reduzir o número de carros no grid, também afastou as fabricantes — a maioria delas, na verdade. Então praticamente todos os competidores foram por conta própria, bancados apenas por seus patrocinadores, exatamente como fizeram os brasileiros.

O rali ainda teve uma atrapalhada gigantesca dos organizadores, que erraram as pace notes e mandaram todo mundo para uma estrada que terminava no meio do deserto do Saara, na Argélia. Resultado: quase todo mundo se perdeu no deserto e apenas sete carros conseguiram cruzar o estágio. Destes sete, dois acabaram abandonando a prova já depois de cruzar o deserto — imagine isso, atravessar o Saara praticamente perdido para, depois, sair da prova por atropelar um cachorro grande, como aconteceu com um Jeep V8 de uma equipe americana.

Os carros que se perderam foram socorridos por equipes de busca aérea, e levados para o estágio seguinte. Stirling Moss foi um deles: eles estavam em um Mercedes e ficaram em uma fortaleza abandonada no deserto e só puderam continuar a prova depois que um caminhão de água da equipe de suporte os encontrou. A ironia: o inventor das pace notes acabou perdido no deserto por erro das pace notes.

O Mercedes de Moss

As dificuldades de se atravessar o deserto do Saara mesmo com as pace notes corretas fez com que as penalidades escalassem de forma exponencial. Somente 19 carros terminaram a prova e os brasileiros foram um deles. Infelizmente há poucos relatos sobre a aventura da dupla no rali. Um dos poucos disponíveis foi publicado por Fernando Calmon na revista “O Cruzeiro” de 12 de junho de 1974:

Cláudio Muller (piloto) e Carlos Weck (navegador campeão brasileiro de rallies) retornaram a Porto Alegre depois de atuação sensacional e heróica no Rally da Copa do Mundo. A dupla da equipe Aplub levou seu VW-Brasilia ao nono lugar na categoria e 16º na classificação geral. Quando saíram do Brasil para a aventura de mais de 20 dias, sem nenhum esquema de apoio ao carro durante todo o trajeto superior a 17.000 quilômetros, muitos afirmavam que não passariam da metade do caminho.

Largando de Londres, no dia 5 de maio, juntamente com 70 concorrentes de vários países, a dupla gaúcha terminou o trecho europeu em 13.° lugar entre 60 equipes ainda competindo. O trecho no norte da Africa foi arrasador. Carros perdidos no deserto do Saara e grande número de abandonos fizeram com que os organizadores interrompessem o rally em Tamanrasset a fim de alguém conseguir chegar a Munique.

Uma pedra destraiu o câmbio do Brasília e enquanto Muller providenciava os consertos, Weck viajou de táxi aéreo até Tânger. Auxiliado pelo sr. Márcio Dias, da embaixada brasileira, conseguiu comprar as peças do câmbio com grande dificuldade. Reiniciado o rally (estavam já em sexto lugar por causa das desistências) capotaram na Turquia ao falhar os freios do carro. Desviraram o Brasilia e prosseguiram.

No extremo ocidental da Europa, a dupla enfrentou neve e ainda assim conseguiu ganhar alguns primes (trechos contra o relógio). No final, apenas 19 concorrentes sobraram. O Brasilia verde-amarelo da equipe Aplub e os pilotos Muller/Weck estavam entre os que podiam contar a história.

O rali foi vencido por um Citroën DS da Austrália, seguido por três Peugeot 504 TI apoiados pela própria fabricante. O Citroën chegou com uma vantagem de nada menos que 28 horas sobre o segundo colocado e mais de 63 horas à frente do quarto colocado. Mueller e Weck chegaram 13 dias depois, mas ainda assim cinco dias antes do último classificado, que terminou o rali 18 dias depois dos vencedores.

Como tantos carros de corrida do passado, esta Brasilia não existe mais — restou apenas seu capô original, que foi usado como referência para a reprodução fidedigna que repousa no Acervo do Museu do Automobilismo Brasileiro em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.