Como pode uma Ferrari que sequer foi idealizada pela Ferrari um dos modelos mais icônicos e reconhecidos da marca? É uma pergunta retórica, claro. A resposta é simples e direta: basta vencer corridas — ou chegar perto de vencê-las. Ah, e se ela tiver uma carroceria marcante, também ajuda.
É mais ou menos este o resumo da Ferrari 250 GT SWB Breadvan. Ela veio ao mundo, em 1961, (mais ou menos) desse jeito:
Mas logo em 1962 ela foi transformada nisso aqui:
Levando em conta nossa percepção não-treinada para o automobilismo, a transformação da Ferrari pareceu um mau-negócio — especialmente se você considerar a estética do carro. A 250 GT SWB é um dos carros mais belos já modelados pela humanidade e, como se isso não fosse suficiente, ele também era rápido e competitivo.
Em 1961 a SWB Berlinetta venceu a Classe GT do Mundial de Construtores do WSC e ainda faturou a Tour de France entre 1960 e 1962 e só parou de vencer porque foi substituída pela 250 GTO, que continuou vencendo.
A 250 GT SWB Breadvan entrou em cena naquele mesmo 1961, mas ainda com sua carroceria original. Com Olivier Gendebien e Lucien Bianchi ela terminou o Tour de France em segundo lugar. Depois disputou os 1000 Km de Paris em Monthléry com Maurice Trintignant e Nino Vaccarella, que terminaram em terceiro lugar geral. E então sua história mudou.
Em 1962 o proprietário da Scuderia Serenissima, o Conde Giovanni Volpi, tentou comprar uma Ferrari nova para seu time, mas teve o pedido recusado por Enzo Ferrari. O motivo? Ele havia contratado Carlo Chiti e Giotto Bizzarrini, que haviam sido demitidos depois do “motim” dos funcionários da Ferrari para exigir que fosse retirada do comando da Scuderia ninguém menos que a esposa do chefe, Laura Ferrari.
Como uma disputa entre funcionários e a esposa de Enzo quase matou a Ferrari
Pode parecer o típico caso de ressentimento e vingança que vemos nos filmes de máfias italianas, mas o caso era que Bizzarrini e Chiti haviam iniciado o desenvolvimento da 250 GTO. Um carro daquele nas mãos de uma equipe rival — cliente, porém ainda rival — não era algo que Enzo desejasse.
Diante da situação, Volpi decidiu responder à altura. Pediu à dupla que construísse um carro melhor que a 250 GTO.
Naturalmente, o carro não seria feito do zero: em vez disso, o trio optou por arranjar uma Ferrari 250 GT SWB, fabricada em 1961, para servir como base. A escolha não foi difícil: além de ter entre-eixos mais curto, de 2,40 m em vez dos 2,60 m das outras Ferrari da família, a 250 GT SWB havia sido desenvolvida por ninguém menos que Bizzarrini e Chiti. Eles conheciam cada centímetro do carro.
De qualquer forma, apenas a estrutura básica permaneceu igual à do carro de rua. A carroceria era completamente nova, substituindo a grade dianteira oval e os faróis elevados por uma frente de perfil mais baixo, sem grade (apenas com dois dutos para arrefecer o motor), com perfil de cunha e faróis cobertos por lentes de acrílico.
Bizarrini deslocou o radiador e o motor ainda mais para o centro do chassi — mais que na 250 GTO — e ainda deu um jeito de posicioná-lo mais baixo usando um novo sistema de cárter seco. A carburação original, composta por três Weber DCN 46, foi substituída por seis Weber DCN 38 de corpo duplo. Da mecânica original, a única coisa que sobrou foi o câmbio de quatro marchas.
A porção central do carro até lembrava a 250 GTO, mas ela era toda mais baixa que a nova Ferrari. Além disso, o segredo do carro estava depois da porção central. Com ajuda do aerodinamicista Piero Drogo, a dupla desenvolveu uma traseira jamais vista em um carro de corrida até então: em vez de dar ao teto uma queda suave, formando uma silhueta de fastback, o teto seguia quase horizontal e a traseira, bem mais alta, trazia um corte abrupto praticamente vertical. O vigia traseiro era uma janela retangular, integrado à tampa do “porta-malas”, e não havia janelas laterais. Esteticamente o resultado é estranho, mas havia uma função: a traseira era do tipo Kamm, ou Kammback.
Elaborado pelo aerodinamicista alemão chamado Wunibald Kamm na década de 1930, o conceito dizia que para alcançar a forma mais aerodinâmica possível era preciso criar uma cauda virtual. A carroceria deveria ter o formato de uma gota, mas antes de iniciar a cauda era feito um corte abrupto. Mesmo sem a superfície, o fluxo aerodinâmico formaria uma cauda “virtual” alongada que reduziria o arrasto.
No fim, o carro parecia um furgão de entregas, o que levou a imprensa francesa a batizá-lo de “La Camionette” e a imprensa britânica de “Breadvan”, como se fosse um carro de entregar pães. Os apelidos pegaram e ainda que não fossem muito respeitosos, o carro era competitivo.
Mais curto que a 250 GTO, e 65 kg mais leve (a GTO pesava 1.000 kg, enquanto a Breadvan tinha 935 kg), ele tinha um motor tão potente quanto e aerodinâmica ainda mais refinada. O câmbio de quatro marchas era o único revés diante da 250 GTO, mas o escalonamento e a aerodinâmica do carro compensavam, em parte, esta desvantagem.
Naturalmente, Enzo Ferrari não ficou nada contente com isso, e exigiu que o carro não usasse o nome e nem os emblemas da Scuderia. Apesar disso, o carro foi inscrito em sua prova de estreia, a 24 Horas de Le Mans de 1962, como Ferrari 250 GT Drogo.
O italiano Carlo Maria Abate e o britânico Colin Davis revezaram-se ao volante. O carro nº 16 largou lá atrás, mas rapidamente ultrapassou as Ferrari 250 GTO e assumiu a sétima posição… até que uma quebra no cardã a tirou da corrida antes que se completasse quatro horas. Quem venceu foi a Scuderia Ferrari, com uma 330 TRI/LM Spyder seguida de duas 250 GTO.
Depois de Mans a 250 GT Drogo/Breadvan ainda disputaria outras quatro provas em 1962 e uma última em 1965, repintada de preta. Na Guards Trophy, em Brands Hatch, novamente com Abate e Davis ao volante, o carro terminou vencendo em sua classe GT e no 4º lugar geral. Na subida de montanha de Ollon-Villars, Abate conseguiu o mesmo resultado — 1º na classe e 4º geral. Nos 1000 Km de Paris Davis juntou-se a Ludovico Scarfioti e ambos terminaram em terceiro lugar geral.
A última prova da Breadvan pela Scuderia Serenissima seria o GP de Porto Rico, mas a morte de Pedro Rodríguez no GP do México levou o Conde Volpi a abandonar o evento. Depois o carro foi vendido e reapareceu pela última vez em 1965, na subida de montanha Coppa Gallenga, com Edgardo Mungo, que terminou a prova em 9º lugar.
A Ferrari 250 GT Breadvan então foi convertida para uso nas ruas até 1973, quando passou a ser considerado um carro de corrida histórico e iniciou sua terceira vida como um corredor clássico — atividade que exerce até hoje nos eventos de clássicos de todo o mundo.
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