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Car Culture

A história de Ken Block – dos tênis de skate ao Mundial de Rali

É curioso, esse bicho gente. Segundo as estatísticas do National Leographic, a maior causa mortis da humanidade é o nascimento: 100% das pessoas que morreram em 2022 têm em comum o fato de terem nascido. Implacável, esse negócio de nascimento.

Tão implacável que, por causa desta estatística, as pessoas procuram aproveitar ao máximo o tempo que ganham com o nascimento. Afinal, quem sabe quando ele irá acabar? É o tipo de coisa que nos faz sair da cama pela manhã e realizar coisas.

A evolução da humanidade mudou um pouco nossa percepção sobre a impermanência. Ficar muito velho se tornou normal. A maioria das pessoas hoje convive com ao menos um dos avós, algo que não era tão comum na geração dos nossos pais. Alguns chegam a conhecer seus trinetos — quem poderia pensar nisso há 60 ou 70 anos?

Só que essa noção de que é normal viver 80 ou 90 anos pode resultar na ideia de que temos tempo de sobra — algo como aquela história de a adolescência durar até os 24 anos atualmente. Jim Clark estreou na Fórmula 1 aos 24 anos. Fernando Alonso e Max Verstappen foram campeões mundiais com 24 anos. É tempo suficiente para se tornar o melhor do mundo em uma habilidade.

É justamente um piloto de Fórmula 1 que nos traz uma das grandes lições sobre o tempo. Bruce McLaren, em certa ocasião, disse que “fazer algo bem-feito é tão valioso que morrer tentando melhorar não pode ser considerado imprudente. Seria desperdício de vida não fazer nada com sua capacidade, de forma que eu sinto que a vida é medida em realizações, não em anos”.

March 1970: New Zealand motor-racing driver Bruce McLaren (1937 – 1970) sits on the wheel of his McLaren-Ford M14A before the start of the Race of Champions at Brands Hatch in Kent. (Photo by Fox Photos/Getty Images)

Bruce McLaren, que já não está entre nós há mais de meio século, mas ainda é lembrado por suas realizações, mesmo tendo vivido apenas 32 anos. E note que ele não fala em desperdício de tempo, mas desperdício de vida — o que, no fim das contas, é a mesma coisa. Bruce McLaren não está mais aqui, mas suas realizações irão sobreviver por muito tempo além de sua própria existência.

O que nos traz à história de Ken Block, piloto americano que sofreu um acidente fatal nesta última segunda-feira, 2 de janeiro. Ele tinha 55 anos, mas sua vontade de realizar as coisas fez com que ele permaneça muito além de sua própria existência.

Talvez você não saiba, mas a carreira de piloto é a segunda carreira de Ken Block. Antes disso, ele fazia camisetas e tênis de skate, na hoje mundialmente famosa DC Shoes Co.

A história começou em 1989, quando Block conheceu o skatista Danny Way, irmão de seu amigo da faculdade, Damon. Danny, então com apenas 15 anos, era uma das grandes promessas do skate naquele final dos anos 1980, e acabou “patrocinado” por uma marca de camisetas criada por Block e Damon, chamada Eightball.

Os dois estampavam camisetas com quadros serigráficos, enquanto Danny ganhava campeonatos e tornava a marca famosa. Ele foi o skatista mais jovem a ganhar um campeonato profissional, ainda naquele ano de 1989.

A fama de Danny catapultou a Eightball, que acabou transformada em uma empresa bem maior, chamada Droors Clothing. Com uma expansão contínua da empresa, ela acabou comprada por uma holding que investiu na marca, expandindo sua atuação. Foi quando Block e Damon — agora com Colin McKay e Rob Dyrdek — perceberam que não havia calçados exclusivos para skate com a mesma qualidade de materiais e tecnologias que os demais esportes. Eles então criaram a Droos Clothing Shoes, que ficou conhecida como DC Shoes Co, e colocaram os tênis nos pés de Danny Way, que foi o primeiro atleta apoiado pela marca.

Ken Block, Lucy Block, Damon Way e Susie Way em 2005

Em 1997, apenas três anos depois da criação da DC Shoes, eles já tinham 8 atletas profissionais usando os tênis DC Shoes em campeonatos e exibições por todo o mundo, e ainda naquele ano, o esporte motorizado entrou na vida profissional de Block pela primeira vez. Foi quando a DC criou uma equipe de motocross e surf, explorando o mercado de esportes radicais ainda em ascensão em termos de popularidade.

A estratégia de divulgação era clássica: realizar grandes feitos com a marca como pano de fundo. Uma destas exibições tinha Danny Way saltando de um helicóptero a pouco mais de 10 metros de altura, direto em um half-pipe. E no half-pipe, claro, a marca da DC Shoes por todos os lados.

A marca começou a crescer não apenas entre os praticantes de esportes radicais, mas também no segmento de moda esportiva, passando a concorrer com Nike e Reebok, por exemplo. O crescimento quase meteórico, levou a DC Shoes ao próximo passo: a venda para uma empresa ainda maior.

Esta empresa era a gigante dos esportes radicais Quiksilver, que assumiu o comando da DC em 2004, mas manteve Block à frente da gerência da marca para manter a alma do negócio mesmo nesta nova etapa. E ali, como diretor de marca, Ken Block cruzou com automobilismo pela primeira vez: Travis Pastrana, piloto de motocross apoiado pela DC Shoes, decidiu trocar as motos pelos carros e levou a DC para o universo dos ralis.

Ken Block em 2005, no GumBall

Block ficou imensamente interessado nos ralis, tanto que entrou em contato com a equipe de Pastrana, a Sno’Drift, e perguntou como poderia entrar nesse mundo do rali. Block descobriu levar jeito para o negócio e, no ano seguinte, 2005, estava disputando a temporada inaugural do Rally America a bordo de um Subaru Impreza. Block terminou o campeonato em quarto lugar, à frente de Travis Pastrana (!) e, aos 38 anos, iniciava uma nova carreira — aquela que o tornaria ainda mais realizado.

Block continuou promovendo a DC Shoes, agora como um showman de sua própria marca. Em 2008, a bordo do seu Subaru, ele produziu aquele que seria o primeiro de uma série de vídeos que mudaria a cultura automobilística para sempre: Gymkhana.

O vídeo era inovador para o universo automobilístico. Usando a linguagem típica dos esportes radicais, como a série de skate Bones Brigade, da Powell-Peralta nos anos 1980 e 1990 (acima), ele apresentou uma sequência de manobras de precisão e controle, com técnicas de drifting e rali em um circuito fechado, preparado para um grande efeito dramático.

Nos primórdios do YouTube e das redes sociais, o vídeo fez sucesso instantâneo. Ninguém havia visto uma produção como aquela até então. Havia Pluspy, havia o Top Gear, mas nada tinha a linguagem revolucionária apresentada em “Gymkhana”. As câmeras de ação instaladas na carroceria do carro (note que ainda não havia as “Go Pro”, que se tornaram fundamentais para a produção da série), as tomadas aéreas, onboards e close-ups que apareceram em “Gymkhana” inauguraram uma nova era na produção de vídeos de automóveis.

Em 2010, Ken Block deu um passo mais ousado: com o fim da parceria com a Subaru, ele abriu sua própria equipe de corrida, a Hoonigan, e trocou o Subaru WRX pelo Ford Fiesta WRC. A partir dali, a Hoonigan foi a produtora dos vídeos Gymkhana, que ainda promoviam a DC Shoes, uma das parceiras da equipe de Block, assim como a Ford Racing e a fabricante de energéticos Monster Energy.

Com a Hoonigan, Block conseguiu expandir sua atuação no rali, chegando a disputar etapas do WRC e do World Rallycross, ambos da FIA, entre 2011 e 2014. Ali também ele protagonizou outros nove episódios da Gymkhana — no terceiro vídeo eles foram à França aniquilar o L’Autodrome de Linas. No quarto, ao pátio do Universal Studios fazer um “megamercial”.

Depois, Block vai a San Francisco, e levou a série ao auge. Tanto que Gymkhana 6, que acontece em um circuito, pode ser a mais técnica, mas carece da insanidade que fez a 5ª em San Francisco tão convincente. Com sua série de vídeos, Block estabeleceu um novo padrão e mudou a cultura automobilística para sempre.

Nos últimos anos, ele juntou-se à Audi, fazendo uma Gymkhana elétrica e começou a, lentamente, abrir espaço para sucessores como seu amigo Travis Pastrana e sua filha Lia, agora com 16 anos e já seguindo os passos do pai em um Audi Quattro.

Em uma triste coincidência, a última publicação de Block nas redes sociais antes de seu acidente, foi justamente sobre sua filha — ele havia acabado de anunciar o lançamento do vídeo no qual Lia finalmente iria dirigir o Audi Quattro construído por eles. Horas depois, Block pilotava sua moto de neve quando o veículo tombou sobre o piloto, que não resistiu aos ferimentos.

Block não foi um piloto campeão — seus resultados no WRC fizeram muita gente colocar em dúvida seu verdadeiro talento para a pilotagem, esquecendo que ele tinha menos de 10 anos de carreira e já havia passado dos 40 quando entrou nessa. Suas realizações contudo, tanto como empresário, quanto como entusiasta e piloto, estão nos pés, na cabeça e na memória de milhões de entusiastas dos carros e dos esportes radicais em todo o mundo.

Ken Block viveu apenas 55 anos, deixou uma filha, dezenas de amigos, milhões de fãs e um legado inegável, que será lembrado sempre que alguém contar a história dos automóveis neste início do século 21. Sua partida é triste, mas veja por outro lado: Block não desperdiçou nada destes 55 anos, e por isso permanecerá além de sua existência.


 

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