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Car Culture

A história dos Porsche 911 de rali

Durante a maior parte de sua história, as competições de rali não costumavam gerar modelos especiais, homologados somente para este tipo de competição. Na verdade, nem carro esporte: se você olhar uma lista de vencedores do Rali de Monte Carlo por exemplo, vai ver que até o início dos anos 1960, e o aparecimento de Mini Cooper S, seguidos pelos Porsche 911 e Alpine A110, muito pouco carro de índole realmente esportiva ganhava a prova.

Ford Zephyr, 1953: isto não é um carro de corrida.

Já ouviram falar do Ford Zephyr inglês? Este porcino sedã é um calmo e cordato automóvel de transporte diário, e muito pouco além disso; é tão atlético quanto um septuagenário artrítico jogador de xadrez, mas é também o vencedor de 1953. Mesma coisa pode-se dizer do alto e estreito sedã Sunbeam-Talbot 90, o vencedor em 1955. Até Renault Dauphine já ganhou um Rali de Monte Carlo, o que definitivamente denigre um bocado a imagem dos outros vencedores. Nada contra Dauphines, mas convenhamos…

O fato é que os anos 1960 trouxeram com eles o início da especialização em competições organizadas. Automóvel se tornava cada vez mais um negócio mundial e importantíssimo, e vitórias em competição, como consequência, se tornavam mais importantes. Onde antes apenas duplas de mamãe e papai resolviam colar números nas portas e fazer um rali no fim de semana com o family bus, agora parecia que apenas profissionais dedicados de dentes cerrados e determinação aparente apareciam, com armas cuidadosamente preparadas pelos fabricantes, às vezes às escondidas quando as regras exigiam amadorismo.

Sunbeam-Talbot 90: isso também não é um carro de corrida.

Uma maneira de contornar essas regras era oferecer opcionais específicos para competição. Nos EUA era uma prática comum, para provas de arrancada perincipalmente. Rapidamente este tipo de acessório aparece na Europa também para competições de rali, até ali teoricamente ainda uma categoria amadora. Engraçado isso: todo o automobilismo até ali era visto como um passatempo de gentleman, e envolver dinheiro ou patrocínio, algo de mal gosto, rude, inaceitável. Mas era algo tão legal, tão famoso e acompanhado por tanta gente, que sua importância dá nascimento à profissionalização, que inicialmente impulsiona o esporte. Profissionalismo leva a aumento de custos, que leva a mais profissionalismo, que leva a redução de riscos para os pilotos e tentativa de igualar as condições de competição. Claro que gente vivia de corridas desde sempre, mas era uma ocupação pobre antes, que só se perseguia por paixão. Onde antes existiam épicos amadores arriscando a vida somente pela glória de vencer, agora temos milionários atletas profissionais competindo sem risco algum, pela glória de mais dinheiro e fama. Depois ninguém sabe porque cada vez menos gente se importa com eles…

Mas divago, para variar. O que queria contar aqui é que, ao contrário de marcas como a Lancia e até a Audi, a Porsche, famosa por competições de carros esporte em pista, não é especialmente conhecida por sua participação em rali. Mas não quer dizer que nunca participou, ou criou carros para isso.

No início, todo Porsche de competição era assim: o cupê Gmünd.

Na verdade, desde o início, desde a primeira batelada de cupês 356 com carroceria de alumínio e 1.100 cm³  feitos em Gmünd, os Porsche competem em rali. Rali para um Porsche é como água para peixe: seus carros sempre prezaram pelo tamanho contido e desempenho superlativo no mundo real, em ruas com buracos, em terra e neve. Se descontarmos a primeira vitória da marca em competição oficial, num circuito de rua da cidade de Innsbruck em 1948, a marca começa mesmo sua onda incessante de vitórias internacionais com a vitória do 356 de Otto Mathé no Alpine Rally de 1950, na categoria até 1100 cm³.

O 356 a partir daí vence regularmente; particularmente em eventos de longa duração como os Marathon de la Route, organizados pelos Belgas anualmente como provas de velocidade e durabilidade. Mas a mais legal época da Porsche em rali aparece com o advento do 911 em 1965; desde o início o carro compete em rali, mas devido à época e evolução do esporte, a Porsche tem que fazer mais que só esperar vitórias de amadores: tem que criar carros especiais para garantir essas vitórias. Como resultado, versões mais especializadas, raras, e hoje altamente desejadas do 911 aparecem. É desses incríveis carros, talvez os mais interessantes 911 da história, que falaremos hoje.

911R (1967)

O 911 compete em todo tipo de evento desde seu lançamento em 1965, claro, mas o impulso verdadeiro para este novo tipo de Porsche ocorre ao final de 1966, com o lançamento do 911S. Este carro redime o 911 para o entusiasta, trazendo de volta à Porsche o foco na esportividade; o 911 até ali era considerado pelos puristas um gordo e enorme cupê de luxo, uma ofensa para a marca do ágil e esperto 356. Parece incrível olhando de hoje, mas era a realidade.

Já no lançamento, a Porsche, empurrada decisivamente pelo jovem Ferdinand Piëch no departamento de competição, dava armas para quem quisesse usar um 911S em corridas. Uma série de componentes eram oferecidos via pedido especial em concessionário, tanto como kit de peças, como já montados no seu carro zero km de fábrica. Descritos em um catálogo especial (W171), os kits consistiam em barras estabilizadoras, pastilhas de freio, e Kits para motor. O catálogo também trazia desenhos completos dos coletores e cabeçotes, e um desenho de um coletor de escape de competição, para que o cliente encomendasse em alguma loja de escapamento. O Kit de motor, com carburadores especiais maiores, e o escapamento, prometia 175 cv, quinze mais que o carro sem modificações. Eram chamados de “Rally kits”.

Era só o começo. Em desenvolvimento no departamento de Piëch estava uma versão ainda mais dedicada, a ser chamada de 911R. Em 1967, o famoso piloto inglês Vic Elford vence o Marathon de la Route com um protótipo do R, mas um que também aproveitava o ensejo para testar um novo tipo de transmissão, lançado no mesmo ano no 911, o Sportomatic.

Um pequeno parêntese aqui para explicar isso, que vale a pena. O Sportomatic era uma tentativa da Porsche em criar uma transmissão “automática”, mas sem perder a esportividade característica de seus carros. Os automáticos epicíclicos de então eram insatisfatórios, mas o mercado americano cada vez mais pendia para este lado. Então a Porsche desenvolveu ela mesmo este sistema intermediário, efetivamente um câmbio semi-automático: apenas o pedal da embreagem sumiu, as marchas ainda tinham que ser trocadas pelo condutor. O sistema era simples: um conversor de torque servia para arranque e para ficar parado em marcha-lenta. Uma embreagem (menor, pela existência do conversor no arranque) com acionamento automático ao se tocar a alavanca de câmbio, também existia para as trocas quando o carro estava em movimento. Nada de mão repousando na alavanca de câmbio, ou embreagem acionava; só se tocava nela ao trocar  de marcha mesmo.

Esta caixa nunca foi um sucesso e logo desaparece, mas tem seus fãs até hoje. Um deles é Vic Elford, que depois de vencer o Marathon de la Route com um, especificou seu 911 de rua com esta caixa. Explica: “Depois que se pega o jeito, permite trocas precisas e super-rápidas. Era absolutamente maravilhoso, dando menos fadiga na corrida, e totalmente confiável, funcionando sempre impecavelmente.” Helmuth Bott usava ali o Marathon de la Routecomo um teste para a nova transmissão: “A prova incluía 84 horas à carga máxima em Nurburgring! Em Weisach nós nunca conseguiríamos fazer isso, é muito estressante para os nossos engenheiros. Mas pilotos como Vic Elford são de outra cepa…”

Mas e o resto do carro? O 911R era um clássico carro de corrida derivado de série: menos peso, mais potência, menos conforto, mais velocidade e foco. A carroceria era criada com chapas selecionadas: no limite inferior de tolerância, mais leves. Todas as dobradiças, de capô, porta-malas e portas, eram em alumínio. O para-brisa também era selecionado, mais leve possível. Os outros vidros eram na verdade plexiglass; o quebra-vento era fixo. Bancos Schell de competição eram usados. Somente esta primeira leva de 3 carros usou o Sportomatic; todos os outros usavam câmbio manual de 5 marchas normal.

Os discos de freio mantinham o diâmetro do S, mas eram totalmente diferentes: ventilados nas quatro rodas, e com maior área de pastilha. As rodas eram as do 911, mas mais largas: sete polegadas atrás e seis na frente.

O motor era especial, de competição: mantinha os 1991 cm³, mas usava cabeçotes com vela dupla, válvulas e dutos maiores, e dois Weber de corpo triplo e 46 mm. Com taxa de compressão de 10.3:1, e cárter seco, eram 210 cv a 8.000 rpm e 15,5 kgfm a 6.000 rpm.

A ideia era que fossem apenas carros de competição oficiais da Porsche, e que nenhum fosse vendido. Mas isso logo muda: uma versão “de produção” aparece, teoricamente disponível para todos que quisessem comprar, mas na realidade somente pilotos profissionais apareceram para isso. A diferença principal é que para esses 20 carros, não houve seleção de peças para a carroceria. Vinte carros são feitos e vendidos, todos brancos. Pesavam 821 kg em ordem de marcha, 204 kg a menos que o 911S, e apenas 20 kg a mais que a média dos protótipos.

Como já contamos aqui na história do motor do 959, uma versão de motor ainda mais potente apareceria nos 911R de fábrica em 1968: um motor com duplo comando de válvulas no cabeçote, pela primeira vez num 911. Entregava nada menos que 230 cv a 9.000 rpm. Mas nenhum desses motores DOHC foi vendido ao público, a não ser em carros de corrida usados, vendidos ao fim de sua carreira.

O 911R não era um carro exclusivamente de rali; foi usado também em competições de pista. Mas para isso, não era tão competitivo: em rali, era uma arma formidável e cobiçada ao fim dos anos 1960.

911 S-T (1971)

Em 1969, a segunda série do 911 é lançada, e com ele uma série de melhorias: injeção de combustível e entre eixos aumentado as mais visíveis das várias alterações. Este era na verdade um extenso redesenho do carro inteiro, praticamente um novo 911. O 911S passava a dar 170 cv a 6.800 rpm. Um time de quatro 911S compete em Monte Carlo em 1969, e Vic Elford, ele de novo, ganha a prova.

Em 1970 podia-se comprar um 911S “básico”, agora com o novo motor de 2,2 litros e 180 cv – na verdade um leve carro sem opcional nenhum, pronto para ser preparado para competições do Grupo 4 da FIA, que incluíam ralis. O peso homologado para este carro na FIA era de apenas 838 kg.

Em 1971, aparece o novo motor de 2,4 litros (na verdade 2341 cm3), e o 911S agora tem tanta potência quanto os 911R de antes: 210 cv a 6.500 rpm. Para competições, isto significava que estaria numa categoria maior, porém, de até 2,5 litros de deslocamento. A Porsche resolve por isso fazer um motor especial maior, para competição.

De novo produzido em baixíssima quantidade, o 911 S-T tem algo hoje muito apreciado: os para-lamas traseiros eram alargados, mas não tanto quanto no futuro seriam os dos 911 turbo: este carro é bem mais bonito. Dizem que a Singer se inspira nesta carroceria para fazer seu adorado 911 moderno-retrô-steampunk.

Algo ao redor de 20 carros foram criados, com deslocamento inicialmente de 2494 cm³, via aumento de diâmetro de cilindro para 86,7 mm. Com injeção Bosch, dava 275 cv a 7.900 rpm, e 20 kgfm a 6.200 rpm. O peso aumentara em toda a linha 911 com os novos motores porém; o 911 S-T , depenado como um bom carro de rali, pesava 950 kg. Como a Porsche não tinha rodas Fuchs mais largas, originalmente atrás iam Minilites, fazendo um visual estranho, mas normal em competição.

911 SC/RS (1984)

O aparecimento do grupo B da FIA em 1982 detona o aparecimento de mais três carros de rali baseados em 911. O primeiro deles é o 954, vendido ao público em 1984 com o nome de 911 SC/RS.

Era a evolução mais fácil do 911 para se enquadrar do grupo B, e usava um motor baseado em série, nada exótico. Mesmo assim, o resultado ainda é algo lembrado com carinho por todos que o conheceram de perto. Baseado no motor de três litros do 911 SC então corrente, usava cabeçotes de competição (os mesmos dos 935), bem como comando mais bravo. Com taxa de compressão de 10,3:1, dava 250 cv a 7.000 rpm e 18,8 kgfm a 6.500 rpm. O peso foi reduzido de 1.179 kg para 1.056 kg, mostrando bem como o 911 engordou durante os anos. Ficou longe do limite mínimo para carros de três litros no grupo B: podia pesar até 960 kg.

Homologado! Todos os 911 SC/RS, juntos.

Mesmo assim, os 20 carros criados para homologação ainda faziam o 0-100 km/h em 5 segundos cravados, algo positivamente incrível para a época. Paul Frère disse dele: “realmente ganha vida acima de 4500 rpm, e gira gloriosamente até 7.600 rpm. O carro está realmente no seu elemento em estradas sinuosas, com respostas imediatas da direção e uma agilidade sensacional.”

953 & 959 (1984 – 1986)

Os outros dois carros criados em decorrência do grupo B da FIA tem tração nas 4 rodas. Um deles vocês conhecem bem: o 959. O 959 é algo diferente do que falamos aqui, mas como todo mundo sabe, ganhou rali também.

953 e 959: os Porsche que venceram o Paris-Dakar

Antes dele, porém, existiu um carro que inesperadamente venceu a prova mais famosa dos anos 1980: o rali Paris-Dakar. E de uma forma totalmente inesperada. Sem essa vitória, e este carro, talvez não existisse o 959 e suas famosas vitórias subsequentes na prova de deserto.

O 953 foi criado junto com o 954, para se estudar o uso de tração nas quatro rodas no 911. A Porsche sabia que não podia ficar fora desta revolução tecnológica desencadeada pela Audi (e Ferdinand Piëch), que tinha nas competições de rali sua maior vitrine. Com o patrocínio da Rothmanns, a Porsche criou o 953 exclusivamente para rali de deserto, como laboratório.

Baseado no Carrera 1984, o 953 tinha um seis contraposto de 3.164 cm³ (95 x 74,4 mm), com taxa reduzida de 10,3:1 para 9,7:1, para consumir combustível pior, disponível nos países africanos onde aconteciam essas provas. Era, portanto, menos potente que o carro de rua, com pouco mais de 200 cv. A transmissão era super simples: um transeixo e cardã de Audi modificado!

Na frente, o diferencial era aberto, sem bloqueio, e na traseira, um spool, sempre travado 50/50 % para cada roda. A suspensão era dramaticamente levantada, com grande curso, caixa de direção relocada, estrutura reforçada. Um projeto feito às pressas, sem muito teste, e sem pensar muito. Mas incrivelmente, venceu o rali Paris-Dakar em 1984!

O que prova que às vezes, basta fazer algo e competir. Nem sempre quem é mais preparado, vence… A Porsche voltaria a vencer a prova em 1986, com a versão de rali do mais ambicioso 959, o último dos 911 a realmente ser criado com competição de rali em mente.