Mais do que um carro, o Porsche 911 é uma verdadeira instituição. Ele segue a mesma receita básica há mais de meio século, mantendo a silhueta desenhada por Alexander “Butzi” Porsche e o motor boxer pendurado na traseira desde 1963. Ao longo dos anos, claro, algumas coisas mudaram: turbocompressores, arrefecimento líquido e tração integral foram sendo incorporados em alguns modelos, mas a raiz está ali.
Por raiz, queremos dizer coração. E, por coração, nos referimos ao boxer de seis cilindros no cofre — a característica mais prezada pelos entusiastas do 911. Não é para menos: seja nas versões de antigamente, refrigeradas a ar; ou na mais recentes, que chegam aos 500 cv, o centro de gravidade baixo e o ronco característico acumularam milhões de fãs.
No entanto, nada disso impediu que, na década de 1980, a Porsche decidisse brincar com a ideia de colocar um V8 no lugar do boxer. Por quê, meu deus? Bem, já contamos esta história aqui antes: na época, a fabricante tinha o Porsche 959, fabricado entre 1986 e 1989.
Baseado no 911, porém com diversas e extensas modificações, o 959 era o “supercarro” da Porsche, capaz de rivalizar com a Ferrari F40 adotando uma estratégia bem diferente dos italianos: enquanto a Ferrari apostou na força bruta e no “menos é mais” na hora de criar o superesportivo definitivo, a Porsche lançou mão da tecnologia e deu ao 959 tração integral, turbocompressores sequenciais e componentes de Kevlar na carroceria. O flat-6 de 2,85 litros desenvolvido para o protótipo 935 entregava 450 cv e era capaz de levar o carro até os 100 km/h em 3,6 segundos, com máxima de 314 km/h.
Só que o Porsche 959 era um carro muito avançado e, por isso, muito caro. Uma das missões do Porsche 911 com motor V8 era ser uma espécie de sucessor do 959 quando este fosse descontinuado, aproveitando o desempenho naturalmente superior da configuração e o custo mais baixo.
O chamado Projekt 965 era um Porsche 911 993 (última geração refrigerada a ar) com a traseira mais larga do 959. No cofre, o motor do Audi V8, de 3,6 litros e 250 cv ou 4,2 litros e 280 cv — ainda não se sabe ao certo. O que se sabe é que, durante os anos 1980, a Porsche testou diversas configurações de motor e acabou com dezessete protótipos diferentes. Este é o único restante.
A ideia original da Porsche era apenas testar a viabilidade da configuração — o motor usado no suposto 911 V8 seria inspirado naquele desenvolvido pela Porsche para a Fórmula Indy nos anos 1980. No entanto, depois de gastar muito dinheiro com protótipos e não avançar muito no projeto, a fabricante decidiu desistir da ideia. Até hoje, você não pode comprar um Porsche 911 V8… ao menos não direto com a Porsche. Mas a gente já chega nesse assunto.
De qualquer forma, a Porsche não foi a primeira a colocar um V8 no 911. Ao que tudo indica, o responsável por isso foi o criador do cara aí em cima, um cara chamado Rod Simpson. Mas antes de contarmos esta história, precisamos falar um pouco mais sobre este carro.
Para começar, trata-se de um Porsche 912, versão com motor de quatro-cilindros do Porsche 911, fabricado em 1966. Em essência, a única coisa que separa um 912 de um 911 são mesmo os dois cilindros a menos, então dá para chamar este carro de 911, mesmo. Até porque o quatro-cilindros não durou muito naquele cofre: ainda em 1966, o carro foi roubado e teve o motor removido. Quando foi encontrado, sem motor, em 1967, o carro foi comprado pelo piloto de endurance Dennis Aase e recebeu um flat-6 no espaço vazio, como deve ser. Ou seja: na prática, o carro acabou se transformando em um Porsche 911.
Além do motor, o carro recebeu freios a disco e câmbio vindos de um Porsche 911S. Depois de uma carreira competitiva nas corrias de longa duração nos EUA e na Europa, como as 24 Horas de Daytona e Nürburgring, Aase decidiu participar de provas de turismo da SCCA, e usou seu Porsche 911/912 para isto.
No fim de 1967, depois de conseguir um bom desempenho nas pistas, o piloto decidiu vender o carro, mas não o motor. Foi a sorte grande para Rod Simpson, que sonhava em montar para si um Porsche 911 (lembrando fazia apenas quatro anos que o esportivo havia sido lançado), mas não tinha dinheiro para comprar nem mesmo um exemplar usado.
Aliás, o jovem entusiasta não tinha dinheiro nem para um motor de 911 — o que o levou a buscar uma alternativa bem mais barata e abundante nos EUA: um V8 Chevrolet. Foi algo que mudou para sempre a cabeça de uma parte dos fãs do nine-eleven. Claro, a grande maioria dos puristas não aprova esta cirurgia mas, acredite: há entre os entusiastas que ache que a única coisa capaz de melhorar um Porsche 911 é um V8.
No caso deste carro, o V8 vinha de um Camaro Z/28. Originalmente com 302 pol³ (4,9 litros), o motor teve o deslocamento ampliado para 305 pol³ (cinco litros) e recebeu diversos componentes sob medida — um processo que levou alguns meses até que, em 1968, o carro estava pronto.
O que aconteceu foi que diversos entusiastas da região começaram a desejar que seus carros passassem pelo mesmo processo. Assim, pouco tempo depois, Rod começou a distribuir kits para que outros fizessem o mesmo que ele. O resultado: hoje, quase 45 anos depois, Rod ainda continua no ramo — sua companhia, a Rod Hybrids, é especializada em swaps de motor V8 no Porsche 911.
Conhecendo a conotação moderna da palavra “híbrido” no mundo automotivo, gostamos da ideia de chamar assim um 911 com motor V8 de híbrido. No entanto, temos nossas reservas quanto à real eficácia da troca do flat-6 por um vê-oitão americano — ao menos nos carros mais antigos, conhecidos por serem bastante ariscos graças ao peso concentrado na traseira. Um boxer de seis cilindros, com centro de gravidade mais baixo, já tornava o conjunto um pouco mais estável naturalmente. Um V8, por outro lado, certamente acentuava a tendência do 911 clássico a sair de traseira quando abusado da forma errada, por exemplo.
O carro de Rod Simpson está à venda atualmente e, pelo visto, passou por várias atualizações desde então. A maior delas foi a substituição recente do Chevrolet 305 por um V8 Dart 400, feito sob medida. Com bloco de alumínio, o motor de 6,5 litros é bem mais leve que o anterior. Além disso, preparado com cabeçotes AFR, taxa de compressão de 11,4:1, comandos feitos sob medida pela Engle Racing Cams e um carburador de corpo duplo Holley de 850cfm com coletor Edelbrock, o V8 entrega cerca de 600 cv.
O estilo atual do carro é bacana — lembra um pouco os Porsche de Akira Nakai, da RWB —, mas temos nossas dúvidas quanto à capacidade do carro de ser usado com certa regularidade nas ruas e nas pistas. Os freios de Porsche 911S e a suspensão com componentes do 911 Turbo 930 na traseira devem dar conta do recado, mas o equilíbrio dinâmico precisa ser cuidadosamente trabalhado em qualquer 911 — quanto mais um com um V8.
O que não significa, porém, que isto já não aconteça de forma “oficial”. Tal como a Alpina é para a BMW, a Ruf pode ser considerada a segunda maior fabricante de Porsche do mundo. Mais que isso: como a Porsche só fornece monoblocos com chassi em branco, há quem diga que um Ruf zero quilômetro definitivamente não é um Porsche. Até o governo da Alemanha acha isso… quem somos nós para discordar?
O caso é que, desde 2011, a Ruf oferece um modelo equipado com motor V8. É o Ruf RGT-8 que, em vez do tradicional boxer de seis cilindros que a gente espera de um 911, traz um V8 de 4,5 litros com virabrequim plano (mais distante dos V8 americanos, bem mais próximo dos italianos) todo de alumínio, com sistema de lubrificação por cárter seco (o motor fica mais baixo, e o centro de gravidade também) e disposição para girar.
São 549 cv a 8.500 rpm e 50,9 mkgf de torque a 5.400 rpm, suficientes para levar o RGT-8 até os 100 km/h em três segundos. Detalhe: o motor pesa apenas 200 kg — 30 kg a menos do que o motor de um Porsche 911 Turbo, por exemplo. Além do motor mais leve, o Ruf se beneficia de décadas de evolução. Afinal, para manter o 911 no topo do mundo sem alterar a essência do projeto, alguns milagres de engenharia e eletrônica precisaram ser realizados.
A geração atual do 911, a 991, já começou a servir como base para a segunda geração do RGT-8 — imaginamos que eles não tenham problemas em adaptar o sistema de esterçamento nas rodas traseiras (4WS) presente no atual Porsche 911 GT3, por exemplo. E não duvidamos que, com isto, o 911 genuíno acabe com sérios problemas… afinal, o que esperar dos caras que fizeram o CTR “Yellowbird”?