“A gente sempre esperava que fosse ficar melhor, mas nunca ficava”, contou Klaus-Günter Jacobi à BMW, quando a companhia o entrevistou a respeito de seu feito heróico. Sim, heróico – porque os heróis nem sempre ficam famosos e entram para os livros de história (ou páginas da Wikipédia).
No caso de Jacobi, o feito heróico foi transportar o melhor amigo de infância, Manfred Koster – ou melhor, contrabandeá-lo, de certa forma – de um lado ao outro do Muro de Berlim em seu pequeno BMW Isetta. Os dois cresceram juntos na década de 1940 e se tornaram inseparáveis, até que a divisão da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial fez com que tudo mudasse.
Como você deve lembrar das aulas de História, com o fim da Segunda Guerra Mundial a Europa foi dividida entre Leste e Oeste, com os países a Europa Oriental sob o domínio da União Soviética. A Alemanha, especificamente, foi dividida em duas. E, em 1961, foi construído o Muro de Berlim – uma barreira física na capital, para simbolizar a divisão de todo um país.
A família de Klaus mudou-se para a Berlim ocidental em 1958, pouco antes da construção do Muro. Manfred permaneceu do lado oriental por mais alguns anos, mas a situação tornou-se insustentável quando ele foi convocado pelo Exército, em novembro de 1962 – um jovem pacifista, ele resolveu desertar. E, para isto, contava com a ajuda do amigo, que vivia do outro lado da cidade… em outra Alemanha.
Entre 1956 e 1959, Klaus trabalhou como mecânico. E, mesmo que não fosse rico, ele teve dinheiro para, em 1961, comprar um pequeno BMW Isetta – o minicarro projetado pela italiana Iso, e feito sob licença na Alemanha Ocidental. Era a verdadeira definição de carro popular e, mesmo que só levasse duas pessoas e um pouco (quase nada) de bagagem, era o bastante para que Klaus não precisasse de outro carro por muito tempo.
Um dia, Klaus atendeu a porta e deu de cara com Manfred. Ele havia conseguido usar os documentos do irmão, que vivia na Alemanha Ocidental (os dois eram muito parecidos, quase gêmeos) para atravessar a fronteira e pedir ajuda. Ele explicou a situação e, naquela mesma noite, traçaram um plano – e o Isetta seria crucial para que tudo desse certo.
Na época, para passar de um lado a outro do Muro de Berlim, era preciso esperar por horas em uma fila, ter o carro inspecionado pelos patrulheiros da fronteira e, se tudo estivesse em ordem, aí sim passar. Cães farejadores ajudavam na detecção de pessoas escondidas, e os carros grandes eram os alvos primários das buscas. Quem desconfiaria de um Isetta?
Klaus passou os meses seguintes modificando seu carro para a missão. O pequeno compartimento de carga que ficava atrás do banco, e dividia espaço com o tanque de combustível de 13 litros, seria o espaço que Manfred ocuparia. Um buraco de 50×50 cm foi feito na parede corta-fogo para que ele pudesse entrar, e a tubulação de escape teve de ser dobrada para acomodá-lo. E até mesmo o para-lama traseiro esquerdo foi cortado para não raspar no chão com o peso extra. Por fim, o tanque original foi trocado por uma pequena lata, com capacidade para pouco mais de dois litros – apenas o bastante para chegar ao Muro, atravessá-lo e encontrar um local mais afastado, onde Manfred finalmente sairia do carro.
Só havia um problema: o próprio Klaus não poderia atravessar a fronteira para recolher Manfred – o motorista teria de ser alguém que já estivesse no lado oriental de Berlim. Foi preciso encontrar voluntários: dois estudantes revoltados com o regime opressor, dispostos a desafiar as autoridades por princípios, e não por dinheiro.
A fuga de Manfred aconteceu no dia 23 de maio de 1963, apenas uma semana antes da data marcada para que ele se apresentasse ao exército. Foi em cima da hora.
No começo da noite, um dos estudantes foi buscar Manfred com o Isetta, enquanto outro foi em um Fusca para dar cobertura. Depois de quase uma hora tentando trocar os tanques e espremer Manfred dentro do pequeno compartimento, os dois carros seguiram em direção ao muro. Por mais uma hora, eles esperaram na fila. É quase meia-noite, minutos antes de a fronteira fechar, quando o motorista do Isetta tem sua passagem autorizada. Klaus está esperando do outro lado, fumando um cigarro atrás do outro, quando vê seu pequeno automóvel. Ele grita para o amigo, que responde de dentro do Isetta com a voz abafada. Mais alguns minutos e Manfred sai de dentro do carro – livre e pronto para começar uma nova vida.
Meses mais tarde, Klaus soube que os estudantes compraram outro Isetta, fizeram as mesmas modificações nele, e atravessaram outras nove pessoas pelo Muro de Berlim. Eles foram pegos em sua última tentativa, e foi só ali que Klaus soube seus nomes. Ele havia sido sua inspiração, e tem orgulho disto até hoje – embora a vida tenha se encarregado de separar os dois amigos depois de um desentendimento.
Hoje com 79 anos, Klaus trabalha no Museu do Muro de Berlin. Ainda que não saiba o que aconteceu com Manfred, ele jamais conseguiu se afastar demais de seu passado.
No museu, há uma réplica do BMW Isetta azul, com as mesmas modificações, em exposição. O carro original, Klaus já sabia na época, teria de ser desmontado e vendido em peças – as modificações, além de levantar suspeitas após a repercussão das fugas, impediriam que ele passasse na inspeção anual. Klaus ficou apenas com a chave do compartimento de carga, que guarda até hoje como recordação.
Contudo, para Klaus, este foi um preço pequeno a pagar pela liberdade de seu amigo.
A BMW decidiu contar esta história hoje para comemorar a reunificação da Alemanha, que neste 3 de outubro de 2019 faz 30 anos. A fabricante até produziu um pequeno curta-metragem baseado na história de Klaus, com algumas pequenas licenças poéticas, claro, mas ainda assim muito bacana. E uma bela forma de encerrar este post.