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História

A saga de Wendell Scott, o primeiro piloto negro a vencer na Nascar – e do troféu recebido depois de 58 anos

Em 2013, Darrell “Bubba” Wallace Jr. se tornou o segundo piloto afro-americano a vencer uma corrida do alto escalão da Nascar – a Kroger 200, no circuito de Martinsville Speedway, na Virginia, etapa da categoria de picapes. Antes dele, o único piloto americano de ascendência africana a fazê-lo foi um cara chamado Wendell Scott. Meio século antes, em 1963.

E foi só agora, em 2021, quase 60 anos depois da vitória, sua família recebeu o troféu que era seu por mérito e direito.

Por mais que a cor de sua pele não fosse tão escura e seus olhos fossem azuis – o piloto era o que se chama de white passing nos EUA: uma pessoa negra de pele clara que pode “se passar por branco” –, as raízes de Scott fizeram dele vítima de preconceito e segregação nas pistas, e ele acabou se tornando um dos grandes símbolos da resistência dos negros nos Estados Unidos.

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Na década de 1960, cem anos depois que a escravidão foi abolida nos EUA, a segregação racial estava apenas começando a ser encarada como um problema social. Impedir pessoas negras, pardas, latinas – qualquer um que não fosse branco (que os americanos chama erroneamente de “caucasiano”), na verdade – de ter um bom emprego ou estudar em uma boa escola ainda era visto com naturalidade por boa parte da sociedade americana.

E foi por isso que Wendell Scott fez história quando se tornou piloto profissional. Ele nasceu em 1921, filho de um mecânico, e cresceu em meio aos automóveis – estranho seria se ele não pegasse gosto pela coisa e não seguisse os passos do pai. Em Danville, Virginia, onde nasceu, sua carreira mais provável seria em uma fábrica de cigarros ou em uma beneficiadora de algodão.

Mas ele queria mais. Depois de passar a infância correndo de bicicleta e de patins e abandonar o ensino médio para dirigir um táxi, Scott casou-se e foi servir o exército na Segunda Guerra Mundial. Na volta, ele abriu uma oficina mecânica e, de madrugada, contrabandeava bebidas clandestinas. Sim, Scott se tornou moonshiner. Muito numerosos na época da Lei Seca nos Estados Unidos, os moonshiners eram contrabandistas de bebidas que aperfeiçoavam sua técnica ao volante, aprendiam a melhorar seus carros e ainda faziam um troco transportando álcool ilegalmente – e acabaram sendo peça crucial para a formação da Nascar.

Scott foi pego apenas uma vez, em 1949. Depois de cumprir pena por três anos, voltou a dirigir com bebidas alcoólicas no porta-malas. Aos fins de semana, levava seu carro para o circuito oval de terra de Danville, onde eram realizadas corridas amadoras.

Em 1953, Scott foi chamado pela Dixie Circuit, organização que cuidava das corridas, para… correr. A ideia era ter um piloto negro para atrair o público local e promover as corridas, e Scott gostou da ideia. Na verdade, ele gostou tanto de ter sua primeira oportunidade de participar de uma corrida organizada que, no dia seguinte, deu um jeito de ir até um circuito em uma cidade vizinha onde estava sendo realizada uma prova da Nascar e inscrever seu carro na última hora. E, apesar de ter sua inscrição validada como todas as outras, na inspeção pré-corrida Scott foi impedido de correr porque era negro.

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Semanas depois, tentou novamente, sem sucesso. Frustrado, Scott decidiu seguir nas corridas menores, onde era bem recebido. E não demorou mais que doze dias para que ele conquistasse a primeira vitória de sua carreira, de algumas que se seguiram em corridas fora dos campeonatos principais. Seu ritmo era frenético – coisa de quatro ou cinco corridas por semana em cidades vizinhas a Dansville, suficientes para torná-lo uma das figuras mais conhecidas do circuitos de ovais da região.

Enquanto procurava maneiras de ser aceito na Nascar, Scott seguiu se empenhando ao volante. Os jornais locais começaram a notar sua presença e escrever coisas boas a seu respeito nas colunas de esportes. Ele era visto como um artista ao volante, e não demorou para se tornar um dos pilotos favoritos do público. E a popularidade de Scott foi fundamental para a manobra que o piloto tentaria no ano seguinte.

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Ele conheceu Mike Poston em Daytona Beach, nos bastidores de um evento da Nascar. Poston era fiscal de prova e não era ligado aos altos cargos da organização, mas tinha poder suficiente para emitir as licenças dos pilotos. Os dois logo se tornaram amigos, e Poston se dispôs a ajudar Scott – não sem antes perguntar a ele se tinha certeza do que estava fazendo.

Scott tinha. Todo o tempo que passou nas pistas, ele foi obrigado a lidar com o fato de que não era totalmente aceito pelos outros pilotos. Eles jogavam seus carros contra Scott, que também era hostilizado nos boxes, e sabia que seria assim mesmo, pois os outros não sofreriam represálias por isso. Ele se acostumou a preparar seu carro, consertá-lo e melhorá-lo sem a ajuda de ninguém. E também não reclamava: sabia que, em sua posição, não era uma boa ideia entrar em brigas e atrair mais atenção negativa para si. Era a triste realidade dos EUA naqueles tempos.

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Dito isto, havia uma parcela de pilotos que gostava muito de Scott, e o enxergavam como mais um cara louco por velocidade que trabalhava o dia todo, contrabandeava goró de madrugada e corrida de carro aos fins de semana. Alguns até lhe serviam com “guarda-costas” enquanto circulava pelos boxes, protegendo-o dos mais intolerantes e violentos.

Na Nascar, porém, as coisas eram diferentes. Scott era um cara forte, que não se deixava abalar por ser ignorado pelos outros pilotos. Mas nem sempre era fácil lidar com a situação. Sua equipe de mecânicos era formada pelos seus dois filhos, Wendell Scott Jr. e Frank, e de vez em quando ele se referia aos próprios filhos como niggers, gíria depreciativa usada para se referir a pessoas negras. Anos mais tarde, Wendell Jr. e Frank disseram que as palavras do pai machucavam, mas que eles entendiam que aquela era a forma que o piloto encontrava para lidar com todo o preconceito que sofria regularmente.

Scott passou nove anos correndo nas provas regionais da Nascar e conseguiu até mesmo o respeito de “Big” Bill France, presidente da categoria – que, em uma ocasião, pagou do próprio bolso o dinheiro para gasolina a que Scott tinha direito no início de uma corrida, mas foi impedido de receber pelos organizadores da prova. Ele ganhou mais de dez provas ao longo deste período e, em 1961, migrou para a categoria Grand National, a mais alta da Nascar.

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Àquela altura, Scott já era muito respeitado entre os fãs – brancos, inclusive. Em 1º de dezembro 1963, em um Chevrolet Bel Air que havia comprado com seu próprio dinheiro, Scott venceu sua primeira corrida, em um oval de terra na cidade de Jacksonville, Flórida. Faltando 25 voltas para o fim da corrida, Scott ultrapassou Richard Petty e venceu a prova com uma volta inteira de vantagem. Mas acham que foi fácil? Não foi: Scott simplesmente não foi declarado vencedor depois que a corrida acabou. Em vez disso, o segundo colocado, Buck Baker, foi quem subiu no lugar mais alto do pódio. A justiça só foi feita duas horas depois, quando os fiscais de prova “descobriram o engano”.

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Ele terminou a temporada em 15º no campeonato, e seguiu sua carreira com um ótimo aproveitamento nos cinco anos seguintes, ficando com frequência entre os dez primeiros colocados.

Mas, para se ter uma ideia de como as coisas eram complicadas, Scott nunca recebeu o prêmio em dinheiro, mas nunca colocou as mãos no troféu por sua vitória. Ele se aposentou das pistas em 1973, com 52 anos de idade, em decorrência das lesões sofridas em um acidente em Talladega. Ao longo de sua carreira de 13 anos Scott disputou 495 provas, venceu uma corrida, terminou 20 vezes entre os cinco colocados e 147 vezes entre os dez primeiros.

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Scott morreu em 1990 com apenas 69 anos, vitimado por um câncer na medula espinhal. Ele também nunca conseguiu acumular uma grande fortuna como seus colegas de pista: sua melhor temporada em termos financeiros, a de 1969, lhe rendeu apenas menos de um terço do que Richard Petty amealhou no mesmo ano.

Além do reconhecimento dos fãs e dos colegas ainda em vida, Scott acabou homenageado postumamente em ao menos três ocasiões. Na primeira, a prefeitura de Danville, cidade onde nasceu, viveu e morreu, rebatizou seu endereço como Wendell Scott Drive – no street view acima dá para ver o mural que foi pintado em sua memória. Em 2000 sua casa foi transformada em marco histórico local, como homenagem ao homem que “perseverou diante da discriminação”.

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Em 2015 Scott foi introduzido ao Hall da Fama da NASCAR e em 2017 foi transformado no personagem River Scott, do filme “Carros 3” da Disney-Pixar. Mas uma homenagem em um filme infantil não era exatamente o que a família de Wendell Scott esperava depois de tanto tempo.

 

Reparação histórica

Nada poderia compensar a injustiça que foi o piloto ter sido privado de receber nas mãos o troféu de sua única vitória, na verdade. Depois da corrida em Jacksonville em 1º de dezembro de 1963, o nome de outro piloto foi anunciado pelos alto-falantes do autódromo – Buck Baker, que era branco, e recebeu o troféu em suas mãos na frente de Wendell Scott.

Acostumado a esse tipo de coisa, Wendell aguardou até que as festividades acabassem e todo mundo fosse embora – incluindo a imprensa –para receber o dinheiro do prêmio. Mas o troféu, aparentemente, era demais para um piloto que não fosse branco.

Na época, a Nascar esquivou-se de justificar a decisão ao longo das décadas – algo que não foi muito difícil, já que a repercussão do caso foi praticamente nula e muitas das testemunhas preferiram manter-se neutras. Pilotos que estavam na pista naquele dia já disseram que é difícil saber quem de fato venceu, porque geralmente as coisas estão uma bagunça e todos estão nos boxes trocando pneus e acertando carros. O fato é que, depois de 202 voltas, Wendell Scott recebeu a bandeirada ao cruzar a linha de chegada antes de tudo mundo – e é bem provável que a tal “confusão” citada pela Nascar, pelos fiscais de prova e pelos outros pilotos só tenha sido criada para evitar a consagração do afro-americano.

Até o início da década passada, a questão ainda não havia sido trazida à tona. Foi só depois que o jovem Bubba Wallace, em 2013, tornou-se o segundo piloto negro a vencer uma corrida na Nascar, que algum progresso começou a aparecer – em parte, graças ao próprio Wallace. Nascido em 1993, o jovem do Alabama cresceu em uma sociedade mais tolerante e consciente (é importante lembrar disso quando tudo o que se tem são notícias ruins), na qual o comportamento da Nascar em 1963 seria impensável. Wallace acabou tornando-se uma voz ativa no combate ao racismo no esporte a motor.

Bubba Wallace tomou para si a luta dos familiares de Scott, e nos últimos anos tornou-se bastante próximo dos filhos do piloto, Franklin e Wendell Jr. – que, em 2015, aceitaram em nome do pai a indicação dele ao Hall da Fama da Nascar. Mas ainda faltava o troféu.

Um mês depois de sua vitória em Jacksonville, Wendell Scott recebeu um pequeno troféu de madeira antes de uma corrida em Savannah, Geórgia – provavelmente uma homenagem dos organizadores da prova, comovidos com a injustiça. Em 2010, o Hall da Fama da Stock Car de Jacksonville tentou remediar o caso da melhor forma que pode e entregou à viúva de Wendell Scott, Mary (que faleceu em 2015), e aos filhos, uma réplica idêntica ao troféu que ele deixou de ganhar em 1963.

Até semanas atrás, isso era tudo o que os descendentes de Wendell Scott haviam conseguido. Mais recentemente, o neto do pilot, Warrick Scott, juntou-se ao coro. Em entrevistas a sites e no Youtube, ele tornou a pedir justiça pelo avô, mencionando que a réplica do troféu foi uma iniciativa de Jacksonville, sem relação com a Nascar.

Para ele, idealmente a Nascar deveria ao menos reconhecer que o troféu era seu por direito, e quem sabe entregar um troféu novo – o original ficou com Buck Baker e nunca mais foi visto.

E foi exatamente isso que aconteceu. Na semana passada, a Nascar anunciou que a edição desse ano da Daytona 400 seria palco de uma cerimônia para reconhecer a vitória de Wendell Scott e entregar um troféu a seus familiares. O troféu foi entregue antes do início da corrida, em 28 de agosto de 2021 – uma data feliz, porque naquele fim de semana, no dia seguinte, o próprio Wendell Scott faria 100 anos de idade.

Durante a cerimônia, Warrick Scott lembrou da importância de reconhecer os feitos de seu avô. “Wendell Scott construiu a ponte definitiva para a diversidade, não só dentro do automobilismo, mas dentro das mentes e ideologias de muitas pessoas que não sabiam dividir o mesmo espaço com outras pessoas.”