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Achados Meio Perdidos

Achados meio Perdidos: Citroën Berlingo Multispace 2001

Você que compartilha a obsessão pelo automóvel que move esta augusta publicação conosco, sabe que nenhum carro é perfeito. A forma mais clara de se ver isso é a nossa obsessão por modificações. Seja uma roda diferente, molas mais baixas, motor mais potente ou um banco mais confortável, modificação sempre anda na nossa cabeça, por mais incrível que seja o veículo original.

Sim, nada é perfeito. Mas pode haver algo perfeito para você. Algo tão intrinsicamente perfeito em seus defeitos e qualidades, na sua função e personalidade, que você não pode deixar de, como com seu parceiro humano para vida, ficar perdidamente apaixonado.

Carros não tem alma imortal, e não são humanos. Mas amá-los é possível sim, se entendido o básico preceito de que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como dizia o saudoso Rui Blanco. Nenhum carro é maior que pessoas; são, no final das contas, coisas materiais. Podemos amá-los, mas a hierarquia é clara, e sua importância deve ficar clara para você sempre: toda vida, de todo mundo, é maior.

São quase como nossos animais de estimação; ainda que vender um carro seja bem mais fácil e corriqueiro que vender um animal de estimação. Vender animal de estimação? Seria como vender um membro da família, aqui digo nunca. Mas ainda assim, acontece. Não, o automóvel é menor ainda que os nossos cachorros, gatos e calopsitas.

Mas ainda assim, amamos alguns deles. Fazer o quê? É uma realidade. Não com todos, claro; mas alguns deles certamente transcendem, e por um motivo ou outro, como dizia Sinatra, they get under your skin.

O carro sobre o qual falaremos hoje é um desses para mim. Tanto que é um dos poucos carros onde não vejo possível nenhuma modificação. Isso mesmo: é tão perfeito como é que qualquer alteração é pecado. Para mim, é o carro perfeito.

O Achados meio perdidos de hoje é culpa da notícia de que o Berlingo de passageiros parou de ser fabricado na Argentina, último lugar do mundo onde ainda era feito na sua primeira geração original. A versão furgão continua, por incrível que pareça, o que mostra quão bom e atual o carro ainda é mesmo, pasme, praticamente 30 anos depois de ser lançado.

É culpa também de vocês. Sim, vocês, todos os 29473923729 amigos, leitores, assinantes e seguidores que me mandaram o anúncio que é tema desta matéria. Sim, aparentemente eu sou um livro aberto, sem mistério nenhum para todos vocês. Não sei se agradeço, ou choro.

Mas o que é o Berlingo afinal de contas? E o que há de especial neste furgão aparentemente sem nada de mais? Engraçado você perguntar. Ia justamente contar isso para vocês, agora mesmo.


O Citroën Berlingo original

Não é segredo para ninguém que a Citroën mantém apenas um restinho irrisório do que fez ela grande até 1975, quando a sua arquirrival Peugeot a comprou. A marca hoje é uma sombra da incrivelmente original e diferente Citroën independente, empresa que criou o Traction Avant de 1934, o 2CV de 1948, o DS/ID de 1955, o SM de 1970, o CX de 1975. Hoje, quase nada resta dos princípios de engenharia intrinsecamente franceses criados por Gabriel Voisin nos anos 1920, e trazidos e evoluídos na Citroën por André Lefebvre e seus seguidores.

Uma tradição da marca pouco comentada, mas tão importante quanto a dos automóveis, é a dos furgões de entrega. O furgão Citroën TUB de 1939 é talvez a maior revolução neste tipo de veículo, antes apenas uma caminhonete com caçamba em forma de furgão. Primeiro, usando a mecânica do Traction Avant, tinha tração dianteira. O motorista estava sentado ao lado do motor, lá na frente do carro, como na posterior Kombi. A carroceria era um monobloco, e o eixo traseiro estava lá no fim do carro. Com isso, sem chassi por baixo, a plataforma de carga era extremamente baixa e plana. E de fácil acesso: além das portas traseiras, aparecia uma grande novidade: uma porta lateral, de correr.

A Van TUB

A guerra impediu que o TUB fosse um grande sucesso, mas o seu sucessor, o modernizado Citroën H de 1948, é talvez o mais conhecido furgão de entrega mundo afora, produzido até 1981. Como em 1981 a Citroën era parte da PSA, o substituto deste furgão foi uma joint-venture com a Fiat, que fez uma família de furgões iguais, mas de marcas Fiat, Peugeot e Citroën, entre outras. A Citroën continua então fazendo pequenas vans baseadas no 2CV e no Visa, mas a sua tradição de excelência veicular em furgão de entrega, atingida pela família H, parecia fadada ao desaparecimento.

Mas quando o início dos anos 1990 chegam, e os engenheiros da marca se debruçam na necessidade de substituir os furgõezinhos 2CV e Visa. Um daqueles momentos de brilhantismo, de reacender a chama de uma companhia absorvida por outra aparece. Provavelmente impulsionados por fantasmas de engenheiros do passado, resolvem basear o novo furgão não no seu menor carro como era tradição, mas sim propõem um veículo totalmente novo, baseado em componentes do ZX/Xsara.

O novo carro mesclava o tradicional conceito da van derivada de automóveis (2CV) com o do furgão H puramente de carga; apesar de ter uma frente estilisticamente próxima do contemporâneo Xsara, não compartilhava nenhuma peça externa com ele. Na verdade, o Berlingo tinha os bancos mais altos e mais à frente no carro, comparado ao Xsara. O para-brisa era quase vertical, e enorme, o alto teto agora partindo do topo do para-brisa, e não em “dois andares” como o 2CV e similares. Portanto, nada dentro do carro é do Xsara: painel de instrumentos, bancos mais altos, alavanca de câmbio, tudo era exclusivo do Berlingo. O entre-eixos era também mais longo: 2695mm, contra 2540mm do ZX/Xsara.

A ideia era fazer algo diferente; um novo tipo de automóvel, baseado num furgão de entrega bem-feito e assim dividindo com ele vantagens de espaço interno e versatilidade em uso. Desenhando o furgão para ser um ótimo carro de passeio, e o carro de passeio para carregar carga de furgão. Por isso o desenho diferente e coeso: não se desejava algo feio e obviamente “de carga”. Os vidros da versão de passageiros seriam grandes, proporcionais à lateral alta do furgão, o que de quebra faria um interior iluminado e alegre.

A versão de passageiros Multispace teria vários detalhes interessantes: bancos traseiros 40/60 rebatíveis, porta-objetos nas laterais do teto e acima do para-brisa; cores de tecido combinando com o exterior; portas traseiras tipo hatch ou dupla, “porta de celeiro”. No centro do teto, duas opções de teto solar: um de lona, elétrico, que retraía deixando o teto quase inteiro aberto, fazendo um original “furgão conversível”. O outro, chamava “Modutop”: vários locais para se guardar tralha, saídas extras de ventilação, e vigias individuais de vidro. Por fora, o Modutop (que infelizmente não veio para o Brasil) ainda contava com um rack modular para levar bicicletas ou pranchas de surfe.

O “Modutop”

A versão de carga também era muito atrativa: além do acesso lateral por porta corrediça, novidade na categoria, e da área ampla, plana, e extremamente baixa, o carro ainda por cima conseguia levar até 800kg, bem mais que a concorrência. E perto de picapes com chassi. As tradições dos furgões Citroën, revividas para os anos 1990.

O carro teve grande sucesso de público e crítica na Europa. No episódio 1 da temporada 1 do Top Gear, Jeremy Clarkson fez questão de fazer uma avaliação/viagem com o Berlingo Multispace: usou o carro para mostrar que o programa tinha mudado, e agora pensava fora da caixa. Na Europa vendia bem mesmo a diesel, mas versões 1,4 e 1,8 litros a gasolina também foram oferecidas, sempre com câmbio manual. Em 2004 recebe um face-lift, e novos motores, como o Peugeot 1,6 litro e 16 válvulas. Dura até 2013 na Europa, o que, num mercado sofisticado como aquele, mostra a excelência da ideia original. Duas novas gerações se seguiram, lá.

Aqui no Brasil, no fim dos anos 1990 e início dos 2000, recebemos também o Berlingo Multispace original. Com todas as suas cores malucas de interior e exterior, e o opcional teto de lona elétrico retrátil. O Modutop não veio, porém; nem outras versões de motor que não fossem o 1.8 de 8v a gasolina.


O Berlingo do MAO

Em 2013, eu comprei um exemplar em ótimo estado de um carro desses, esperando apenas a praticidade que esses furgões sempre prometem. O meu era verde com interior verde, único dono, mas com couro preto nos bancos ao invés do verde-e-amarelo original, infelizmente. Era 2001, último ano do teto opcional, e primeiro ano das 4 portas; uma “raridade” de um ano só, então, com ambos.

E como era viver com aquele Berlingo verde? Simplesmente incrível. O esperado: todo espaço do mundo, e uma versatilidade incrível. Eu acho furgões muito mais lógicos que picape para uso particular: a carga fica protegida sempre das intempéries e dos amigos do alheio, coisa sempre duvidosa em picapes. E no caso do meu Berlingo, com seu teto de lona elétrico, as desvantagens do furgão sumiam: armários altos e geladeiras foram transportados com o teto aberto.

O teto era realmente divertido, todo mundo em casa adorava passear de noite na cidade, olhando o céu. E a Pipoca, minha vira-lata grandona, podia ir junto no porta-malas com tapete de borracha! Lixo, árvores cortadas, lenha para forno, tudo foi transportado ali. Que outro carro poderia levar para o parque três adultos, uma cachorra grande e três bicicletas montadas, tudo dentro do carro? E com o teto solar aberto?

Mas tudo isso era esperado. O inesperado, era como o carro era uma delícia para se dirigir. Relativamente leve (pensando na alta capacidade de carga) aos 1.170 kg, o quatro em linha SOHC, de origem Peugeot, com 1,8 litro, 90 cv e 15 mkgf, não era nenhum foguete. Mas sendo sincero nunca senti falta de mais potência. O motor era sempre um parceiro entusiasmado para despejar toda sua força a qualquer momento e hora que quisesse; parecia alegre andando à moda, esticando cada uma das suas cinco marchas até o talo. Nunca com barulho demais, nunca desconfortavelmente. Com alegria e facilidade, sem drama.

As relações do câmbio são esportivas, nenhuma muito longe da outra, e é curto mesmo em quinta. A alavanca é um capítulo à parte: comprida, mas com um curto curtíssimo de troca, é uma das mais gostosas que já experimentei, com uma precisão, peso e positividade do engate simplesmente perfeitos.

A experiência ao volante é totalmente maluca. Você se senta alto, bem perto do eixo dianteiro, o centro da roda esquerda aparentemente bem no seu pé. O eixo traseiro está lá longe, no fim do carro, a 2,7 metros de você, praticamente. A posição de dirigir é de cadeira de bar, joelhos a 90°, nada perto do que se chama de esportiva. O volante está em boa posição, porém, mais próximo do paralelo ao torso do que deitado como em Kombi. Na sua frente um vidro quase sem inclinação, enorme, pertinho, parece mostrar o mundo numa tela widescreen gigantesca. A visibilidade para todo lado é exemplar, com tanto vidro grande à toda volta.

Ém carro alto, com vidros altos, teto alto. Pneus 175/65 R14. O esperado era que a gente tivesse que tomar cuidado redobrado em curvas. Ledo engano. O Berlingo fazia curvas inacreditavelmente bem para algo tão alto, com tão pouco pneu. Os movimentos da carroceria são extremamente controlados, e com o entre-eixos longo, a estabilidade é excepcional. Pegar a tangência de curva olhando a tangência lá de cima do segundo andar, acertando-o precisamente com uma roda bem debaixo de seu pé é uma sensação simplesmente incrível. Dirigia gargalhando em situações assim. Um carro de tração dianteira, alto e com pneus tão finos não tem o direito de ser tão divertido assim. Como? Ainda não sei; acho que é mágica.  

A direção tem peso e precisão perfeitos, uma incrível ferramenta para se saber o que acontece com os pneus dianteiros. Os freios também nunca se mostraram insuficientes: fáceis de modular e totalmente adequados. Todo comando direto e sem folga, tudo dando uma agilidade incrível, fora do normal, ao furgão. O carro todo reage de forma coesa, como um só todo bem desenvolvido, leve aos comandos, e ágil em cima de seus pneuzinhos como um Ali dançando nas pontas dos pés em volta de um Frazer. Que delícia.

Não era um carro veloz, nem muito menos extremamente econômico, mas não deixava a desejar em ambas as contas. O que ele era, na verdade, é um delicioso carro esporte escondido num corpo de furgão multi-uso. E “conversível”! Pouca coisa me deixou tão feliz, antes ou depois.

Mas toda história tem um fim, e precisei vender o carro por vários motivos que, sinceramente, nem me lembro mais quais eram, e na verdade, não vem ao caso. Vendi para uma família de um entusiasta, que o levou para resende, no RJ, onde já morei; vai entender as coincidências desta vida. Quando vi o anúncio deste carro à venda esta semana lógico que fiquei tentado: é o carro mais legal que já tive.

Mas prefiro ficar com as memórias; como um Neil Young lembrando de sua Buick 8 quebrada, abandonada na estrada, espero que tenha uma vida boa, mas de outras formas diferentes, longe de mim. Quem sabe os Beach Boys estão com você agora? Long may you run.


Você pode ter um

Este é o carro que me tirou o sono esta última semana. Praticamente uma reedição do meu carro, em cores e detalhes diferentes. E parece em ótimo estado, o que é excepcionalmente raro hoje em dia.

É um Citroën Berlingo Multspace 2001, mesmo ano do meu; tem o desejabilíssimo teto de lona elétrico e está apenas com 75.000 km. A mecânica é exatamente a do meu: 1.8 a gasolina de 90 cv, cinco marchas manual. Como todo Multispace, vem com A/C, Alarme, Direção hidráulica.

Diferente do meu, é vermelho, com interior vermelho e verde. Tem só 3 portas, o que, sinceramente não é um problema. E tem rodas de alumínio originais, que eram opcionais; o meu era de aço com calotas.

O anúncio afirma que a documentação está em dia, e vem com faróis e lanternas originais, manual do proprietário e pneus novos. O carro está em Palhoça/SC. O preço parece justo, sem ver o carro ao vivo: R$ 34.900,00.

Tem horas que a gente tem que decidir que não é hora de comprar mais um carro velho; esta foi uma dessas para mim, mas foi doída, confesso. Para você, pode ser o momento de comprar. Se for o caso, não podia recomendar mais do que acabei de fazer. Boa sorte!

Acesse o anúncio aqui.

Ou ligue para: 48-98402-9856 – Jr Fernandes (Mano)


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