Fazer um carro com suas próprias mãos deve ser algo sensacional, disto temos certeza. Mas sabe o que talvez seja mais incrível? Poder pagar alguém para fazer um carro exatamente como você quer. Pode até não ser tão divertido, mas deve ser muito gratificante.
Agora, você deve imaginar que é preciso ser um cara bem rico e poderoso para chegar na recepção de uma companhia e dizer “pessoal, me façam um carro exatamente como eu quero!”. Foi mais ou menos isto que um cara chamado Gordon Kelly fez no início da década de 1960.
Não se sabe muito a respeito de Kelly. Ele era designer automotivo e trabalhava para a Brooks Stevens, especializada em automóveis, motocicletas, mobília e design gráfico. Ainda que certamente ganhasse um bom dinheiro, Kelly não era um milionário e provavelmente nem era rico, mas um dia decidiu que queria um Chevrolet Corvette com carroceria italiana. O que ele fez? Juntou todas as suas economias e encomendou a transformação. Foi então que o Kelly Corvette nasceu.
Acredita-se que o carro usado como base seja um Corvette 1959 ou 1960. Na época, o ‘Vette ainda não era um cupê, e sim um roadster, mas pelo menos já usava um motor V8 small — que, com 4,6 litros, entregava 273 cv quando alimentado por dois carburadores, ou 294 cv com injeção mecânica de combustível. Foi a última fase do Corvette de primeira geração, que em 1962 deu lugar ao clássico Sting Ray.
A nova carroceria de cupê foi projetada e construída artesanalmente pela Vignale, uma entre as várias carrozzerias italianas que estavam em plena atividade naqueles tempos. Uma característica notável do carro é a modernidade de suas linhas — quase dá para acreditar que o carro foi projetado hoje em dia para parecer retrô, não é? O desenho é limpo, com uma enorme grade oval na dianteira, faróis cobertos por uma lente de acrílico e uma traseira minimalista, com quatro pequenas lanternas redondas.
O resultado é um cupê com jeito de grand tourer italiano, naturalmente, mas com identidade própria e a voz rouca do V8 saindo pelas ponteiras de escape ocultas na traseira.
O interior, por sua vez, é bem parecido com o do Corvette na época, que já era bastante avant garde com seu quadro de instrumentos destacado no painel e console central com rádio na vertical. Alguns toques de personalização foram feitos, como o letreiro “C O R V E T T E” nas portas e a plaqueta bicolor atrás das manivelas dos vidros. Dá para ver que Kelly não queria negar a identidade do carro — apenas dirigir um Corvette que não se parecesse com nenhum outro pelas ruas, mas que inegavelmente fosse um Corvette.
É por isto que o atual dono do carro, o americano John Breslow, faz questão de mantê-lo exatamente como está. Ele comprou o carro há alguns anos, pouco depois de vender sua companhia de soldagem em 2006 para começar uma coleção de carros. “Se for para ter um carro e não poder dirigi-lo”, ele diz, “prefiro nem comprá-lo”.
E, felizmente, com o Kelly Corvette, não há exceção. Todos os carros de Breslow são guiados regularmente, e ele não tem medo de que algo aconteça com o carro. Na verdade, ele nem faz questão de mantê-lo imune às marcas do tempo e do uso — ainda que cuide muito bem daquilo que define como “um Van Gogh que dá para dirigir”.
“O carro foi pintado pela última vez em 2004, e o estado geral é muito bom”, conta Breslow. “Talvez em alguns anos ele precise de uma repintura, mas eu não acho que vou fazer isso, porque esta pintura foi feita pouco antes de Kelly morrer. Eu acho que esta é a pintura que deve ficar no carro para sempre, pois no momento em que ela for removida, a última marca de Kelly no carro também será”.
Há certa aura de mistério no Kelly Corvette que Breslow faz questão de preservar — claro, ele tem todo o histórico do carro em mãos, além de desenhos originais de Kelly, publicações de época e documentos que foram entregues a ele no momento da compra — incluindo algumas matérias a respeito da aparição do carro no Salão de Paris de 1961, onde foi muito bem recebido pelo público. Talvez tenha sido até ali o momento em que a Chevrolet decidiu que o próximo Corvette seria um cupê, pois o conceito que deu origem ao Sting Ray, de 1959, ainda era um roadster. Vai saber, não é?
O fato é que a maneira como Breslow encara sua relação com o carro é bem interessante: mais que um dono, ele se considera o guardião da memória do Kelly Corvette e de seu criador. “O carro é de Gordon Kelly e sempre vai ser. Eu sou só tenho a custódia temporária”. E ele aproveita cada segundo dela, como a gente faria.