Você certamente sabe que parte da receita para um esportivo (ou mesmo uma versão esportiva) envolve um trabalho caprichado na aerodinâmica do carro. O comportamento do fluxo de ar sobre e sob o carro em movimento é tão importante quanto a potência ou o conjunto dinâmico, especialmente em veículos velozes. E, nesta jogada, entram os spoilers e asas traseiras, frequentemente confundidos. Outro termo que entra neste bolo é “aerofólio”, mas já chegamos lá.
É senso comum mesmo entre os entusiastas a noção de que spoiler traseiro e asa traseira são a mesma coisa, e têm a mesma função: aumentar o downforce. Mas não é bem assim. Spoiler e asa traseira são coisas diferentes, e atuam de formas diferentes para obter resultados diferentes. É por isso que decidimos dar uma breve explicação a respeito do que são estes componentes e como eles atuam.
Antes disto, contudo, é preciso relembrar um pouco os conceitos por trás da aerodinâmica. Dois, em especial: o arrasto aerodinâmico e o downforce. O primeiro é a resistência que o fluxo de ar impõe sobre o carro em movimento. Costuma-se imaginar que o arrasto age na dianteira, “empurrando” o carro para trás, mas não é bem assim. Quando o carro se move, uma fina camada de ar – que é um fluido viscoso (para facilitar a visualização, imagine-o como mel) – se adere e se acumula em sua superfície e o “puxa” para trás, principalmente na parte traseira do veículo (veja as ilustrações acima). Por isso o nome é arrasto aerodinâmico. O veículo literalmente precisa arrastar esse emaranhado viscoso aderido à superfície – cuja resistência é exponencial em relação à velocidade –, preso em diversas camadas e velocidades. Isso consome energia, reduzindo a eficácia energética e a performance do carro.
Mais do que isto: quando a silhueta do carro apresenta uma variação repentina entre uma zona de fluxo rápido de ar (e baixa pressão) para uma de fluxo de ar lento (e alta pressão), há um descolamento desta fina camada de ar (a chamada-limite) e a fricção dela com as outras camadas, causando turbulência – um fluxo de ar desordenado e caótico que aumenta o arrasto, formando um imenso novelo. Por exemplo, quando o teto do carro acaba:
Já a downforce é outro fenômeno, causado pela diferença na velocidade do fluxo de ar sobre e sob um objeto. Se o fluxo de ar é mais lento sobre o carro do que sob ele, a pressão é maior na parte de cima e, com isto, o carro é forçado para baixo, contra o solo.É por isso que carros de corrida e superesportivos costumam ter o assoalho plano: o ar flui mais rápido sob o carro e a downforce aumenta.
Mas nós estamos falando de spoilers e asas e, por isso, vamos nos concentrar na forma com o ar atua nestes elementos. Assim, poderemos explicar a diferença entre os dois.
Spoiler: menos arrasto
Colocar um spoiler na traseira (claro, de forma estudada, não na orelhada) é uma forma de reduzir o arrasto aerodinâmico, o que aumenta a eficácia aerodinâmica e até a velocidade final. Como assim? Modificando o fluxo de ar de modo a reduzir a resistência e a turbulência formados na traseira. Até a década de 1960, esta tarefa era cumprida pelo formato da carroceria, que assumia um perfil em forma de gota: a linha decrescente contínua da carroceria faz com que o ar se “despeça” da superfície de forma gradual, reduzindo a fricção e a turbulência e, assim, causando reduzindo aquele novelo de fluido que forma o arrasto.
No entanto, nem sempre era possível dar aos carros um perfil de gota. A ideia dos spoilers, que começaram a se popularizar na década de 1970, é emular este efeito sem precisar recorrer a uma carroceria longa e de caimento suave – que tinha a desvantagem de deslocar para trás o centro de pressão aerodinâmica do automóvel, deixando a dianteira leve demais. Mas como fazer isto?
Um spoiler é nada mais que uma barreira física para o ar. Posicionado na extremidade traseira de um carro, esta barreira causa uma zona de fluxo mais lento, quase estático, entre o vidro traseiro e o spoiler. Ele cria quase literalmente uma almofada de ar quase estático (e portanto, de alta pressão) que fica entre a carroceria e as camadas de ar superiores, que se movem mais rápido. Como o ar sempre procura o caminho mais fácil, ele vai contornar por cima esta almofada, resultando em menos fricção e turbulência e, consequentemente, menor arrasto.
Em decorrência disto, o automóvel rasga o ar com mais facilidade, o que se traduz em melhor eficiência energética em um carro de rua, reduzindo o consumo de combustível; e maior velocidade final em um esportivo de pista. O senso comum nos faz pensar no spoiler como um freio aerodinâmico, uma barreira defletora de ar, quando um de seus principais benefícios é o oposto disso. Outro benefício é que ele acaba gerando algum downforce (muito menos que as asas, contudo) por ordenar o fluxo aerodinâmico na traseira, mitigando um pouco da sustentação aerodinâmica vindo da parte inferior da traseira.
Asas traseiras: mais downforce (bônus: a diferença de asa e aerofólio)
Na imagem de cima, um spoiler desviando o fluxo de ar sobre a traseira do carro. Na imagem embaixo, a asa traseira e o modo como ela interage com o fluxo de ar – uma diferença fundamental
O maior problema em colocar spoilers e asas traseiras no mesmo saco é que estes elementos atuam de forma fundamentalmente oposta, ainda que ambos funcionem com base no fluxo de ar. Enquanto o spoiler reduz o arrasto aerodinâmico, a asa traseira sempre o aumenta – e o utiliza para pregar o carro no chão. O coeficiente aerodinâmico de carros de corrida de turismo não é bom e a velocidade máxima deles fica limitada exatamente por isso: em compensação, a velocidade de contorno de curvas aumenta assombrosamente por causa do downforce – e é aí que vem o tempo de volta.
Você sabe como funcionam as asas de um avião? Em um corte lateral, você vê que há um desenho assimétrico entre a porção superior e a porção inferior. E o nome desta silhueta em corte em perfil é aerofólio. Eis então a diferença: asa é o nome do objeto 3D inteiro, enquanto aerofólio é uma representação 2D da visão em corte (vídeo e imagens abaixo) – esta silhueta possui diversos componentes e inúmeros perfis possíveis que alteram o seu comportamento. A imagem abaixo é do blog Hangar 33.
Vemos que o desenho do aerofólio de um avião é pensado de modo a acelerar o fluxo de ar sobre a asa (reduzindo a pressão) e reduzir sua velocidade sob ela (aumentando a pressão). Portanto, como há mais pressão sob a asa do avião, em determinado momento ele decola por causa da sustentação aerodinâmica – no caso do avião, multiplicada por diversos outros componentes da asa que resultam em forças adicionais, mas que não vale a pena entrarmos em detalhe neste texto.
As asas traseiras de um carro funcionam de maneira oposta. Seu formato faz com que o ar flua mais rapidamente por baixo delas, e mais lentamente sobre elas. Assim, há mais pressão sobre a asa do que sob ela e, quando em movimento, o fluxo de ar resulta em uma força para baixo. E, consequentemente, os pneus do carro que foi equipado com esta asa são forçados contra o solo: downforce!
Dito isto, uma consequência do fluxo de ar mais lento sobre a asa traseira é justamente o aumento do arrasto aerodinâmico, especialmente quando o aerofólio assume ângulos de ataque (inclinação) mais agressivos, no caso de aerofólios ajustáveis de competição. É por isso que um carro de corrida ajustado para um circuito de média fica com velocidade máxima mais baixa do que quando ajustado para uma pista cheia de retas como Monza: o arrasto na primeira configuração é muito maior, bem como o downforce, ajudando-o a contornar curvas.
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