A Ferrari, fabricante de supercarros, só surgiu nos anos 50 porque Enzo Ferrari precisava de dinheiro para financiar a Scuderia Ferrari, equipe de corridas – e foi só como um último recurso. Não muito tempo depois, porém, os carros da Ferrari se tornaram referência não apenas em desempenho e dinâmica (nada mais natural, pois a maioria delas era baseada em carros de competição, se não todas), mas também em estética e exclusividade. Já nos primeiros anos da década de 70, entusiastas de todo o planeta procuravam a Ferrari para comprar não apenas um carro esportivo, mas o carro esportivo.
Naquela época as coisas eram um pouco diferentes. Era muito mais comum que o comprador de uma Ferrari decidisse que os modelos “normais” oferecidos pela companhia não bastavam para satisfazer seu desejo por algo exclusivo. Muitos queriam um carro que fosse único no mundo – o que levava a Ferrari a terceirizar a produção das carrocerias para empresas conhecidas como carrozzerias, que ainda eram abundantes na Europa naquela época. As carrozzerias projetavam a carroceria de acordo com as medidas e especificações técnicas do chassi e do motor, fabricavam esta carroceria de forma artesanal e enviavam para a Ferrari, que entregava o carro pronto ao cliente.
É claro que este processo todo custava uma boa grana, e por isto algumas encomendas eram realmente exclusivas – tinham a carroceria completamente diferente, algumas com modificações que definitivamente refletiam muito mais o gosto pessoal do cliente do que o senso comum do que é “bonito” ou “elegante”. Em alguns casos, ficava mais para “curioso”, “inusitado” ou “bizarro’, mesmo. E é destas Ferrari que viemos falar hoje – exemplares especiais, de produção limitadíssima ou mesmo com apenas um único exemplar. O que todas têm em comum? Bem, todas são… incomuns. E todas são carros de rua, e não conceitos, pois estes têm quase o dever de ser estranhos.
Ferrari 330 GT 2+2 Shooting Brake Vignale
Shooting brake é a denominação e que costuma-se dar aos carros cuja carroceria lembra a de uma perua, ainda que seja mais curta e tenha apenas duas portas, na maioria das vezes com tampa traseira do tipo hatchback (que leva consigo o vigia traseiro ao abrir) e dá acesso ao hábitáculo.
A Ferrarai 330 GT 2+2 Shooting Brake foi encomendada por Luigi Chinetti em 1965. Chinetti ganhava a vida importando carros da Ferrari para os Estados Unidos, então não precisamos pensar muito para sacar que ele tinha dinheiro e era bem relacionado. Mais do que isto: ele ajudou o próprio Alfredo Vignale na hora de desenhar o carro.
Beleza é algo subjetivo, claro, mas é fato que a 330 GT 2+2 Shooting Brake ficou bem… diferente. A 330 GT “normal” era um cupê 2+2 de dois volumes com uma grande área envidraçada, traseira baixa e faróis elevados em relação ao capô. Era elegante, para dizer o mínimo. A versão Shooting Brake assumiu formas mais retilíneas, os faróis e lanternas escondidos atrás de grades cromadas e uma área envidraçada ainda maior. Apenas as arestas da porção traseira eram de lata: teto, a tampa do porta-malas e toda a porção lateral posterior do teto eram de vidro. O resultado eram um carro muito mais arejado, embora as proporções fossem meio estranhas. O motor, contudo, não foi alterado em nada: era o mesmo V12 de quatro litros com comando simples nos cabeçotes e 300 cv usado na 330 GT 2+2 comum.
O carro foi restaurado por completo em 1990 e, alguns anos depois, fez parte da coleção de Jay Kay, vocalista da banda Jamiroquai (o cara que tinha uma bela LaFerrari verde, aliás).
Ferrari 330 GTS Targa Harrah
Se você é familiarizado com o Porsche 911 Targa clássico, certamente notou a semelhança logo de cara. A Ferrari 330 GTS era um roadster de dois lugares, com entre-eixos mais curto. No entanto, o revendedor americano e colecionador de Ferrari William Harrah queria alguns exemplares com teto Targa e simplesmente os encomendou em 1968, último ano de produção da 330 GTS.
A inspiração no Porsche 911 Targa, que estreou em 1965, nunca foi admitida de forma oficial. Mas ela é visível – é só reparar no santantônio de aço escovado, o teto removível forrado com couro e o vigia traseiro envolvente estão lá. Aliás, há certa discordância a respeito desse elemento: algumas fontes dizem que era de vidro, enquanto outras afirmam que o vigia era feito de acrílico transparente.
Ferrari 330 GTC Zagato Convertible
Feita em 1974, a Ferrari 330 GTC Zagato foi feita a partir de um exemplar de 1967 da 330 GTC, versão fechada da 330 GTS. Estamos falando de um carro desenhado na década de 70, o que explica a maior presença de linhas retas e a dianteira com faróis redondos sob lentes retangulares escurecidas. A traseira ganhou um vigia menor e ficou mais elevada, com lanternas retangulares posicionadas em cavidades.
Novamente o motor era um V12 de quatro litros e 300 cv. Agora, diferentemente da GTS Targa Harrah, a 330 GTC Zagato é um carro único, feito especialmente para Luigi Chinetti.
Ferrari 365 GT4 2+2 “Croisette” Felber
Por si só a Ferrari 365 GT4 2+2 é um carro curioso: com 500 exemplares fabricados entre 1972 e 1976, ela era um sedã de duas portas com um motor V12 de 4,4 litros com seis carburadores e 345 cv, acoplado a uma caixa manual de cinco marchas.
A versão Croisette é uma criação de Willy Felber, empresário e entusiasta suíço que tinha uma revenda de Ferrari e, de tempos em tempos, criava versões exclusivas por conta própria. Isto ajuda a explicar o aspecto meio improvisado da versão shooting brake, que parece simplesmente ter recebido um teto adaptado de forma amadora. As seis lanternas traseiras, por outro lado, são originais da 365 GT4… embora não pareçam. Não nos surpreende que nenhum cliente tenha encomendado um carro igual a Felber, e por isso a 365 GT4 2+2 “Croisette” é única no mundo.
Ferrari 330 GT 2+2 Navarro Special
Outro projeto especial feito com base na 330 GTS 2+2, a Navarro Special foi criada pela carrozzeria Sports Cars, do designer italiano Piero Drogo, para um dono de boate (sério) chamado Norbert Navarro em 1966. Segundo consta foi o próprio Navarro quem forneceu os rascunhos do desenho para Drogo. Navarro não era um projetista de carros, o que pode nos ajudar a entender a estética… não-convencional do carro.
Uma peculiaridade da 330 GT 2+2 Navarro Special é que, apesar de não parecer, ela usa todos os vidros laterais originais da 330 GTS, assim como os painéis das portas. O que mudou foi, bem… todo o resto: o carro tinha uma dianteira bem mais baixa, com faróis circulares em molduras quadradas ao lado da grade do radiador; pintura dourada com efeito flocado e extensões nas latearais; painéis de metal na região imediatamente posterior às janelas laterais traseiras, que dão ares de picape “El Camino” ao cupê, e lanternas circulares triplas atrás.
Na época questionou-se o motivo de a carrozzeria Sports Cars ter aceito executar a visão de Navarro, mas a resposta provavelmente tem a ver com a quantidade de dinheiro envolvida.
Ferrari 365 GTC/4 Beach Car Felber
O suíço Willy Felber era mesmo um cara ousado: além de fazer a shooting brake 365 GT4 “Croisette”, ele também transformou a 365 GTC/4 – um cupê feito com base na Ferrari Daytona, com o mesmo V12 de 4,4 litros e 345 cv – em um… buggy de praia. Sim, você viu certo.
A GTC/4 perdeu as portas e o ganhou soleiras mais altas. Além disso, o teto foi removido e nenhum tipo de capota conversível foi instalado – era mesmo um buggy de praia, feito para dirigir a céu aberto em um dia de sol. É claro que a ideia de um buggy de praia feito sobre uma Ferrari clássica não é para qualquer um, mas estamos falando de uma conversão de época, quando a 365 GTC/4 ainda era só um esportivo usado (ainda que não fosse barata), e não um clássico. Além disso, o design criado pela carrozzeria Michelotti sob encomenda de Willy Felber até que consegue causar uma boa impressão geral – é o fato de ter origem em uma Ferrari de verdade é que pode atrapalhar a percepção das coisas.
Ferrari 166MM Zagato Panoramica
A Ferrari 166MM foi um dos primeiros carros de rua vendidos pela Ferrari, e o primeiro a ser fabricado em maior volume – 39 exemplares foram feitos entre 1949 e 1952, todos com motor V12 Colombo de dois litros e potência que variava entre 110 cv e 140 cv. Sendo assim, a 166MM Zagato Panoramica é a representante mais antiga desta lista.
Como você deve ter percebido esta 166MM não era um exemplar normal: ela foi o resultado da primeira parceria entre a Ferrari e o estúdio Zagato. O carro foi idealizado pelo próprio Ugo Zagato, que contou com a ajuda de Gioachinno Colombo (projetista do primeiro motor V12 usado pelas Ferrari de rua) para chegar ao desenho final.
O resultado é uma adaptação bastante, digamos… direta do desenho do roadster, com um teto em forma de abóbada com uma enorme área envidraçada (daí o sobrenome Panoramica) sobre o habitáculo da 166MM. A execução foi caprichada, mas o desenho não era dos mais harmônicos. Independentemente disto, é um carro de importância histórica tremenda, porque a 166MM Zagato Panoramica se tornou também o primeiro cupê da Ferrari.
Ferrari Mondial t PPG Pace Car
Por ser uma Ferrari da década de 198, a Mondial T PPG Pace Car é uma estranha em um ninho de estranhezas. A Mondial foi lançada em 1980 para substituir a Ferrari 308 GT4 no posto de modelo 2+2 com motor V8, e deixou de ser fabricada em 1993. Ela acabou sendo a última Ferrari V8 2+2 produzida até a chegada da Ferrari California, em 2008 – e a California tem motor dianteiro, enquanto a Mondial tinha motor central-traseiro.
A Ferrari Mondial t foi a última versão do modelo, e foi a única a ter os para-choques pintados na cor da carroceria. O motor era um V8 de 3,4 litros e 300 cv, acoplado a uma caixa de cinco marchas e montado na transversal (por isto o “t” do nome, que era mesmo mínúsculo). Foram feitos 858 cupês e 1.017 conversíveis entre 1988 e 1993. Logo no primeiro ano de fabricação, um dos cupês se tornou a Montial t PPG Pace car.
O carro era o exemplar de chassi nº 76390, que foi modificado sob encomenda da PPG Industries, gigante do ramo de tintas que, na época, era patrocinadora titular da PPG Indy Car World Series. Para se transformar no pace car da Indy, a Mondial recebeu uma nova carroceria projetada pelo estúdio I.DE.A – que naquele ano alcançava reconhecimento mundial com a apresentação do Fiat Tipo, também de sua autoria.
O resultado foi um carro de visual mais limpo e aerodinâmico, sem arestas muito marcadas e cortes abruptos. Sua primeira aparição nas pistas foi durante as 300 Milhas de Laguna Seca em 1989, sendo vendida depois de participar de algumas corridas na Fórmula Indy.
Ela reapareceu em 2004, durante um leilão promovido pela agência Christie’s durante as 24 Horas de Le Mans no Circuito de La Sarthe. Foi vendida por € 70,5 mil, o que dá cerca de R$ 282 mil em conversão direta.