O nome Cisitalia é um daqueles que soam familiares, mas não estão no mesmo nível de “Ferrari”, “Porsche” ou “Maserati”. Alguns de vocês – os com melhor memória – podem se recordar no papel que a empresa teve na fundação da Abarth. Afinal, foi um Cisitalia com motor flat-12 Porsche o último carro feito por Carlo Abarth antes de fundar, em 1949, a empresa que levava seu sobrenome (e usava o emblema do escorpião por causa do signo do seu fundador).
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Mas hoje não vamos falar da Abarth – até porque já temos uma matéria que conta esta história em detalhes –, mas sim do que ocorreu depois que a Cisitalia e Carlo Abarth seguiram caminhos separados. O engenheiro austríaco deu início a uma bem sucedida parceria com a Fiat que dura até hoje. Já a Cisitalia… mudou-se para a Argentina e, de certa forma, deu o pontapé inicial.
O dono da Cisitalia se chamava Piero Dusio, e ele era presidente da Juventus na época – o time pelo qual ele havia jogado suas três únicas partidas como jogador profissional antes de aposentar-se forçosamente por causa de um joelho machucado.
O protótipo feito com a ajuda de Carlo Abarth, o Cisitalia 360, usava mecânica Porsche porque Ferry Porsche, filho do Dr. Ferdinand Porsche, também tinha uma participação na empresa. Acontece que, na época, seu pai estava preso na França, condenado por colaborar com os nazistas anos antes, e todo o dinheiro que Ferry mantinha na Cisitalia foi usado no processo de libertá-lo. A Cisitalia quebrou, Carlo Abarth ganhou um pé retaguarda e Dusio pegou suas coisas e partiu para a Argentina, levando consigo o protótipo – e o que havia sobrado da Cisitalia depois de gastar rios de dinheiro com o carro de corrida.
Graças a esta confusão toda, porém, a Argentina ganhou sua primeira fabricante de automóveis internacional: a Automotores Argentina, ou simplesmente AutoAR.
Não foi uma manobra repentina, porém: desde janeiro de 1948 Piero Dusio já pensava em mudar-se para a Argentina como um “plano B” – desde quando, por acaso, encontrou-se casualmente com o piloto argentino Clemar Bucci, que havia acabado de ganhar o Campeonato Argentino na categoria Força Livre e fora encarregado pelo governo argentino com o propósito de, veja só, trazer alguma fabricante Europeia para a terra dos hermanos.
Dias depois, Dusio abriu as portas da Cisitalia para Bucci, que ficou maravilhado – em especial, com o protótipo 360 com motor Porsche. Para ele, seria uma ótima forma de dar início a uma nova equipe de automobilismo da Argentina e, mais importante: a Cisitalia poderia ser o ponto de partida para uma fabricante de carros genuinamente argentina.
Embora a Cisitalia não fosse um empresa gigantesca, o governo argentino buscava incentivar a instalação de indústrias estrangeiras no país – ou seja, uma fonte de caixa estava garantida. Quando Ferry Porsche usou sua parte da empresa para libertar o pai da prisão, Dusio viu que era chegada a hora de colocar o plano em prática.
Se você está se perguntando como uma fabricante obscura de carros de competição ganhou um papel tão importante: na época, havia certo receio das empresas multinacionais em investir em um mercado novo e desconhecido como a Argentina. O encontro ao acaso de Bucci e Dusion, porém, fez nascer um atalho. Um decreto governamental, assinado em 10 de agosto de 1949, tratou de garantir que a Cisitalia teria condições facilitadas produzir na Argentina, e só era preciso cuidar dos trâmites da viagem: importação de máquinas, instalações e materiais, além de créditos fiscais, tornariam a mudança o menos traumática possível.
Todas as partes tinham pressa e, por isso, já naquele ano teve início a construção da fábrica da Automotores Argentina – AutoAR. A ideia do nome foi do próprio Piero Dusio: para ele, valorizar a noção de que aquela era uma indústria genuinamente argentina, mesmo que não fosse, era primordial para o sucesso da empreitada.
Planos ambiciosos de todos os envolvidos mencionavam uma fábrica gigantesca em um terreno de mais de 2 milhões de metros quadrados com 5.000 funcionários. Isto nunca aconteceu: a fábrica acabou começando a operar em um galpão quase improvisado no norte de Buenos Aires enquanto a fábrica definitiva era levantada na cidade de Pacheco. Essa fábrica, pronta em 1951, ocupava um terreno de 15.000 m² (dos quais 10.000 m² eram construídos) e abrigava 250 funcinários, entre operários da fábrica e o pessoal da manutenção. Destes 70 empregados eram contratados por outra empresa, a Cisitalia Argentina ICSA, dedicada ao desenvolvimento e à construção de esportivos e carros de corrida.
Paralelamente, dava-se início a uma abrangente campanha publicitária, na qual eram anunciados diversos carros novos fabricados na Argentina com tecnologia italiana – muito antes de a fama de temperamentais dos carros italianos se tornar consenso global, claro. Entre esses novos carros, estavam dois carros de passeio, uma station wagon chamada Weekend Rural (pura coincidência) e uma picape, a Weekend Pick Up, ambas com capacidade para levar 750 kg. Os carros seriam distribuídos, a princípio, pela rede de concessionárias da Fiat na Argentina, que até então só vendia modelos importados. A Fiat também fornecia o motor 1.9 de 71 cv usado pelos utilitários, que também podiam receber um motor Willys de 2,2 litros e 65 cv; ou um motor Simca de 2,35 litros e 85 cv. Detalhe: os modelos Weekend tinham carroceria desenhada por engenheiros da Porsche (possivelmente aproveitando recursos da breve ligação com a companhia alemã) e, por isso, ficou conhecida como PWO – Porsche-Willys Overland. Nem fazia muito sentido, visto que só o motor era Willys, mas quem pode condená-los por aproveitar-se da conexão?
A Weekend teve pouco mais de 1.500 exemplares fabricados entre 1950 e 1953, e foi substituída pelo Fiat 1100T, rebatizado AutoAR Micropanorámico, que teve outras 1.500 unidades produzidas antes de sair de linha em 1958.
Do lado Cisitalia da moeda, as coisas também não iam muito melhor. A fabricante se converteu em mera montadora, importando carros semiprontos da Itália, graças aos contatos de Dusio, montando-os localmente e os revendendo com outro nome – no caso, o pequeno Fiat 850, em como cupê ou conversível. Mas apenas 170 exemplares do chamado Cisitalia 750 foram feitos entre 1961 e 1962.
Parte das dificuldades advinha de questões políticas: em 1955 o então presidente argentino, Juan Domingo Perón, renunciou ao cargo – uma das várias consequências da rebelião militar ocorrida em Córdoba naquele ano. Perón era um dos apoiadores da AutoAR e, sem ele, o projeto ficou à míngua.
O golpe de misericórdia veio em 1963, quando o novo governo argentino retirou os incentivos à AutoAR e, formalmente, abandonou a empreitada. O motivo? Ironicamente, falta de nacionalização. Pudera: os carros eram todos importados e montados em CKD! Não eram, de fato, produtos argentinos. Apenas a mão de obra era local.
Em uma última cartada, Dusio tentou um acordo com a alemã NSU para fabricar na Argentina o pequeno Prinz, mas foi fútil: outro carro estrangeiro montado na Argentina não era a solução. Sem ter para onde correr, Dusio tomou uma decisão drástica, porém inevitável: fechou as portas da AutoAR ainda em 1963 e passou a viver da venda de imóveis. Ele nunca retornou à Itália, e morreu em 1975.
Fundada às pressas, em fuga, a AutoAR acabou virando uma nota de rodapé em uma das primeiras páginas da história da indústria automobilística argentina, mesmo tendo executado um papel tão importante. Sua associação com a Fiat, que acabou meio que sendo sua ruína, abriu caminho para que a Fabbrica Italiana Automobili Torino assumisse de vez o compromisso de produzir automóveis na Argentina – e herdou o título de pioneira da indústria local.
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