Antigamente, as fabricantes de automóveis não davam muita importância à preservação de seu legado para as futuras gerações. Inúmeros carros-conceito do passado, por exemplo, apodreceram em galpões, foram vendidos a preço de banana ou simplesmente destruídos. Eles já haviam cumprido seu propósito e eram considerados peso-morto.
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Algo assim é inimaginável nos dias de hoje – muitas companhias, como a Volkswagen, a Fiat e a Porsche, mantém acervos cuidadosamente catalogados e muito bem cuidados, com equipes especializadas vêm se dedicando a rastrear e recuperar modelos relevantes em sua história. E, de vez em quando, carros com histórias verdadeiramente marcantes retornam à vida.
É o caso do Bentley Corniche, um protótipo de 1939 que foi destruído não uma, não duas, mas três vezes – e agora, 80 anos depois de sua estreia, acaba de ser restaurado pelas mãos da Mulliner Coachbuilding, a encarroçadora oficial da Bentley. “Restaurado”, aliás, não é o termo mais adequado – mais apropriado é dizer que o Corniche foi reconstruído. Afinal, depois que o carro foi destruído pela última vez, não sobrou nada além do chassi.
Esta história começa com a ideia de transformar o sedã Mark V em um carro mais esportivo. Lançado naquele mesmo 1939, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, o Mark V era uma evolução do Bentley 3.5-Litre, modelo apresentado em 1933. A carroceria era bem parecida, mas o chassi era modificado para ficar mais rígido, e a suspensão dianteira era diferente – em vez do feixe de molas semi-elípticas, herança da Rolls-Royce, o Mark V tinha um sistema independente por braços triangulares sobrepostos que era bem avançado para a época.
Foram feitos 11 exemplares entre 1931 e 1941 – o período para encomendas foi bem curto porque, com a Guerra, a Bentley precisou dedicar-se mais à produção de equipamentos militares do que à fabricação de automóveis. E foi justamente por causa da Guerra que o Corniche, sua versão com carroceria aerodinâmica, perdeu sua chance de existir.
O Bentley Corniche tinha a mesma mecânica do Mark V – que, por sinal, já era excelente. O motor de seis cilindros em linha e 4,5 litros (cuja potência não era revelada pela fabricante) era acoplado a uma transmissão manual de quatro marchas, e o Corniche era capaz de atingir os 180 km/h no oval do antigo circuito de Brooklands. Era um desempenho mais que considerável para um carro do fim dos anos 1930.
Ajudavam nisso a carroceria, que sofria menos arrasto aerodinâmico, e o chassi mais leve graças ao uso de alumínio em maior proporção. Foram feitos dois chassis, mas só um deles recebeu a nova carroceria – que tinha um caimento mais suave no teto, um vão menor entre os para-lamas e a porção central do carro, e um bico mais afilado. Os faróis eram integrados à face dianteira, coisa que não acontecia no Mark V, e tinham formato de gota invertida, com um terceiro farol auxiliar próximo do para-choque. Já o interior era praticamente idêntico ao do MkV, com acabamento em madeira de lei, embora o espaço no banco traseiro fosse um pouco menor.
Depois dos testes em Brooklands, que era onde a Bentley colocava todos os seus carros para acelerar, o Corniche foi levado para Chateauroux, na França – onde a fabricante queria verificar o comportamento do carro em ruas e estradas do mundo real. E foi aí que aconteceu a primeira grande tragédia na história do carro: ele foi atingido por um ônibus, e imediatamente enviado de volta para a encarroçadora mais próxima – a Vanvooren, que ficava em Paris – para ser consertado. Por sorte, foram apenas danos cosméticos, e em pouco tempo o Corniche estava em ótima forma outra vez.
Mas certas coisas estão fadadas a não dar certo. No dia 8 de agosto de 1939 – sim, exatos 80 anos atrás – um dos pilotos de testes da Bentley foi buscar o carro em Paris para levá-lo de volta a Chateauroux. Ele não conseguiu nem chegar lá: no meio do caminho, debaixo de chuva, ele levou uma fechada e, ao desviar do infeliz, acertou uma árvore e tombou.
O condutor saiu ileso, mas o carro ficou com a dianteira toda destruída, o chassi danificado e a lateral dianteira muito amassada. Foi a segunda tragédia – e a única a ser documentada.
A partir daí, testar o carro sequer era uma preocupação: a Bentley estava se preparando para exibir o Corniche no circuito europeu de Salões do Automóvel, primeiro no Reino Unido, depois na França.
No entanto, em 3 setembro, tudo mudou – naquele dia, oficialmente, começou a Segunda Guerra Mundial, e todos os planos foram cancelados, incluindo os Salões de Londres e Paris. A Bentley decidiu, então, seguir lentamente com a recuperação do carro, na medida do possível, separando a carroceria do chassi – que foi levado de volta para a fábrica da Bentley, na Inglaterra, enquanto o restante do ficou na França. De qualquer jeito, o carro teria de esperar até o fim do conflito para ser apresentado ao público…
A carroceria ficou pronta em maio de 1940 e, poucos dias depois, enviada de volta para a Inglaterra de balsa. E aí começaram os problemas: primeiro, o carro ficou retido por questões burocráticas na alfândega de Dieppe, cidade do litoral francês. Inicialmente, seriam alguns dias, que se tornaram semanas, e depois meses e meses. Então, em agosto (novamente) de 1942, Dieppe foi bombardeada. O depósito da alfândega foi completamente arrasado e, com ele, a carroceria do Bentley Corniche.
Foi em 2009, setenta anos depois dos incidentes, que o departamento de clássicos da Rolls-Royce, na cidade de Derby, recuperou o chassi que sobrou (o outro, acredita-se, já não existe mais) e começou a fazer uma carroceria nova com a ajuda da encarroçadora britânica Ashley & James. O trabalho foi todo feito de forma artesanal, usando apenas fotos como referências – os esquemas técnicos já não existem mais. O trabalho foi concluído na Mulliner Coachbuilding, que atua como encarroçadora “sob encomenda” para a Bentley. Só agora o Corniche ficou pronto e, enfim, será mostrado para o público.
Por enquanto, o Bentley Corniche apenas posou para uma sessão de fotos. No entanto, daqui a um mês ele será um dos destaques do Salon Privé, evento voltado a carros clássicos de luxo realizado no Palácio de Blenheim, no Reino Unido. De lá, certamente será levado com todo o cuidado para a sede da Bentley… onde deverá ficar bem longe de ônibus, árvores e bombardeiros.