Você conhece a SCP Foundation? Qualquer leitor – no sentido mais amplo da palavra – ligado em ficção científica, histórias de horror e comunidades da Internet provavelmente já ouviu falar na organização “ultra-secreta” que há décadas dedica-se a obter (Secure), conter (Contain) e proteger (Protect) objetos e fenômenos bizarros ou inexplicáveis que assolam nosso mundo.
A SCP Foundation é uma obra de ficção colaborativa que desde 2008 recebe contribuições de autores de todo o planeta e, para quem gosta de um lore profundo, misterioso e livre a interpretações pessoais, pode ser um caminho sem volta.
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Muitas histórias são completamente originais, enquanto outras são inspiradas por eventos do mundo real, contos de terror tradicionais e lendas urbanas.
Ler os artigos da SCP Foundation tem sido um dos meus passatempos favoritos nos últimos dois anos, e eu jamais imaginei que um dia falaria sobre isso no FlatOut – afinal, é uma das poucas coisas não relacionadas a carros por que eu realmente me interesso. Mas não havia como resistir à ideia de mencionar a Fundação quando topei com um artigo sobre o Black Volga. Ou melhor: inspirado nele.
Via de regra, todo artigo da SCP Foundation traz duas coisas: uma descrição dos Procedimentos Especiais de Contenção para determinado objeto, e uma descrição do objeto em si. A ideia é dar um ar “oficial” a cada artigo, com linguagem técnica que pode ser difícil, trechos propositalmente censurados e uma quantidade enorme de elementos canônicos. E um desses objetos, denominado SCP-265, é o Black Volga.
A lenda do Black Volga origina-se da União Soviética, em especial Polônia e Rússia. Como toda história de domínio público, é extremamente difícil definir o ponto exato onde a história surgiu, mas acredita-se que tenha sido na década de 1960, quando o GAZ M21 Volga (ou só “GAZ-21” ou “GAZ Volga” era considerado por muita gente o melhor, mais luxuoso e mais bem-equipado automóvel vendido na União Soviética.
Lançado pela Gorkovsky Avtomobilniy Zavod em 1956, o GAZ-21 era um sedã cujo visual tentava emular os carros americanos, porém com uma plataforma mais simples e robusta para suportar as condições precárias das ruas e estradas soviéticas. GAZ-21 era o nome da versão com motor quatro-cilindros de 2,4 litros e 65 cv, mas também havia o GAZ-23, que foi fabricado em quantidade limitada para os oficiais da KGB, e era movido por um V8 de 5,5 litros e 160 cv emprestado do luxuoso GAZ Chaika, a limousine favorita dos membros do governo.
Pode ter sido esta associação com as autoridades soviéticas e suas ações obscuras que deu origem à história do Black Volga. Originalmente o carro é descrito como um GAZ-21, mas outras versões falam em seu sucessor, o GAZ-24.
O Black Volga é sempre um carro preto com rodas brancas que roda à noite sequestrando pessoas, especialmente crianças. Em algumas versões, ele também tem cortinas brancas em todos os vidros, com exceção do para-brisa. Certas versões da lenda dizem que ele anda sozinho, sem ninguém no volante, enquanto outras colocam nele diferentes personagens – padres, freiras, judeus, satanistas, comunistas ou até mesmo o próprio Satanás – para assustar as crianças de forma mais convincente.
O destino das pessoas capturadas também varia, dependendo de quem conta a história. A explicação mais comum: as pessoas levadas pelo Black Volga vão doar (involuntariamente, claro) sangue para curar leucemia em pessoas ricas do ocidente ou da Arábia – o que era claramente uma forma de demonizar estes grupos na visão das crianças. Outros diziam que, na verdade, o Black Volga é usado pela KGB para sequestrar pessoas e roubar seus rins, o que soa como uma resposta à propaganda feita pela própria KGB no jornal Pravda em 1986, dizendo que latino-americanos viajavam à União Soviética para roubar crianças, matá-las e vender seus órgãos no mercado negro.
Vocação sinistra
Sozinha, porém, a popularidade do GAZ-21 na União Soviética não seria suficiente para dar origem ao mito do Black Volga. E realmente há um “fundo de verdade” na história – tem a ver com o GAZ-M1, segundo modelo de passeio da GAZ, lançado em 1931 e extremamente popular entre os oficiais da NKVD (futura KGB), serviço secreto da União Soviética, para realizar seus… serviços secretos. Naquela época a repressão por parte da NKVD estava em seu auge. Não era incomum que pessoas consideradas avessas ao governo em exercício sumissem sem deixar rastros – e a imagem dos GAZ-M1, invariavelmente pintados de preto por questões de custo, ficou fortemente associada a desaparecimentos inexplicáveis com suposto envolvimento da NKVD e (a partir de 1954) da KGB.
A maior parte das versões tende a colocar o Black Volga não como algo sobrenatural, mas sim como obra de alguém – seja um serial killer à solta ou agentes do serviço secreto. Algumas dizem que, em vez de perseguir, intimidar ou violentar as vítimas em uma rua escura, o Black Volga simplesmente para ao lado da pessoa, como que se materializado naquele momento, e seu motorista pergunta as horas.
Alguns dizem que, nesse momento, a pessoa é raptada e possivelmente morta. Outros falam que, ao ouvir a resposta, o motorista diz: “você morrerá amanhã, a essa hora” – e a profecia sempre se cumpre. E existem relatos de que, quando o motorista pergunta as horas, deve-se responder “é hora de Deus” para que o Black Volga dê meia-volta e saia em disparada para nunca mais voltar.
Influência dos EUA
Na década de 1980 a lenda do Black Volga ressurgiu no imaginário popular do Leste Europeu, com versões “importadas” da história sendo contadas em países a Europa – devidamente ocidentalizadas, com um Mercedes ou BMW no lugar do GAZ Volga e o obrigatório número “666” na placa. E, embora Stephen King nunca tenha mencionado, há certa semelhança entre o Black Volga e “Christine, o Carro Assassino”, filme de 1983 baseado no romance de mesmo nome, lançado no mesmo ano. Não é de surpreender que, nos anos pré-dissolução da União Soviética, houvesse um interesse muito maior da juventude soviética na cultura ocidental – o que pode muito bem ter trazido, indiretamente, o Black Volga de volta às atenções. Da mesma forma que o Chupacabra ou o ET de Varginha no Brasil.
Outros estudiosos do folclore soviético também associam a lenda do Black Volga a uma resposta da União Soviética às populares figuras do “homem de preto”, que nos Estados Unidos são associados há décadas a uma operação sigilosa, governamental ou não, que trabalha para esconder da população a verdade sobre os alienígenas no Planeta Terra
A realidade é pior
Por mais que a premissa de um carro misterioso que captura crianças e vende seus órgãos – e que pode até ser conduzido pelo próprio capeta – seja arrepiante, por vezes a realidade pode ser ainda mais perturbadora.
Outra possível explicação para o mito do Black Volga está, de fato, na NKVD. O chefe da organização e Ministro de Assuntos Internos da União Soviética, Lavrentiy Pavlovich Beria, foi investigado em 1953 por uma série de crimes. Crimes governamentais e políticos, como traição, espionagem e “ação contrarrevolucionária”; e crimes sexuais – sequestros, abusos e estupros. Ele foi executado com um tiro na testa.
As circunstâncias do processo, da captura, do julgamento e da execução de Beria são conhecidas de forma superficial, mas os pormenores talvez jamais sejam conhecidos para além das autoridades envolvidas. Mas há relatos de que, em seus crimes sexuais, o oficial perseguia jovens desacompanhadas pelas ruas de Moscou ao volante de uma limousine Packard toda pintada de preto. Troque o Packard por um carro local – o GAZ-21 – e você tem o Black Volga.