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Trânsito & Infraestrutura

Bolsonaro e o trânsito: o que realmente está sendo proposto pelo governo?

Aconteceu de novo: a pauta do trânsito veio à tona na discussão política e as paixões ideológicas voltaram a se sobrepor à razão. Infelizmente. Porque o trânsito é algo sério demais para ser transformado em disputa política e em slogans eleitorais — e quem nos acompanha a tempo sabe que este é um ponto de vista que defendemos desde antes da criação do FlatOut.

Desta vez a bronca vai além dos radares, e envolve também a validade e o limite de pontos na CNH, as lombadas eletrônicas, o processo de habilitação e até as cadeirinhas e assentos infantis. E nestas discussões de ânimos acirrados e cabeças estão quentes, a razão costuma ser deixada de lado, dando vez à histeria, o que só agrava a situação. A necessidade de confrontar argumentos rapidamente nas redes sociais, as reações instintivas contra nossas crenças pessoais faz com que a discussão seja superficial.

É por isso que optamos por aguardar alguns dias para publicar um post a respeito desta polêmica exagerada e desproporcional. Estes dias foram o tempo necessário para que o documento apresentado pelo Poder Executivo fosse protocolado, digitalizado e disponibilizado pelos canais oficiais da Câmara (você pode baixá-lo aqui). Foi o tempo necessário para que pudéssemos analisar com atenção os itens propostos pelo governo e, com base na leitura da fonte primária da informação, pudéssemos tecer opiniões e argumentações, além de resumir de forma imparcial aos leitores o que está sendo proposto. Sem viés ideológico nem afetações partidárias.

 

O que foi realmente proposto pelo governo?

O documento apresentado pelo presidente da república juntamente de seu ministro da Infraestrutura, foi protocolado como Projeto de Lei 3267/19 e redigido pelo Ministério da Infraestrutura, e não pelo gabinete presidencial. O texto é assinado pelo ministro da Infraestrutura Tarcísio Gomes de Freitas e argumenta que, devido aos 20 anos de idade do Código de Trânsito Brasileiro, são necessárias mudanças para “estimular a evolução na gestão do trânsito” e dar aos operadores do Sistema Nacional de Trânsito (polícias, conselhos e departamentos municipais, estaduais e federais) “ferramentas para exercer suas atividades com foco na redução de acidentes e de mortes e lesões no trânsito”.

As primeiras propostas incluem modificações para dar ao Contran a incumbência de coordenação dos planos e programas de segurança no trânsito, além de atribuir a si a responsabilidade de resolver questões de interpretação da lei de trânsito, algo que não está claro na atual redação do código, mas que é prevista pela Constituição Federal de 1988. Além disso, o projeto visa uniformizar a terminologia a fim de evitar leituras diferentes das mesmas normas, e também dar ao Denatran a incumbência de centralizar todos documentos eletrônicos de trânsito.

Agora, como dissemos mais acima, a polarização da discussão levou a algumas interpretações livres sobre o que foi proposto, também com base no que foi expresso apenas verbalmente pelo presidente e pelo ministro, originando aí as polêmicas dos últimos dias.

 

Faróis durante o dia

Sobre o uso de faróis durante o dia, o documento aponta que as lâmpadas dos carros não equipados com DRL “não são projetadas para permanecerem acesas durante todo o tempo”, o que reduz sua vida útil. Além disso, o texto também argumenta que a legislação obriga motos e ônibus a usarem faróis acesos durante o dia por questões de diferenciação e percepção, “aumentando a visibilidade por parte dos demais motoristas” e que a obrigatoriedade do uso dos faróis durante o dia em carros comuns, prejudica esta finalidade.

O texto ainda menciona a intenção de modificar a lei para que todos os carros sejam produzidos obrigatoriamente com sistema de luzes diurnas, que permanecem acesos enquanto o motor estiver ligado, “assim os condutores não têm como esquecer de ligá-los”. A obrigatoriedade já é prevista pela resolução 667/17 do Contran, mas seria reforçada por lei, precisando ser apreciada pelo Congresso para ser anulada, suspensa ou cancelada, enquanto uma resolução pode ser “derrubada” por uma simples decisão do Contran.

Além disso, a solicitação de modificação no inciso IV do art. 40º, pretende obrigar o uso de luz baixa sob neblina, chuva ou cerração durante o dia. Atualmente o código obriga apenas o uso de luzes de posição, mais fracas que a luz baixa. Por último, a proposta pretende obrigar o uso da luz baixa durante o dia para os carros que não-equipados com DRL em rodovias de pista simples.

 

Cadeirinhas e assentos infantis

Sobre as cadeirinhas, o texto da proposta pretende apenas modificar o artigo 64 para incluir no Código a obrigatoriedade do uso da cadeirinha. Atualmente o Código de Trânsito Brasileiro não dispõe sobre a obrigatoriedade de cadeirinhas, constando apenas que “as crianças com idade inferior a dez anos devem ser transportadas nos bancos traseiros, salvo exceções regulamentadas pelo CONTRAN.”

O que há hoje é uma resolução do Contran, que obriga a utilização e prevê a multa pela ausência. O problema é que a penalização é inconstituicional. Em abril passado o Supremo Tribunal Federal “afastou a possibilidade de estabelecimento de sanções por parte do Conselho Nacional de Trânsito (Contran)”, o que significa que o Conselho não tem a prerrogativa legal de determinar o que é infração de trânsito. Sendo assim, as multas pela ausência das cadeirinhas atualmente são inconstitucionais.

Por essa razão é preciso incluir sua obrigatoriedade na legislação (Código de Trânsito), limitando o Contran à regulamentação de sua utilização e tornando constitucional a cobrança de multa. Contudo, o projeto de lei também prevê que a punição seja limitado a advertência por escrito, sem pontuação na CNH.

 

Ciclomotores vs. bicicletas elétricas

Menos polêmica, é a proposta de diferenciar veículos como scooters elétricos, patinetes e bicicletas elétricas dos ciclomotores, dispensando-os de registro e emplacamento. Atualmente o Código de Trânsito trata como ciclomotor qualquer veículo motorizado com duas ou três rodas que não exceda os 50 km/h, exigindo habilitação do condutor, registro e licenciamento do veículo. Segundo a letra da lei, atualmente você é obrigado a emplacar um patinete elétrico.

 

Recall

Outra proposta do texto diz respeito aos recalls. O governo pretende proibir por lei a emissão do Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo (CRLV) que não tiver atendido aos recalls dos fabricantes, se for o caso. Ou seja: quem não atender os recalls, não poderá licenciar o veículo.

Atualmente os recalls são registrados junto ao Denatran e o sistema do Renavam (que emite o CRLV) já consta se o veículo atendeu ou não. Por tratar-se de questão de segurança, a proposta pretende modificar o artigo 128 do Código para impedir que veículos não reparados sejam licenciados.

 

Aumento do limite de pontos

Outra proposta que alimentou a polêmica é o aumento do limite de pontos de 20 para 40. A proposta é justificada pelo Ministério porque “alcançar os 20 pontos está cada vez mais comum na atual conjuntura brasileira” e no caso dos condutores profissionais “o problema é ainda mais grave, já que a carteira de habilitação é seu instrumento de trabalho”. Além disso, o texto também pretende agilizar o processo de suspensão da CNH, fazendo com que ele já seja iniciado juntamente à aplicação da multa que totalizou os 20 ou mais pontos.

 

Aumento da validade do exame médico

O aumento do prazo da validade do exame médico também foi proposto pelo Ministério. Atualmente válido por cinco anos, o texto propõe que ele seja “ajustado”, sugerindo o prazo de 10 anos para motoristas com até 60 anos e cinco anos para motoristas com mais de 60 anos. A argumentação é que a qualidade de vida e a expectativa de vida estão maiores do que há 20 anos.

 

Infração por conduzir motocicleta ou ciclomotor sem viseira ou óculos de proteção

Atualmente a exigência de viseira e/ou óculos de proteção para motociclistas é feita somente por resolução do Contran. A proposta é alterar os incisos X e XI do artigo 244 para tipificar como infração de trânsito a ausência de viseira ou óculos de proteção, ou seu uso em desacordo com a regulamentação do Contran, tornando a infração inquestionavelmente legal.

 

Proposta ainda não é lei

Antes de discutirmos calorosamente as propostas, precisamos considerar sua própria natureza: elas são apenas propostas, e não decretos. Isso significa que elas precisam ser apreciadas pelo Congresso Nacional, ou seja: serão submetidas às comissões da Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. Haverá discussões e debates sobre as propostas, que poderão ser modificadas (ou não) ou apensadas a outras propostas similares.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já adiantou em entrevista coletiva que não irá permitir a alteração de leis que diminuam a segurança no trânsito, algo que será debatido nas comissões e até em audiências públicas, se o Congresso Nacional julgar necessário. E, claro, ainda há a possibilidade de estas propostas simplesmente serem rejeitadas e tudo continuar como está.