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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #12: Fusca

O Fusca é, talvez, o automóvel mais paradoxal da história da engenharia e da cultura do século XX. Nascido sob os auspícios do Terceiro Reich, idealizado como instrumento da propaganda nazista, ele acabaria conquistando o mundo como um símbolo de liberdade, simplicidade e simpatia. Isso, por si, seria suficiente para colocá-lo como um dos automóveis mais importantes da história.

Afinal, ele era uma ferramenta de uma ideologia nefasta e foi transformado em um produto aceitável e desejável, que ajudou a motorizar inúmeros países e, por isso, se tornou um ícone da cultura popular. Virou filme, músicas, capa de disco, obra de arte, rodou na Antártida…

Para compreender plenamente essa transformação de ferramenta nazista para símbolo de paz e amor, precisamos conhecer suas origens, seu desenvolvimento e, principalmente, os pontos-chave de sua trajetória.

 

Um carro para o povo

Desde o fim do século XIX, o automóvel carregava consigo uma contradição. Era, ao mesmo tempo, símbolo de modernidade e privilégio, ferramenta de progresso e objeto de luxo. Mas com o avanço da industrialização, especialmente nos EUA, surgiu a ideia de que o carro poderia ser democratizado. Henry Ford, ao lançar o Modelo T em 1908 e criar a linha de montagem em 1913, abriu caminho para a massificação do automóvel. Ainda assim, o Ford T era grande, rude, projetado para as vastas planícies americanas e para as necessidades do trabalhador rural dos EUA. Na Europa, com suas estradas estreitas, clima severo e combustíveis caros, o desafio era outro: criar um automóvel realmente pequeno, leve, eficiente e confiável — um carro para o cidadão comum, não para o fazendeiro.

Entre os anos 1920 e 1930, diversos engenheiros na Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia começaram a perseguir esse ideal. Josef Ganz, engenheiro judeu-alemão e editor da revista Motor-Kritik, defendia abertamente a criação de um automóvel barato e moderno. Ele chegou a desenvolver protótipos com motor traseiro e suspensão independente, chamando um deles de Maikäfer — “besouro de maio”.

Ao mesmo tempo, na Tchecoslováquia, Hans Ledwinka criava para a Tatra os modelos V570, T77 e T87, todos com motor traseiro, refrigeração a ar e aerodinâmica avançada. Na Áustria, um jovem engenheiro chamado Béla Barényi registrava, ainda nos anos 1920, patentes que incluíam carrocerias curvas, motores traseiros e zonas de deformação — conceitos revolucionários, muito à frente de seu tempo. Esse caldo técnico, formado por mentes brilhantes e por uma necessidade real de mobilidade popular, preparava o terreno para algo novo.

O Tatra V570

Enquanto essas ideias germinavam, a Alemanha cambaleava. Derrotada na Primeira Guerra Mundial, humilhada pelo Tratado de Versalhes e mergulhada na instabilidade econômica e política da República de Weimar, o país vivia sob o peso da hiperinflação, do desemprego e da polarização ideológica. Foi nesse ambiente que Adolf Hitler ascendeu ao poder. Em 1933, após vencer as eleições e ser nomeado chanceler, Hitler instaurou um regime totalitário com um projeto claro: restaurar o orgulho alemão, reerguer a economia e mobilizar o povo em torno de uma nova ordem nacionalista.

Uma de suas prioridades foi reorganizar o tecido social e econômico da Alemanha sob os pilares do que ele chamava de “comunidade nacional” (Volksgemeinschaft). Essa ideia — vaga e perigosamente maleável — prometia superar as divisões de classe e de partido por meio de uma nova forma de pertencimento coletivo, centralizado no Estado, na raça e no trabalho. Dentro desse projeto a motorização do povo assumia um papel simbólico e estratégico. Era, ao mesmo tempo, uma vitrine de progresso tecnológico e uma ferramenta de controle cultural. A máquina deveria estar a serviço do Estado, mas também deveria ser acessível ao cidadão modelo — o trabalhador ariano disciplinado, leal ao Führer.

A Alemanha da década de 1930 tinha taxas altíssimas de desemprego, mas o regime rapidamente criou obras públicas monumentais para absorver mão de obra e demonstrar poder. Uma dessas obras foi a construção das Autobahnen, as famosas rodovias alemãs sem limite de velocidade. Mas o paradoxo era evidente: as estradas estavam prontas, mas quase ninguém tinha carro. A solução encontrada foi uma promessa: o Volkswagen, literalmente, o “carro do povo”, um automóvel que custaria menos do que uma motocicleta e poderia ser adquirido por qualquer trabalhador alemão por meio de um sistema de poupança controlado pelo governo.

A propaganda em torno do Volkswagen foi intensiva e envolvente. Cartazes mostravam famílias felizes dirigindo pelas Autobahnen, e o carro era anunciado como um presente do partido ao povo. A própria ideia de um veículo que unisse o país pelas estradas recém-construídas tinha um apelo quase místico: uma Alemanha unificada, veloz, moderna e disciplinada. Mais que um meio de transporte, o carro do povo era uma alegoria de mobilidade social, progresso tecnológico e pureza nacional.

Para transformar esse sonho em objeto, Hitler convidou Ferdinand Porsche. Austríaco de nascimento, autodidata em engenharia, conhecido tanto por sua genialidade quanto por seu pragmatismo. Porsche já havia trabalhado em projetos sofisticados de carros de corrida, inclusive para a Auto Union, e acumulava décadas de experiência com sistemas de tração, motores compactos e chassis avançados. Em 1931, ele fundara seu próprio estúdio de engenharia, o “Dr. Ing. h.c. F. Porsche GmbH”, em Stuttgart, com a intenção de desenvolver projetos sob encomenda para empresas maiores. Não era ainda um industrial pleno, mas um solucionador técnico por excelência.

Embora Porsche não fosse, naquele momento, membro do Partido Nazista, ele demonstrava uma notável habilidade em se adaptar ao poder — uma postura comum entre engenheiros da época, para quem a política era um meio para viabilizar a técnica. Quando foi convocado por Hitler em 1934, o engenheiro não hesitou em aceitar o desafio.

Porsche no cockpit de um Auto Union, uma de suas criações nos anos 1930

O contrato, estabelecido formalmente com a associação automotiva do Reich (RDA), previa um carro com características muito específicas: capacidade para dois adultos e três crianças, velocidade máxima de 100 km/h, consumo de no mínimo 14 km por litro, refrigeração a ar — para resistir ao frio intenso da Europa Central — e manutenção simples o suficiente para ser feita pelo próprio proprietário. Tudo isso, a um custo que não ultrapassasse 1.000 marcos — um valor simbólico, calculado para caber no orçamento do trabalhador médio.

 

O nascimento do KdF Wagen

Ferdinand Porsche liderou o processo com sua equipe de engenheiros, entre os quais se destacava Karl Rabe, responsável por boa parte do detalhamento técnico. A engenharia do carro do povo alemão consolidava uma série de avanços já existentes. O motor traseiro boxer, a suspensão independente nas quatro rodas e a carroceria arredondada para reduzir a resistência do ar já estavam presentes em protótipos da Tatra, como o V570, e também em experimentos de Josef Ganz.

A influência da Tatra, de fato, era tão evidente que, já em 1938, o engenheiro-chefe da empresa, Hans Ledwinka, comentou ironicamente: “Bem, Ferdinand apenas pegou nosso carro e o colocou em produção.” A Tatra chegou a abrir um processo por violação de patentes, mas este foi sumariamente interrompido por pressão direta do governo alemão. Só após a guerra, em 1965, a Volkswagen aceitaria um acordo extrajudicial, pagando uma compensação significativa à empresa tcheca.

O primeiro protótipo funcional surgiu em 1934, sob o nome de Porsche Typ 60. Era uma máquina rudimentar, mas já incorporava os princípios fundamentais do projeto: motor traseiro, refrigeração a ar, carroceria aerodinâmica, tração traseira, suspensão independente. Era um carro pequeno por fora, mas relativamente espaçoso por dentro, com linhas curvas que se destacavam diante da profusão de automóveis quadrados da época.

O primeiro Typ 60 em testes em 1935

Esse desenho arredondado não era só questão de estilo: visava à aerodinâmica e à economia de material, dois fatores importantes tanto para a performance quanto para o custo de produção. A ideia de reduzir a resistência do ar vinha da influência do engenheiro húngaro Paul Jaray, que nos anos 1920 já havia proposto formas fluidas para automóveis — conceitos que encontraram eco tanto em Porsche quanto na Tatra de Ledwinka.

O motor foi um dos pontos mais delicados do projeto. Desde o início, Porsche rejeitou motores dianteiros refrigerados a água, por considerá-los pesados, complexos e vulneráveis ao frio intenso da Europa Central. Optou, assim, por um arranjo de quatro cilindros contrapostos, montado na traseira e refrigerado a ar, o que dispensava radiador e bomba d’água — e, portanto, reduzia o número de componentes móveis e de potenciais falhas. A configuração “boxer”, assim chamada pela semelhança do movimento dos pistões com os golpes de um boxeador, também contribuía para um centro de gravidade mais baixo e uma distribuição de peso mais equilibrada.

 

Um dos protótipos do Typ 60 em 1936

Os primeiros motores tinham problemas de lubrificação, superaquecimento e vibração excessiva. Os engenheiros trabalharam intensamente em refinamentos — redesenharam o virabrequim, ajustaram a disposição das aletas de refrigeração, criaram um sistema de ventilação forçada com ventoinha e posicionados para otimizar o arrefecimento.

O câmbio manual de quatro marchas era integrado à carcaça do motor — uma solução incomum, mas que ajudava a reduzir espaço e custos. A suspensão traseira por semi-eixos oscilantes, combinada com barras de torção nos dois eixos, conferia ao carro uma condução relativamente confortável, ainda que com tendência a sobreesterço em curvas rápidas — algo que seria criticado mais tarde, mas que não impediu sua popularização. O chassi original era uma estrutura tipo espinha dorsal (backbone), feita de aço prensado, à qual a carroceria era soldada e aparafusada. Era simples de fabricar, robusto e permitia certa modularidade na montagem.

Entre 1936 e 1937, foram produzidos três protótipos Typ 60 com carroceria fechada, pela Reutter Karosseriewerk de Stuttgart. Esses carros foram intensamente testados, tanto em circuitos fechados quanto em estradas públicas. Rodaram milhares de quilômetros em diversas condições — incluindo testes no inverno alpino e no calor da Espanha.

O Typ 60 de 1937 (V30)

Em seguida, foi construída uma pequena frota de cerca de 30 unidades de pré-série, chamadas de VW38 e depois VW39, que apresentavam formas já muito próximas do Fusca definitivo: faróis integrados aos para-lamas, vigia traseira dividido, formato oval do teto, e janelas relativamente pequenas. A maioria dessas unidades foi usada para avaliação, propaganda e exibição oficial. Algumas delas sobreviveram à guerra, e hoje são relíquias de museu.

Os VW39

Os testes mostraram que o carro era viável, mas exigia ajustes contínuos. A embreagem era fraca, os freios a tambor não resistiam bem em descidas longas, e o arrefecimento precisava de melhoria em climas extremos.

Porsche com um VW39

Ainda assim, os resultados foram considerados suficientemente promissores para convencer o regime nazista a bancar a construção de uma fábrica dedicada ao modelo, algo raro até mesmo hoje em dia. Em 28 de maio de 1937, foi fundada a empresa Gesellschaft zur Vorbereitung des Deutschen Volkswagens mbH, cujo nome significa “Companhia para a Preparação do Carro do Povo Alemão Ltda.” Essa empresa ficou conhecida pela sigla Gezuvor, e sua sede foi estabelecida em Fallersleben, Baixa Saxônia.

O objetivo da Gezuvor era organizar, estruturar e financiar a construção da futura fábrica do KdF-Wagen, além de administrar os aspectos burocráticos, legais e técnicos da produção em escala industrial. Ela atuava como intermediária entre a Deutsche Arbeitsfront (Frente Alemã do Trabalho), o escritório de Porsche e os órgãos do governo responsáveis pelo planejamento da nova cidade industrial.

Porsche apresenta o Volkswagen a Adolf Hitler

Durante pouco mais de um ano, a Gezuvor coordenou os preparativos da fábrica: aquisição de terrenos, projetos de engenharia civil, contratação de empresas construtoras, treinamento de técnicos e operários, e ajustes no projeto técnico do veículo. O carro seguia sendo desenvolvido como o Porsche Typ 60, mas já era informalmente chamado de Volkswagen.

Em 26 de maio de 1938, numa cerimônia cuidadosamente encenada, o regime lançou a pedra fundamental da fábrica da Volkswagen, em uma cidade construída do nada, batizada de KdF-Stadt — “Cidade da Força pela Alegria”.

O lançamento da pedra fundamental com os VW38

Esse nome fazia referência ao programa estatal Kraft durch Freude (KdF), uma iniciativa do governo para oferecer lazer popular, viagens organizadas, rádios baratos e, agora, automóveis. Quatro meses depois, em 16 de setembro de 1938, a Gezuvor foi renomeada para Volkswagenwerk GmbH — literalmente, “Fábrica Volkswagen Ltda.”. A partir daí, o nome Volkswagen passou a designar não apenas o carro, mas também a empresa estatal criada para produzi-lo. A gestão seguiu vinculada ao DAF, mas com a administração técnica nas mãos de engenheiros ligados a Porsche, e logo depois sob o comando direto de Anton Piëch.

Hitler em seu VW38 conversível. Porsche aparece logo atrás

Naquele mesmo ano, 1938, começou a instalação dos galpões de montagem, linhas de prensa e estamparia, infraestrutura elétrica e ferroviária, usinas geradoras e alojamentos operários. Tudo isso foi financiado por meio do Deutsche Arbeitsfront (DAF), a Frente Alemã do Trabalho, organização estatal que havia substituído os sindicatos livres após a ascensão de Hitler e que concentrava poder sobre todas as relações trabalhistas no Reich.

A caderneta de poupança com os selos e um dos cartazes de propaganda do KDF-Wagen

O KdF-Wagen — nome oficial do Volkswagen civil — era vendido de forma simbólica por meio de um programa de poupança estatal, no qual o trabalhador comprava selos semanais de cinco marcos e, ao completar 990 marcos, ganharia direito ao carro. Mais de 300.000 alemães aderiram ao programa.

 

Mas antes… a Guerra

Em setembro de 1939 as prioridades mudaram radicalmente. A Alemanha invadiu a Polônia e provocou a declaração de guerra pela França e pelo Reuno Unido. A fábrica, que até então tinha produzido apenas a série de protótipos VW38 e VW39 passou a ser adaptada para a produção de veículos militares. A produção em série que havia sido prometida para 1940 jamais se concretizou e os trabalhadores que haviam aderido ao programa de selos nunca receberiam seus carros.

Durante o desenvolvimento do Volkswagen, Porsche havia explorado versões alternativas do projeto, incluindo um modelo com tração integral, versões conversíveis e até uma versão utilitária. Isso tudo acabou servindo para o esforço de guerra: a modularidade do projeto, a simplicidade da estrutura e a robustez do conjunto mecânico permitiram essas variações com relativa facilidade, dando origem a uma série de veículos militares leves.

O Kübelwagen

O primeiro deles foi o VW Typ 82 Kübelwagen, um veículo utilitário de tração traseira com carroceria aberta, suspensão elevada e chassi simplificado, usado em praticamente todas as operações da Wehrmacht. Ele também teve uma variante chamada Typ 82E, combinava a carroceria do KdF-Wagen ao chassi reforçado e à suspensão elevada do Kübelwagen.

O Typ 82E

Essa configuração permitia que o carro mantivesse a aparência e o conforto do Volkswagen original, mas com a robustez necessária para uso em estradas precárias, zonas ocupadas e frentes de batalha menos exigentes. Ele era destinado principalmente a oficiais superiores, engenheiros e comandantes — daí o nome Kommandeurswagen, literalmente “carro de comandante”. Outra variação deste modelo era o Typ 92 SS, que é um Typ 82E adaptado para o uso específico da Schutzstaffel, a temida SS.

O Schwimmwagen

Depois deles, ainda veio o Typ 166 Schwimmwagen (o carro que nada), uma adaptação anfíbia do mesmo projeto, com tração nas quatro rodas e hélice de propulsão traseira, usado por tropas de reconhecimento e engenheiros militares. Este modelo deu origem ao Typ 87, que era a, na prática, versão 4×4 do Kommandeurswagen.

O Typ 87

Entre 1940 e 1945, a fábrica da Volkswagen deixou de lado qualquer produção civil e concentrou-se quase inteiramente nesses dois modelos militares. Estima-se que tenham sido produzidos cerca de 50.000 Kübelwagen, 15.000 Schwimmwagen e 650 Kommandeurswagen nesse período.

 

Um novo significado

Com o fim da guerra, a fábrica da Volkswagen — ou o que restava dela — representava um monumento desolador ao fracasso de uma utopia totalitária. Os bombardeios dos Aliados, especialmente os ataques aéreos de 1944, haviam destruído boa parte das instalações produtivas, incluindo seções da linha de montagem, galpões de armazenamento, centros administrativos e a central elétrica.

As prensas Krupp  que haviam estampado as chapas dos KdF-Wagen ainda estavam de pé, embora avariadas. No chão, estavam escombros misturados a chassis inacabados, carrocerias retorcidas e centenas de componentes prontos para carros que jamais seriam entregues aos trabalhadores que os haviam financiado pelo plano de selos.

A fábrica do Volkswagen em 1944

Mas havia uma diferença essencial entre essa fábrica e outras estruturas industriais alemãs: ela ainda podia funcionar. Não plenamente, não com eficiência, mas com uma dose de pragmatismo e esforço técnico. Além disso, sua localização geográfica — afastada dos centros urbanos arrasados como Hamburgo, Berlim ou Dresden — fazia dela uma peça estratégica no quebra-cabeça da reconstrução.

Wolfsburg, recém-renomeada, situava-se num trecho relativamente intacto do norte da Alemanha, perto da fronteira com a futura Alemanha Oriental. O próprio nome da cidade era novo: “Wolfsburg” foi adotado oficialmente em 25 de maio de 1945, apenas três semanas após a capitulação alemã, em uma tentativa deliberada de apagar os traços do nazismo incrustados no topônimo “KdF-Stadt”.

No plano dos Aliados, o futuro da fábrica era incerto. O desmantelamento completo para fins de indenização — prática comum no imediato pós-guerra — parecia lógico, ainda mais porque a origem do projeto era diretamente ligada ao aparato de propaganda de Hitler.

Houve, de fato, uma tentativa inicial de transferir os ativos para a Ford britânica, mas o diretor da empresa, Sir Patrick Hennessy, visitou Wolfsburg, avaliou o carro e as instalações, e devolveu seu veredito lacônico: o carro não tinha valor comercial e a fábrica não merecia ser salva. Na visão de Hennessy, o projeto do Fusca era antiquado, pequeno demais para os padrões britânicos e perigosamente associado ao passado que todos queriam esquecer.

Foi então que Ivan Hirst, major britânico do Royal Electrical and Mechanical Engineers (REME), e o coronel Charles Radclyffe acabaram designados para supervisionar a região. Eles chegaram à fábrica no verão de 1945 com uma única ordem de seus superiores: “Vá até Wolfsburg, encontre a fábrica e fique nela.”

Ivan Hirst (de óculos)

Ao explorar o galpão principal da fábrica, Hirst encontrou um Fusca verde-oliva dentro da fábrica. Estava intacto. Com a ajuda de técnicos alemães remanescentes — muitos dos quais haviam servido na linha de produção original — ele conseguiu religar o sistema elétrico, reativar parte das máquinas e montar uma oficina funcional. Logo, um carro experimental saiu andando. Era rudimentar, mas operacional.

O Fusca encontrado por Hirst

Rapidamente, Hirst percebeu que havia ali mais do que ruínas: havia uma linha de montagem simples, utilizável, centenas de peças estocadas, algumas prensas intactas, e um modelo de carro confiável, barato, já testado exaustivamente. As tropas de ocupação precisavam se locomover, e não havia caminhões ou jipes suficientes para todos. A fábrica do Volkswagen era uma solução logística para os próprios Aliados. Hirst limpou os escombros, restaurou o fornecimento de energia elétrica e, com o apoio das autoridades britânicas, que fizeram uma encomenda inicial de 20.000 unidades, reiniciou a produção.

Os primeiros carros foram Kübelwagens para os americanos a partir de estoques de peças entregues no final de 1944, mas a fábrica de carrocerias da Ambi-Budd em Berlim, que produzia as carrocerias do Kübelwagen, havia sido destruída pelos bombardeios aliados. O pouco que restava da fábrica — incluindo as prensas de estamparia para o Kübelwagen e o Schwimmwagen — foi desmontado por equipes de engenharia soviéticas e levado para a União Soviética como reparação de guerra. Os britânicos chegaram a sugerir aos soviéticos a devolução das prensas, mas as relações entre os antigos aliados já estavam esfriando, e os soviéticos ignoraram o pedido sem cerimônia.

Sem mais carrocerias de Kübelwagen disponíveis, a fábrica foi forçada a usar a carroceria civil do Volkswagen. Durante toda a guerra, os Kommandeurwagen mal somavam 650 unidades, praticamente todas montadas sobre chassis do Kübelwagen. Como o aço estava em falta, as chapas foram soldadas a partir de sobras, painéis canibalizados de veículos danificados e outros restos diversos, depois moldadas manualmente com martelo. Por esse motivo, a primeira geração de Volkswagen do pós-guerra tinha baixíssima qualidade, quebrava com frequência e enferrujava rapidamente. Muitos foram destruídos em acidentes.

As bancadas da oficina improvisada pelo Major Hirst

Mesmo assim, a escassez de veículos em condições de uso fazia com que mesmo os mais irremediavelmente danificados fossem levados de volta à fábrica para reparo ou canibalização de peças. Foi uma produção quase artesanal no início: menos de 1.800 carros saíram da fábrica entre 1945 e 1946.

 

Os franceses de olho

Apesar da produção semi-artesanal, as autoridades da zona de ocupação francesa ficaram interessados na fábrica da Volkswagen. Isso, porque a indústria automobilística francesa havia sofrido com o confisco de fábricas, materiais e mão-de-obra treinada durante os anos de guerra, e as autoridades francesas estavam especialmente interessadas em extrair reparações da Alemanha.

Os franceses apresentaram aos administradores britânicos da Volkswagen uma exigência de materiais e maquinário. Cumpri-la significaria paralisar a produção, então Hirst fez uma contraproposta oferecendo carros prontos. Os franceses também sofriam com falta de veículos de transporte e, embora achassem a proposta desagradável, aceitaram receber um lote de Volkswagen como compensação. O problema era que os britânicos não tinham aço suficiente para concluir o pedido, então fizeram um acordo para usar a cota de aço destinada à reconstrução francesa para construir os carros.

Era uma abordagem pouco ortodoxa, mas típica da astúcia pragmática de Ivan Hirst. O fornecimento de aço francês permitiu que a fábrica da Volkswagen iniciasse a produção em escala, e dentro de um ano, o representante holandês da Volkswagen, Ben Pon, fez o primeiro pedido comercial da Volkswagen.

Ben Pon é o terceiro da esquerda para a direita

O que Hirst não sabia é que os franceses não estavam interessados apenas em materiais e máquinas da Volkswagen — eles também queriam o Dr. Ferdinand Porsche.

A família Porsche havia fugido para a Áustria no fim da guerra, temendo ser punida por sua associação com o partido nazista. Ferdinand foi interrogado pelos americanos, mas quando os franceses pediram sua extradição, os americanos recusaram. Essas manobras deixaram as autoridades britânicas desconfiadas de que os franceses pretendiam reivindicar a fábrica da Volkswagen como reparação de guerra — o que era realmente a intenção do governo francês.

Os britânicos não queriam nenhum envolvimento com o carro popular de Adolf Hitler, mas eles também não queriam que os franceses ficassem com ele. Com isso, Hirst foi instruído a atrasar e sabotar as exigências das autoridades francesas enquanto Londres tentava desenvolver uma estratégia coerente.

Na verdade, em Londres, a decisão era clara: a fábrica da Volkswagen deveria ser liquidada o mais rápido possível, e instruções foram enviadas a Berlim para finalizar o inventário e iniciar a liquidação. Radclyffe havia sido promovido a um cargo sênior na Autoridade de Ocupação Britânica, deixando Hirst no comando da administração diária da Volkswagen.

Radclyffe sabia que liquidar a Volkswagen era muito mais complicado do que Londres imaginava. Primeiro, por que as autoridades britânicas tinham um contrato não cumprido com a Volkswagen para o fornecimento de 20.000 veículos. Ele também lembrou que franceses e holandeses haviam feito pedidos, o que comprometeu os recursos da fábrica. Cancelar o contrato unilateralmente causaria atrito com os aliados.

Depois, Radclyffe levantou a questão do impacto social. A fábrica da Volkswagen empregava mais de 1.000 pessoas. Se a fábrica fosse fechada, o que seria feito desses trabalhadores, que se tornariam um fardo para o já estressado orçamento da zona britânica? Ele também apontou que a usina termelétrica da Volkswagen fornecia energia e aquecimento para os 100.000 moradores de Wolfsburg — e não estava claro se a ordem de liquidação da Volkswagen incluía a usina.

Com os problemas expostos, Londres decidiu adiar os planos. Hirst, porém, ainda precisava conter as exigências de representantes de empresas britânicas e dos outros países aliados, que chegavam a Wolfsburg com ordens de requisição de máquinas e suprimentos. Quando uma delegação chegou exigindo a principal prensa industrial da fábrica, ele os levou em uma longa visita guiada pelo complexo, enquanto os trabalhadores cobriam a prensa com lonas e entulhos.

Os visitantes foram levados a ver pilhas de maquinário danificado por bombas e convidados a levar o que pudessem recuperar. Claro que recusaram e saíram de mãos vazias. Outro truque de Hirst era levar as delegações em um passeio pela fábrica no único Schwimmwagen ainda funcional, enquanto servia bebias alcóolicas aos convidados. Em certo ponto do passeio, Hirst “perdia o controle” do carro e caía no canal. Essas brincadeiras distraíam os visitantes de seus objetivos e garantiam à ocupação da fábrica a continuidade da operação.

Mas a ameaça mais séria à Volkswagen veio em dezembro de 1945. Ferdinand Porsche recebeu uma proposta oficial do governo francês: eles queriam que ele construísse um carro popular nos moldes do Volkswagen, mas fabricado na França. Para isso, ofereceram a Porsche um contrato para desenvolver o novo projeto junto da Renault — com a condição de que ele transferisse a fábrica de Wolfsburg para a França.

Porsche, já com mais de 70 anos, estava fragilizado, mas não perdeu o orgulho. Recusou a proposta de imediato. Achava injusto abandonar a fábrica que ele próprio criara, e não via com bons olhos os franceses tomando posse daquilo que, em sua cabeça, ainda lhe pertencia. Foi um erro. Dias depois, Ferdinand, seu filho Ferry e Anton Piëch (seu genro, advogado e ex-diretor da Volkswagen durante o Terceiro Reich) foram presos pelas autoridades francesas na Áustria e levados à França.

Porsche foi mantido preso por quase dois anos, sem julgamento. Oficialmente, a acusação era colaboração com os nazistas. Na prática, os franceses queriam forçá-lo a cooperar. Ferry Porsche foi libertado após alguns meses e retornou à Áustria, onde retomou os trabalhos do estúdio de engenharia da família, ainda operando em Gmünd.

O governo queria confiscar os ativos da Volkswagen e iniciar seu próprio projeto de carro nacionalizado, mas as duas maiores empresas do setor automotivo francês, Citroën e Renault, tinham planos próprios.

A Citroën e a Renault acompanharam atentamente o projeto do Volkswagen. Ambas perceberam que, se fosse bem-sucedido, o Volkswagen dominaria o mercado europeu de carros pequenos. Por isso, começaram a desenvolver seus próprios carros populares. A Citroën iniciou seu projeto em 1936 e, durante os anos da guerra, escondeu os protótipos e os planos no interior da França. Após a guerra, o carro se tornou o 2CV.

A Renault, por sua vez, só começou seu projeto em 1943. Realizado com o máximo de sigilo, mesmo com os supervisores alemães, o projeto da Renault foi inspirado no próprio Volkswagen (que os engenheiros da Renault haviam observado no Salão de Berlim de 1938) e mais tarde se tornaria o Renault 4CV. Por isso as duas empresas entenderam que o confisco da Volkswagen ou um projeto de Porsche seria uma ameaça aos seus projetos, e começaram a fazer lobby contra os planos do governo. Como o governo era acionista majoritário das duas empresas, logo percebeu que o plano de confiscar a Volkswagen ia contra seus próprios interesses — e engavetou a ideia.

A pressão sobre Ferdinand Porsche então diminuiu, mas ele não foi liberado imediatamente. As autoridades francesas ainda queriam sua expertise técnica, e ele só foi libertado após concordar, relutantemente, em atuar como consultor da Renault. Naquela altura, porém, o desenvolvimento do Renault 4CV estava tão avançado que Porsche pouco pôde influenciar no projeto, fazendo apenas algumas sugestões desanimadas — o que não o tornou particularmente querido pelos engenheiros franceses. Finalmente, em agosto de 1946, ele foi libertado para voltar para casa.

 

Enquanto isso em Wolfsburg…

Sob a gestão de Ivan Hirst, a fábrica da Volkswagen começou, aos poucos, a demonstrar potencial. Em 1945, 1.785 carros saíram lentamente da linha de montagem. Em 1946, 10.000. A empresa não dependia mais de contratos militares e agora atendia pedidos civis, mas a questão da propriedade da empresa nunca estava longe. Com os interesses britânicos e franceses fora de cena, vários pretendentes se apresentaram.

O pai da indústria automobilística australiana, Sir Lawrence Hartnett, inspecionou a fábrica em 1947. Hartnett, que havia sido peça-chave na criação da General-Motors Holden — a primeira fabricante verdadeiramente australiana —, havia rompido recentemente com a gestão da GM nos EUA, por causa da recusa da matriz em construir um carro barato e resistente para as condições australianas.

Dois Volkswagen haviam sido enviados à Austrália para avaliação em 1945, e Hartnett reconheceu que o Volkswagen era exatamente o tipo de carro que ele tinha em mente. Ele passou a fazer lobby junto ao governo australiano para aceitar a fábrica como parte das reparações de guerra, mas a própria Holden pressionou o governo a recusar.

Outros países fizeram propostas — algumas sérias, outras oportunistas. Os soviéticos ofereceram comprar a fábrica e transferi-la para a Alemanha Oriental. Após mais de um ano de negociações frustradas, eles devolveram as prensas de carroceria do Kübelwagen e do Schwimmwagen da Ambi-Budd, mas elas estavam tão danificadas e corroídas que eram completamente inúteis.

Em 1949, a questão da propriedade da Volkswagen se tornou urgente e, sem ofertas viáveis sobre a mesa, as autoridades britânicas de ocupação decidiram entregar a fábrica aos alemães. A empresa originalmente pertencia à Frente de Trabalho Nazista, que já não existia. Os ingleses então criaram uma sociedade anônima de capital público. Uma alocação de ações foi dada aos empregados, ao Banco Estatal da Saxônia, que financiara o projeto original, e ao estado da Baixa Saxônia.

Na prática, a empresa já estava nas mãos dos alemães há algum tempo. Os britânicos haviam nomeado um advogado alemão, Herman Munch, como diretor-geral em 1945, mas ele se mostrou pouco competente. Hirst era o diretor-geral de fato e ainda esperava ser formalmente convidado ao cargo. Infelizmente para ele, a Volkswagen ofereceu o cargo a um alemão: Heinrich Nordhoff.

Nordhoff havia sido diretor-geral da divisão de caminhões da GM-Opel durante a guerra e, por isso, havia sido banido — junto com toda a alta gestão da Opel — de ocupar cargos em empresas da GM. Inicialmente, ele esperava que a punição fosse temporária e que um dia voltaria ao cargo. Mas a nova direção americana da fabricante deixou claro que isso jamais aconteceria. Desiludido, Nordhoff passou por diversas ruínas da indústria automobilística alemã até chegar à Volkswagen.

Antes da guerra, Nordhoff era um feroz crítico do Volkswagen e, mesmo então, mal escondia seu desprezo pelo “carro horroroso”. Mas em 1947, a Volkswagen era praticamente a única fabricante alemã que realmente tinha uma operação, então ele aceitou o cargo.

Hirst, que havia feito tanto para colocar a Volkswagen de pé, foi dispensado sem cerimônia — um lembrete embaraçoso do período de ocupação. Ele passou a trabalhar no Ministério das Relações Exteriores britânico, mas manteve-se um entusiasta apaixonado pela Volkswagen por toda a vida.

 

Um carro global

Sob a liderança de Heinrich Nordhoff, a fábrica de Wolfsburg foi modernizada com ritmo constante. A produção, que ainda era artesanal em 1946, passou para pouco mais de 19.000 unidades em 1948, saltando para 46.000 em 1949 e para mais de 100.000 em 1950. O carro já não era apenas uma solução logística: tornava-se um bem de consumo.

Nordhoff entendia como poucos a importância de qualidade, reputação e confiabilidade, e introduziu rigorosas práticas de controle na linha de montagem. A ideia era simples, quase japonesa: cada carro tinha que sair da fábrica sem defeitos, pronto para rodar centenas de milhares de quilômetros. E isso num momento em que carros ainda quebravam com frequência e exigiam manutenção constante.

Mas Nordhoff também tinha uma visão mais ampla: não bastava vender o Fusca para os alemães. Era preciso fazer dele um produto com aceitação fora da Alemanha, onde não carregasse as cicatrizes simbólicas do Terceiro Reich. Assim nasceu o projeto de internacionalização. A primeira estratégia foi a exportação para mercados próximos e neutros: Suíça, Suécia, Dinamarca.

Depois vieram Holanda, Bélgica e França. Em 1950, a Volkswagen já exportava oficialmente para mais de uma dúzia de países. O esforço de vendas era acompanhado de um cuidado obsessivo com a rede de assistência técnica e reposição de peças: cada revendedor tinha que seguir normas rígidas, oferecendo mecânicos treinados e disponibilidade de componentes.

Um dos países que logo recebeu o Fusca foi o Brasil. Em 20 de abril de 1950, o próprio Heinz Nordoff veio ao Brasil reunir-se com a diretoria da Brasmotor e anunciar a fabricação do Fusca em São Paulo. As primeiras unidades chegaram ainda em 1950. Foram trazidas 30 unidades do Fusca pelo porto de Santos, a um preço curiosamente elevado, considerando se tratar de um carro popular. Os carros foram vendidos quase imediatamente e, já em 1951, a Brasmotor começou a receber os carros desmontados para a montagem e venda local.

Em 1953 a Volkswagen começou a produzir os carros no Brasil, inicialmente em um galpão alugado no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Cerca de 2.300 unidades do Fusca foram montados com peças importadas da Alemanha e logo a VW percebeu que precisava de uma fábrica para ele. Com os incentivos de desenvolvimento do governo de Juscelino Kubitschek, a Volkswagen iniciou, em 1956, a construção de sua nova fábrica às margens da rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo/SP.

Mas o ponto decisivo na consolidação do Fusca como um grande sucesso global foi a fundação da Volkswagen of America, em outubro de 1955. O Fusca já circulava nos EUA desde o início da década, importado por entusiastas e pequenos empresários, mas Nordhoff percebeu que havia ali um mercado enorme, quase virgem, para um carro pequeno, econômico e confiável — exatamente o oposto dos enormes V8 americanos.

O Fusca chega aos EUA

O timing foi quase perfeito: a crise de Suez em 1956 fez o preço da gasolina subir, e os consumidores começaram a olhar com mais simpatia para carros mais econômicos. O Fusca não apenas oferecia consumo baixo, como também era simples, simpático e — com o tempo — começaria a ganhar status de objeto “cool” entre jovens, artistas, intelectuais e dissidentes culturais.

Um dos principais fatores que contribuíram para essa mudança de status — e eliminaram de vez qualquer resquício da origem nazista do Volkswagen foram, sem dúvida, as campanhas publicitárias para o mercado norte-americano. Até hoje, estas campanhas são consideradas uma revolução no campo do marketing — não só por sua eficácia em vender um carro estrangeiro e “fora do padrão”, mas por terem criado um novo paradigma de comunicação com o consumidor. Foi a agência Doyle Dane Bernbach (DDB), a partir de 1959, que moldou a imagem do Fusca como algo mais do que um automóvel: um símbolo cultural.

 

O ícone

Nos anos 1950, a publicidade automotiva americana seguia um padrão grandioso e repetitivo. Anúncios exaltavam potência, luxo, tamanho e sucesso. As imagens mostravam carros enormes em cenários idílicos, com famílias perfeitas e frases hiperbólicas. O Fusca, com seu design arredondado, tamanho modesto, motor barulhento e origem alemã (quando muitos ainda sentiam as cicatrizes da Guerra). Era tudo o que o consumidor americano não queria. Mas foi justamente aí que a DDB encontrou sua força.

A grande sacada da agência foi abraçar as imperfeições do carro e transformá-las em virtudes. O primeiro anúncio icônico — publicado em 1959 — trazia o carro em destaque, porém pequeno, sobre um fundo branco, com o título em letras pequenas e sóbria: “Think small.” A imagem era austera, o tom era de conversa direta, e a proposta era subversiva: por que gastar tanto em carros enormes quando você pode ter um veículo confiável, barato, prático e que simplesmente… funciona?

Essa campanha inverteu todas as regras da publicidade da época. Em vez de prometer o impossível, o Fusca prometia o necessário. Em vez de parecer luxuoso, parecia honesto. A comunicação era autodepreciativa, irônica, com títulos como “Lemon” (uma gíria soa mais ou menos como o nosso “Mico” ou “It’s ugly, but it gets you there.” (É feio, mas te leva ao destino). Essa humildade provocativa caiu como uma luva para um público jovem, urbano, inquieto com o conformismo dos anos 1950 e sedento por autenticidade naqueles novos tempos.

O sucesso foi fulminante. Em 1960, a Volkswagen já era a marca importada mais vendida dos EUA — e o Fusca, o estrangeiro mais popular do país. A publicidade da DDB foi essencial para isso, pois criou uma personalidade para o carro: ele não era apenas um veículo; era um companheiro leal, uma escolha inteligente, uma pequena rebeldia contra o consumismo exagerado. No auge da contracultura, isso fez toda a diferença.

Mais do que vender o carro, a campanha ensinou os americanos a rir de si mesmos. Um anúncio dizia: “Se você se pergunta onde está o motor… você está olhando no lugar errado.” Outro, em letras pequenas: “A nossa fábrica não para. Nem os nossos carros.” Era humor, mas era também posicionamento: o Fusca se tornou o carro de quem pensava diferente.

O design do carro, considerado feio e antiquado pelos padrões industriais, tornou-se uma virtude estética para quem queria se distanciar do “american way of life”. O carro não era apenas simples: ele era humilde. Não se prestava à ostentação. Não rugia, não brilhava, não impunha respeito — inspirava afeto. Não à toa, o carro foi carinhosamente apelidado de Beetle, e esse nome, ao contrário do “Volkswagen Type 1” oficial, foi adotado até pela própria fábrica.

O Fusca em Woodstock

As modificações feitas pelos donos ajudavam a reforçar a identificação cultural. Muitos pintavam o Fusca com flores, slogans de paz, espirais coloridas. Retiravam os para-choques, improvisavam cortinas, dormiam dentro dele. Em comunidades hippies na Califórnia, era comum ver Fuscas dividindo espaço com Kombis, em estacionamentos de shows, praias ou acampamentos alternativos. O carro tornou-se uma espécie de instrumento de liberdade acessível: barato de manter, difícil de quebrar, fácil de consertar na beira da estrada.

E havia o fator emocional. Enquanto os carros americanos pareciam máquinas fabricadas por corporações gigantescas, o Fusca parecia ter uma alma. Era “engraçado”, “fiel”, “leal” — como um cão. O barulho do motor boxer, o cheiro de gasolina, o jeito como vibrava, tudo isso criava uma experiência sensorial única que os donos aprendiam a amar. Muitos americanos dirigiram seu primeiro carro em um Fusca, fizeram suas primeiras viagens, seus primeiros amassados, seus primeiros amores.

Hollywood e a música também abraçaram o mito. Em 1968, a Disney lançava The Love Bug, apresentando o Herbie, um Fusca de corrida dotado de vida própria. Herbie era teimoso, apaixonado, sentimental — como todo Beetle parecia ser. O filme foi um enorme sucesso, gerando sequências e alimentando ainda mais o imaginário popular em torno do carro.

Ao mesmo tempo, em capas de disco como a do álbum “Abbey Road” dos Beatles (com um Fusca branco estacionado na rua), ou nos arredores dos festivais de Woodstock e Monterey, o carro surgia como parte do cenário de uma nova sensibilidade cultural.

O Fusca era prático, claro. Mas mais do que isso: era um manifesto involuntário. Uma recusa ao excesso. Um objeto de afeto. No Brasil, Jorge Ben o colocou ao lado de seu violão, do seu Flamengo e da sua esposa Tereza em “País Tropical”, enquanto Almir Rogério cantava sobre um Fuscão preto que fez seu peito em pedaços — e também virou filme.

Esse paradoxo — um carro nascido sob o signo do totalitarismo que se transforma no símbolo da contracultura pacifista e da cultura popular — é uma das ironias mais profundas da história industrial do século XX. Ele foi fabricado sob um regime autoritário, mas adotado como ferramenta de liberdade. Foi desenhado para um povo sem opção, mas tornou-se a escolha deliberada de quem queria viver de outro modo.

 

O carro do século

O simbolismo do Fusca como ícone da contracultura começou a declinar à medida em que um novo mundo se desenhava nos anos 1970. Apesar disso, sua presença no imaginário coletivo e nas ruas do mundo ainda crescia, multiplicando-se como um arquétipo móvel da simplicidade acessível.

Nos EUA, o apelo emocional do Fusca começou a sofrer com uma mudança de cenário: a nova década trouxe inflação, crises do petróleo, exigências de segurança veicular e emissões mais rígidas. O mercado automotivo americano tornava-se mais técnico, menos idealista — e o velho Beetle, com seu motor traseiro refrigerado a ar, começava a parecer ultrapassado — especialmente com a chegada dos modelos compactos japoneses, igualmente racionais, porém muito mais eficientes em todo os aspectos.

A produção americana de Fuscas, montados na planta da Volkswagen de Puebla, no México, ainda alimentava o mercado dos EUA com vigor, mas os desafios se acumulavam. A própria VW percebeu que o Fusca, por mais lendário que fosse, não poderia eternamente resistir à lógica industrial. Modelos mais modernos, como o Golf (lançado na Europa em 1974), foram surgindo para substituí-lo nos mercados centrais. Mas substituir um mito é outra história. O Golf era tecnicamente superior — tração dianteira, refrigeração líquida, estrutura monobloco mais segura — mas não era um Fusca.

O último Fusca alemão

Na Alemanha, o Fusca deixou de ser produzido em 1978, enquanto nos EUA, a produção do Fusca para o mercado local foi encerrada em 1979, com cerimônia discreta e certo saudosismo. Mas o fim da linha nestes dois países não significou o desaparecimento do Fusca do mundo. Na verdade, marcou o início de uma nova fase: o reinado absoluto do Fusca como carro do povo nos países em desenvolvimento.

Na América Latina, África e partes da Ásia, o Fusca passou a representar o mesmo que representara na Alemanha pós-guerra: mobilidade básica, barata e robusta. No Brasil, a produção nacional consolidada a partir de 1959 fez dele o carro mais vendido por mais de 20 anos. O Fusca tornou-se o carro da classe média, dos taxistas, dos estudantes, dos frotistas e também dos jovens idealistas. No México, foi além: tornou-se táxi por excelência, símbolo urbano, peça de resistência econômica. Em países africanos, como Nigéria, Gana e África do Sul, era admirado por sua capacidade de rodar em estradas precárias, sob calor intenso, com manutenção mínima.

O Fusca SP1600 da África do Sul

Esse ciclo — o Fusca como ícone cultural nos países ricos e como solução concreta nos países pobres — ampliou ainda mais sua mística. Ele era o mesmo carro, mas seu significado mudava de acordo com quem o dirigia. No Brasil, ainda nos anos 1970, havia campanhas que o tratavam como solução técnica. Slogans como “Ele é feio, mas é valente” espelhavam o discurso da DDB nos EUA, agora adaptado a um país em que o desempenho técnico e a economia eram argumentos reais de venda, não metáforas culturais.

Nos anos 1980, enquanto seu papel simbólico diminuía nas grandes metrópoles globais, ele seguia vivo nas pequenas cidades, nos subúrbios, nas zonas rurais. Quando a produção foi encerrada no Brasil em 1986, muitos acreditaram que era seu fim definitivo. Mas a morte do Fusca nunca foi simples: ele ressurgiria, como um fantasma útil, entre 1993 e 1996, durante o governo Itamar Franco, que sugeriu sua volta como parte do programa de incentivo ao carro popular.

Itamar Franco a bordo do Fusca na fábrica da VW em 1993

E no México, onde sua produção continuava firme, ele seguiu até 2003 — sendo o último lugar do mundo a encerrar a linha do Fusca original, com homenagens quase solenes e um respeito que beirava o religioso. Ali, ele era mais que um carro: era uma instituição urbana.

No plano simbólico, porém, o mundo já estava em outra frequência. As utopias dos anos 1960 haviam se esfarelado, substituídas por um novo século dominado pelo culto ao desempenho, ao design agressivo e à tecnologia embarcada. A Volkswagen, atenta ao espírito do tempo, lançou o New Beetle em 1998: um revival estilizado, com mecânica moderna e plataforma do Golf, feito para seduzir os nostálgicos e os estetas. Não era um sucessor — era uma homenagem. E como homenagem, funcionou: vendeu bem por um tempo, mas nunca teve o mesmo significado social.

A grande verdade é que o Fusca só foi possível dentro de um tempo específico da história: um século em que ainda acreditávamos que um objeto simples, feito com lógica e integridade, poderia mudar o mundo — ou, pelo menos, fazer parte da vida das pessoas como algo além de um mero meio de transporte.

 


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