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Carros que mudaram o mundo #33: Mercedes-Benz Classe S W116

Na metade dos anos 1960, a Mercedes-Benz percebeu que tinha um problema crescente. O W108/109, lançado em 1965, era um excelente carro — refinado, bem construído, confiável. Mas era, essencialmente, uma evolução dos sedãs que a Mercedes vinha fazendo desde os anos 1950. A arquitetura básica ainda carregava DNA do período pós-guerra, e o mundo estava mudando rápido demais.

A concorrência acordava: a Citroën já havia revolucionado o mundo com o DS e sua suspensão hidropneumática, a Jaguar oferecia desempenho esportivo em sedãs de luxo, e os americanos dominavam o mercado com seus land yachts. Mais preocupante ainda, os crash tests começavam a revelar verdades desconfortáveis sobre a segurança automobilística. Os acidentes se tornavam fatais não apenas pela violência dos impactos, mas pela forma como os carros eram construídos. O sucessor do W108, portanto, precisava trazer uma revolução, e não uma simples evolução.


Para entender a origem do W116, voltemos aos mesmos anos 1950 de onde vêm seu antecessor. Foi ali que Béla Barényi, engenheiro húngaro obcecado por segurança, apresentou à diretoria da Mercedes uma ideia que soou como heresia: carros deveriam ser projetados para se destruir.

W108, um carro de 1965 com alma dos anos 1950

Sim, você leu certo. Destruir. A proposta de Barényi era simples e, ao mesmo tempo, revolucionária: em vez de se fazer carrocerias cada vez mais rígidas para resistir a impactos, por que não fazer carrocerias que absorvessem a energia do impacto, protegendo os ocupantes? Era o conceito da zona de deformação programada — a dianteira e a traseira deformáveis, o habitáculo rígido como um cofre.

Na época parecia absurdo. Carros eram feitos para durar e resistir. A ideia de que eles deveriam amassar intencionalmente contrariava décadas de engenharia. Mas Barényi insistiu. E a Mercedes, para seu crédito, o ouviu. O conceito foi aplicado pela primeira vez no W111 em 1959, mas seria no W116 que a engenharia de segurança passiva atingiria seu auge.

O projeto começou em 1966: enquanto Barényi refinava seus princípios de segurança, o departamento de design da Mercedes começava a trabalhar no sucessor do W108. O homem à frente desse trabalho era Friedrich Geiger, o lendário designer que havia criado os esportivos 500K e 540K nos anos 1930 e, mais importante, o icônico 300SL Gullwing em 1954.

Um dos crash tests de Barényi

Àquela altura, Geiger era um veterano respeitado. Havia passado décadas moldando a identidade visual da Mercedes, sempre equilibrando elegância e funcionalidade. O W116 seria seu último projeto antes de se aposentar, e ele sabia disso. Trabalhando sob sua supervisão estava um jovem designer italiano chamado Bruno Sacco, que havia chegado à Mercedes em 1958, fascinado pelo 300SL Gullwing e pelo sucesso da marca na Fórmula 1.

Sacco, diferente de muitos designers da época, tinha formação em engenharia. Havia estudado em Turim e trabalhado brevemente na Ghia e na Pininfarina antes de conseguir uma vaga na Mercedes. Essa combinação de habilidades, a compreensão tanto da forma quanto da função, seria crucial para o W116.

O briefing era claro, mas desafiador: fazer o melhor sedã de luxo do mundo. O único problema é que Béla Barényi tinha outras prioridades.


O desenvolvimento do W116 se tornou um campo de batalha criativa. De um lado, Geiger e Sacco queriam um carro elegante, moderno, com linhas que refletissem o futuro. Do outro, Barényi queria um cofre sobre rodas, no qual caa elemento estético servisse à proteção dos ocupantes.

O compromisso que emergiu dessa tensão foi brilhante: linhas retas e angulares que pareciam modernas e imponentes, mas que escondiam uma estrutura de segurança sem precedentes. Os faróis foram rebaixados, tornando-se horizontais pela primeira vez em um Mercedes de grande porte. A grade desceu junto deles. As superfícies ficaram mais planas. O resultado era um carro que não tinha a elegância sinuosa dos Mercedes clássicos, mas era imponente e sólido.

Entre 1966 e 1972, a Mercedes destruiu centenas de protótipos em crash tests. Não dezenas — centenas. Cada impacto revelava uma fragilidade, que era então corrigida e testada novamente até ser sanada. Rudolf Uhlenhaut, o lendário engenheiro-chefe (o mesmo que havia criado o 300SLR e vencido a Mille Miglia), não aceitava atalhos. O orçamento era irrelevante. O prazo ficou em segundo plano. O carro tinha que ser impecável.

O W116 pronto para ser destruído

A carroceria foi redesenhada completamente. Chassi e carroceria se tornaram um monobloco (como o W100 “Grosser”) com reforços estratégicos nas colunas A e B, formando uma gaiola de proteção ao redor dos ocupantes enquanto as extremidades foram projetadas para deformar previsivelmente.

Os freios tinham circuito duplo cruzado, se um falhasse, o outro mantinha a capacidade de frenagem estável do carro. A suspensão traseira abandonou o antiquado eixo oscilante — que a Mercedes usava desde os anos 1930 — e adotou um sistema moderno de braços semi-arrastados, trazido do recém-lançado SL R107. A dianteira ganhou nova geometria, com braços duplos triangulares que melhoravam a precisão da direção, o comportamento em curvas e em situações de emergência.

Os motores também foram retrabalhados. A Mercedes tinha uma gama de seis cilindros em linha e V8 maduros e confiáveis, herdados do W108. Mas para o W116, eles receberam novos cabeçotes, nova injeção eletrônica Bosch D-Jetronic (substituindo os carburadores) e novo sistema de ignição. O resultado foi mais potência,melhor economia e — crucial para os tempos que viriam — emissões mais baixas.


Em setembro de 1972, no Salão de Paris, a Mercedes-Benz finalmente apresentou o W116 ao mundo. E junto com ele, aquela nova nomenclatura que mudaria para sempre a indústria: Classe S.

As versões iniciais eram o 280S e 280SE (com o seis-cilindros M110 de 2,8 litros e 160 cv), o 350SE (com o V8 M116 de 3,5 litros e 200 cv) e o 450SE (com o V8 M117 de 4,5 litros e 225 cv). Todas vinham com acabamento impecável no interior acolchoado, bancos de couro ou veludo, ar-condicionado opcional e uma lista de equipamentos que envergonhava qualquer concorrente.

O motor V8 de 3,5 litros

A imprensa ficou impressionada, mas cautelosa. O W116 era mais angular, mais sóbrio que seu antecessor. Não tinha aquela elegância clássica dos Mercedes anteriores. Ele parecia diferente e mais moderno. E essa diferença dividiu opiniões. Alguns acharam revolucionário. Outros, austero demais. A revista alemã Auto Motor und Sport elogiou o comportamento dinâmico e a segurança, mas questionou se o público aceitaria o visual modernizado.

Algum tempo ao volante, contudo, responderia esta pergunta: Antes do W116, os grandes sedãs de luxo seguiam uma fórmula estabelecida desde os anos 1930: motores grandes, carrocerias longas, suspensões macias que faziam o carro flutuar sobre o asfalto. O conforto era medido pela ausência de sensações — quanto menos você sentisse a estrada, melhor. O W116 jogou essa fórmula pela janela e escreveu uma nova, que combinava conforto e controle, suavidade e precisão.

Era um carro grande que se comportava como se fosse menor. Um carro pesado que mudava de direção com agilidade. Um carro de luxo que você realmente queria dirigir, em vez de apenas ser conduzido nele. Essa combinação — conforto sem isolamento, luxo sem embotamento — se tornou o DNA de todo sedã executivo alemão que viria depois.


Em outubro de 1973, um ano após sua apresentação, a crise do petróleo explodiu. Os preços do combustível dispararam em poucas semanas, governos impuseram racionamentos, e o mundo inteiro começou a questionara sanidade de dirigir carros grandes e sedentos. A Mercedes poderia ter entrado em pânico. Poderia ter cancelado o programa. Poderia ter feito uma versão menor, mais econômica, mais “sensata”. Mas não fez. Em vez disso, ela dobrou a aposta.

Em 1975, a Mercedes lançou o 450SEL 6.9 — uma versão ainda mais extravagante do W116, com um motor V8 M100 de 6,9 litros (na verdade 6.834 cm³) derivado do lendário 600 Grosser. Esse motor produzia 286 cv e 55 mkgf de torque, números estratosféricos para a época. Com ele, o Classe S acelerava de 0 a 100 km/h em 7,4 segundos e atingia 225 km/h, mesmo pesando 1.995 kg — dos quais quase 500 kg são apenas do motor.

E ainda tinha a suspensão hidropneumática autonivelante, também derivada do 600, que ajustava automaticamente a altura do carro de acordo com a carga e a velocidade. Era tecnologia de outro planeta. E custava uma fortuna: 70.000 marcos alemães — equivalente a 115.000 euros atualmente —, mais caro que o 600 “Grosser”, que partia de 56.500 marcos alemães (90.780 euros hoje).

O “big block” da Mercedes

A mensagem era clara: a Mercedes estava dizendo que luxo verdadeiro não tinha nada a ver com economia de combustível e agrados a ambientalistas. O verdadeiro luxo era fazer o melhor carro possível, independentemente do custo ou da opinião pública. E o mercado respondeu. O 6.9 vendeu 7.380 unidades entre 1975 e 1980 — um número pequeno, mas significativo para um carro tão caro e exclusivo. Mais importante: ele reforçou a mensagem de que a Classe S era realmente uma classe especial.

Em 1978, três anos após o lançamento do 6.9, a Mercedes introduziu no W116 outro pioneirismo que mudaria para sempre a indústria: o freio ABS. Foi o primeiro carro do mundo a oferecer essa tecnologia como opcional.

Na época, isso era ficção científica. A ideia de que um sistema eletrônico pudesse modular a pressão de frenagem milhares de vezes por segundo, evitando o travamento das rodas, parecia coisa de filme. O sistema era desenvolvido pela Bosch em parceria com a Mercedes, resultado de anos de pesquisa. Era caro — custava quase tanto quanto um Fusca, que saía de linha naquele ano. Poucos entendiam sua importância. Mas a Mercedes estava pensando no futuro como forma de se distanciar de qualquer concorrente.


O W116 foi produzido até 1980, quando foi substituído pelo W126. Foram 473.035 unidades vendidas em oito anos, um número impressionante para um carro tão caro e exclusivo. Mas os números de vendas não contam a história completa. O que o W116 realmente fez foi redefinir três coisasf undamentais sobre automóveis.

Primeiro, ele provou que segurança não era um item de luxo opcional, mas a própria essência do luxo. A zona de deformação programada de Béla Barényi se tornou obrigatória em todos os carros modernos. O ABS, um opcional no W116, se tornaria o padrão de todo carro 20 anos depois. A ideia de que um carro deveria ser, acima de tudo, seguro, deixou de ser luxo e passou a ser o mínimo esperado.

Segundo, ele inventou a dinâmica de condução do sedã executivo alemão — aquela combinação mágica de solidez, conforto e precisão que se tornou a referência mundial. A própria BMW criou sua filosofia de “prazer de dirigir” depois do W116. O mercado de sedãs esportivos de luxo — hoje dominado pelos alemães — foi essencialmente criado por este carro.

Die Tradition der Mercedes-Benz S-Klasse: Fahrzeuge aus der Sammlung von Mercedes-Benz Classic zusammen mit der 2020 vorgestellten neuen S-Klasse der Baureihe 223, Pressefahrveranstaltung zur neuen S-Klasse der Baureihe 223 im Daimler Prüf- und Technologiezentrum (PTZ) Immendingen im Oktober 2020. Von links nach rechts: 300 SE (W 112, 1961 bis 1965), 250 SE (W 108, 1965 bis 1972), 350 SE (Baureihe 116, 1972 bis 1980), 500 SEL (Baureihe 126, 1979 bis 1992) und 600 SEL (Baureihe 140, 1991 bis 1998). (Fotosignatur der Mercedes-Benz Classic Archive: D694814) The tradition of the Mercedes-Benz S-Class: Vehicles from the Merce des-Benz Classic collection together with the all-new S-Class model series 223 of 2020, press driving event on the new S-Class, model series 223, at the Daimler Test and Technology Center (PTZ) in Immendingen, October 2020. From left to right: 300 SE (W 112, 1961 to 1965), 250 SE (W 108, 1965 to 1972), 350 SE (model series 116, 1972 to 1980), 500 SEL (model series 126, 1979 to 1992) and 600 SEL (model series 140, 1991 to 1998). (Photo signature in the Mercedes-Benz Classic archives: D694814)

Terceiro, ele estabeleceu o template filosófico que todos os sedãs de luxo seguiriam: não se curvar a modismos. O W116 chegou durante a crise do petróleo e, em vez de recuar, avançou com o 6.9. Essa postura — de que o melhor carro possível vale a pena, independentemente das circunstâncias — se tornou a assinatura da Classe S.

E a designação “Classe S”? Ela se tornou sinônimo de excelência. Quando você diz “Classe S”, não está apenas falando de um modelo de luxo — está falando de um padrão, de uma referência, de um objetivo a ser alcançado. Está falando do carro que mostra hoje o que seu carro comum será daqui a 20 anos — da mesma forma que o W116 mostrou.


Veja aqui os capítulos anteriores da série “50 Carros de Mudaram o Mundo”