imagine se em 1934 o mundo ainda digeria as consequencias da grande depressao os automoveis eram em sua maioria maquinas barulhentas e instaveis montadas sobre chassis pesados com a traçao saindo de um diferencial traseiro ruidoso volantes grandes comandos pesados freios que pediam reza antes de funcionar de verdade era esse o cenario e entao a citroen aparece com um carro que parecia saido de uma outra realidade baixo elegante silencioso com traçao nas rodas dianteiras freios com acionamento leve e atuaçao eficiente e ainda se comportava nas curvas como nada visto ate entao seu nome traction avant literalmente traçao dianteira como se isso fosse so mais um detalhe mas o que o traction avant representou foi muito mais do que um layout mecanico invertido ele era um conjunto de ideias avançadas aplicadas de uma vez so a um carro de passeio — e por uma empresa que estava disposta a apostar tudo no progresso tecnico tudo mesmo ate seu proprio destino mas o preço valeu a pena o traction avant foi mais que um sucesso ele foi um marco tecnico na historia do automovel e influenciou praticamente tudo o que foi desenvolvido apos seu lançamento hoje todos dirigem um carro com traçao dianteira carroceria em monobloco suspensao independente e freios hidraulicos e tudo começou com este frances de nome redundante e ainda que o traction avant nao tenha sido o primeiro com todas essas soluçoes ele foi o primeiro a juntar tudo em um pacote coerente funcional bonito e o mais importante produzido em grande escala foi isso que o tornou uma lenda sobre rodas um carro diferente de todos nos primeiros anos da decada de 1930 o automovel ainda era em muitos sentidos uma carruagem motorizada quase tudo seguia o padrao inaugurado no fim do seculo xix um chassi com longarinas e travessas sobre o qual se montava a carroceria — exatamente como as carruagens a traçao era traseira porque sempre tinha sido e as suspensoes feixes de molas semi elipticas tao sofisticadas quanto as de uma carroça de carga nada disso era necessariamente ruim — era so o que dava pra fazer engenharia automotiva ainda engatinhava e a produçao em massa ainda era relativamente recente mesmo depois do ford t conforto estabilidade segurança esses conceitos nao estavam exatamente no topo da lista um carro era bom se andasse se nao quebrasse tanto e nao te matasse na primeira curva alem disso a cultura do sempre foi assim reinava absoluta a ideia de colocar o motor la na frente e a traçao la atras era quase religiosa era como se inverter isso fosse uma heresia tecnica — sem contar que os fabricantes tinham medo de arriscar a confiabilidade e pior assustar o comprador com algo diferente demais mas nem todos pensavam assim na frança um certo andre lefebvre achava que os carros eram maquinas de precisao como os avioes com os quais lidou em seu tempo na avions voisin alem dos avioes lefebvre tambem trabalhou nos projetos automobilisticos da fabrica tendo um papel fundamental no aerodyne e no c6 laboratoire que disputou o gp da frança de 1923 aquela altura contudo a voisin estava com problemas financeiros e lefebvre foi para a renault onde ficou de 1931 a 1933 quando foi convidado pelo proprio andre citroen para trabalhar em sua empresa [caption id= attachment_383921 align= aligncenter width= 932 ] andre lefebvre[/caption] lefebvre levou consigo um projeto batizado de pv ou petite voiture — que foi apresentado a citroen e imediatamente aprovado para desenvolvimento o carro era um pequeno seda de duas portas com motores de 1 000 ou 1 100 cm³ posicionados na dianteira onde tambem ficariam a transmissao e as rodas motrizes seu ponto chave contudo era a ideia de que um automovel podia e deveria ser estruturalmente inteligente com distribuiçao de peso otimizada centro de gravidade baixo e materiais usados de forma funcional nao apenas decorativa o projeto tecnico de lefebvre contou com uma parceria que se revelaria lendaria flaminio bertoni escultor e designer italiano foi responsavel pela carroceria daquele projeto seu traço uniu funcionalidade e elegancia em um desenho baixo fluido e moderno para a epoca antecipando tendencias aerodinamicas que so ganhariam força decadas mais tarde a mais evidente dela e a traçao dianteira ao colocar o motor longitudinal na dianteira e acopla lo a um transeixo com diferencial integrado o carro eliminava o carda o tunel central e todo o mecanismo necessario para movimentar as rodas traseiras o resultado foi o assoalho plano na cabine espaço interno generoso e comportamento dinamico muito mais neutro depois havia a construçao em monobloco em vez de um chassi sobre o qual se montava a carroceria o traction avant usava uma estrutura autoportante de aço soldado — mais leve mais rigida e com melhor absorçao de impactos isso melhorava o consumo o desempenho e a segurança alem de permitir uma carroceria mais baixa e aerodinamica tudo isso saido diretamente da mentalidade de um engenheiro aeronautico acostumado a pensar em fuselagens a suspensao dianteira independente com barras de torçao tambem era algo de outro planeta para os anos 1930 enquanto muitos carros ainda sambavam sobre eixos rigidos e feixes de molas o citroen flutuava com muito mais compostura mesmo em terrenos irregulares isso tambem ajudava na direçao ja que cada roda podia reagir de forma independente as imperfeiçoes da estrada nenhuma destas inovaçoes era inedita nos anos 1920 a cord ja havia usado a traçao dianteira no l 29 e a lancia havia adotado suspensao dianteira independente e construçao em monobloco no lambda mas o citroen nao apenas combinaria todos estes elementos em um unico carro como tambem tinha potencial para criar um novo padrao andre citroen tinha certeza de que o projeto seria um sucesso e deu carta branca a lefebvre [caption id= attachment_383922 align= aligncenter width= 922 ] andre citroen[/caption] era um projeto ousado e ambicioso a citroen demoliu sua fabrica antiga em paris para construir uma fabrica totalmente nova onde este novo modelo seria construido sem parar a produçao do citroen rosalie a demoliçao a construçao o desenvolvimento do carro o inicio da produçao e o lançamento foram realizados em apenas dezoito meses — um prazo impensavel ate mesmo nos dias atuais em 18 de abril de 1934 o traction avant foi recebido e aclamado pela multidao que foi ao salao de paris para ver aquele novo citroen e saiu entusiasmada com a certeza de que estavam conhecendo o futuro do automovel ele era mesmo uma revoluçao sobre rodas mas por tras de sua silhueta baixa e soluçoes tecnicas avançadas havia uma historia de pressa problemas iniciais e uma crise financeira que quase afundou a empresa a pressa em lançar o traction avant levou a testes insuficientes os primeiros modelos apresentaram falhas significativas a estrutura monobloco embora inovadora revelou se menos robusta do que o esperado e os eixos dianteiros sofriam com quebras frequentes a imprensa da epoca inicialmente entusiasmada com as inovaçoes logo passou a criticar os problemas de confiabilidade a revista francesa l auto destacou em junho de 1934 a citroen apresenta um carro do futuro mas talvez tenha se antecipado demais ao seu tempo a le petit parisien relatou em julho do mesmo ano clientes enfrentam dificuldades com os novos modelos; a marca promete soluçoes rapidas outro problema critico foram as juntas homocineticas os componentes originais baseados no design de jean albert gregoire falhavam devido a lubrificaçao inadequada em maio de 1934 menos de um mes apos o lançamento foram substituidos pelas juntas de alfred rzeppa mais confiaveis mas ainda ruidosas para demonstrar a resistencia do novo design a citroen realizou um teste extremo lançou um traction avant de uma encosta de oito metros o carro capotou duas vezes e aterrissou sobre as quatro rodas com danos na carroceria mas sem comprometer a estrutura e ao dar a partida no carro capotado o motor funcionou ao primeiro giro da chave apesar da açao o desafios tecnicos somados aos altos custos de desenvolvimento e a reconstruçao da fabrica levaram a citroen a falencia no final de 1934 a michelin principal credora assumiu o controle da empresa transformando a em um laboratorio de inovaçoes automotivas sob sua gestao o traction avant foi aprimorado os problemas iniciais foram corrigidos com o lançamento de novas versoes https //flatout com br/de onde vem a fama do citroen que nao capota/ a primeira leva do traction avant ainda nao tinha este nome era chamada de 7a — 7 era a quantidade de chevaux fiscaux ou cavalos fiscais esta unidade de medida era feita com base em uma formula que levava em consideraçao entre outros dados o numero de cilindros o curso e o diametro dos pistoes o cambio de tres marchas ficava entre a grade e o motor — o que significa que o motor ficava atras do eixo dianteiro a alavanca ficava no painel ao lado do volante tinha tres marchas mas somente as duas ultimas eram sincronizadas alem da re a posiçao da alavanca se mostrou bastante eficiente e foi levada para outro citroen iconico o 2cv lançado em 1948 foi ate testada uma caixa automatica — projetada pelo engenheiro frances naturalizado brasileiro dimitri sensaud de lavaud — mas pouco confiavel foi descartada desconsiderados os percalços graças a sua concepçao mecanica o traction avant tinha uma dirigibilidade muito parecida com a dos carros atuais e bastante apreciada na epoca mas apesar de bem recebido o traction avant ganhou uma importante atualizaçao apenas dois meses depois de lançado — e um novo nome 7b o motor agora um 1 5 tinha tres cavalos a mais e finalmente era capaz de levar o carro aos 100 km/h as vendas começaram a ficar boas de verdade e o carro ganhou varias versoes em questao de meses um conversivel cabriolet ou simplesmente cab trac um cupe sport e ate uma perua combi — esta ultima muito utilizada por taxistas e empresas que a convertiam em limusine o conversivel e o cupe se valiam do banco da sogra que era revelado quando se abria um compartimento acima do porta malas este por sua vez era acessado rebatendo se o estepe em uma engenhosa soluçao o cupe ficou conhecido como faux cabriolet conversivel falso pelo desenho do teto que lembrava o de uma capota de lona antes do fim daquele primeiro ano do modelo foi lançada a versao 11a mais larga e mais longa e com a opçao de entre eixos maior capaz de levar ate nove pessoas conhecida como familiale o motor teve a capacidade aumentada para 1 9 litro e era capaz de fazer o carro acelerar ate os 105 km/h alem disso o 7b dava lugar ao 7c com motor de 1 6 litro — e estreava a denominaçao traction avant em 1935 foi apresentada uma versao com a carroceria do 7c e o motor do 11a era o 11bl de legere ou leve o 11a passava a se chamar 11b tambem era introduzida a variaçao comerciale — na pratica uma familiale com tampa traseira hatchback e sem as ultimas fileiras de bancos nos anos seguintes o carro passou por poucas mudanças — ate 1938 quando finalmente recebeu um motor capaz de aproveitar toda a excelencia dinamica do traction avant um seis em linha de 2 9 litros cuja potencia saltava para 76 cv a 3 800 rpm alimentado por um carburador solex de corpo duplo fez muito sucesso no mundo todo mas em especial na inglaterra onde era montado na cidade de slough e recebeu o apelido de the big six batizado 15 six o modelo de seis cilindros teve outro papel bem importante servir como veiculo de testes para uma revoluçao da citroen a suspensao hidropneumatica que faria sua estreia no ds em 1955 assim como a construçao monobloco e a traçao dianteira definiram o padrao da industria nos anos 1950 a suspensao hidropneumatica da citroen estabeleceu o novo patamar de conforto e comportamento dinamico dos anos 1960 em diante o traction avant vai a guerra em 1939 as coisas prometiam melhorar para a citroen e o traction avant mas a frança declarou guerra a alemanha naquele ano e o norte do pais foi ocupado rapidamente pelo exercito alemao o que se seguiu foi uma escassez de materiais usados na fabricaçao do carro devido ao inicio da produçao belica para tentar contornar a situaçao a citroen tirou de linha o conversivel e o 7c mas nao adiantou todas as linhas foram paralisadas para produzir armas e artefatos de guerra [caption id= attachment_383932 align= aligncenter width= 1247 ] os alemaes com o traction[/caption] durante a ocupaçao nazista na segunda guerra mundial o traction se dividia entre heroi e vilao a gestapo usava o carro como veiculo padrao robusto confiavel discreto mas com presença era comum ver um 11 legere preto com rodas cobertas e o som grave do motor quatro cilindros ecoando em ruas silenciosas — sinal de mas noticias para muitos franceses era o som do terror de guerra [caption id= attachment_383934 align= aligncenter width= 1356 ] a força francesa do interior ffi com um traction[/caption] mas o mesmo carro era tambem o cavalo de batalha da resistencia francesa membros da resistance usavam o traction para fugir de emboscadas contrabandear armamentos e transportar mensageiros sob disfarce seu monobloco rigido traçao dianteira e suspensao independente garantiam estabilidade em velocidades mais altas mesmo em estradas ruins ou de terra — algo impensavel para os carros com eixo rigido da epoca como muitos dos seus usuarios clandestinos o traction parecia desaparecer na noite com facilidade — agil silencioso e eficiente e sai de linha para entrar na historia com o fim do conflito em 1945 a produçao foi voltando lentamente porem jamais voltou ao ritmo de antes depois da guerra a economia da frança estava muito enfraquecida a moeda desvalorizada e com isso o traction avant ficou caro — seu preço passou de 20 mil francos para quase 150 mil francos mesmo sem alteraçoes significativas a necessidade de um meio de transporte barato para a populaçao levou a criaçao do 2cv lançado em 1948 a partir dai o traction avant foi ficando cada vez menos popular — o que nao impediu a introduçao de novidades como um porta malas mais espaçoso em 1951 — mas alem do alto preço o carro inovador de 1934 era agora um carro obsoleto ao menos visualmente em uma tentativa de tornar o carro mais lucrativo a citroen focou nas exportaçoes — para o brasil inclusive entre 1947 e 1951 e em 1954 deu a ele uma inedita suspensao independente traseira mas com a chegada do novo citroen ds no ano seguinte o traction avant ficou imediatamente obsoleto os dois modelos ainda conviveram por dois anos mas em 1956 a citroen lançou uma versao mais barata do ds batizada id que acabou encerrando de vez a trajetoria do revolucionario traction avant foram 23 anos de estrada e mais de 760 000 unidades produzidas um marco inedito na industria francesa [caption id= attachment_383938 align= aligncenter width= 1022 ] o citroen id19[/caption] andre citroen seu criador nao pode testemunhar o triunfo do carro que idealizou afastado da empresa logo apos a falencia ele adoeceu e acabou morrendo em 3 de julho de 1935 aos 57 anos sua ousadia lhe custou absolutamente tudo sua empresa sua fortuna sua saude sua vida a grandeza de uma vida contudo nao se mede pelo tempo ou pelas posses mas pelas realizaçoes o traction avant foi um sucesso de vendas como andre citroen previu mas se tornou um carro muito maior que mudou a historia do automovel e pavimentou o caminho para o automovel moderno influenciando geraçoes futuras com suas soluçoes tecnicas ousadas esse impacto foi imediato mas tambem duradouro ele redefiniu padroes e nao so na citroen fabricantes alemaes e italianos estudaram sua estrutura monobloco a traçao dianteira virou referencia — levou decadas mas virou norma o conceito de carro para todos com engenharia de elite tambem se enraizou na propria citroen o traction estabeleceu um dna tecnico e filosofico que influenciaria tudo o que viria depois o ds lançado em 1955 era uma continuaçao direta de sua linhagem — com suspensao hidropneumatica direçao assistida e carroceria aerodinamica mas ainda com o espirito de inovaçao absoluta o sm gs cx bx… todos carregavam fragmentos do traction em seu projeto o espirito inquieto a recusa em seguir tendencias apenas por seguir nasceu aqui e talvez o maior legado do traction seja exatamente esse ter provado que nao e preciso escolher entre inovaçao e acessibilidade entre engenharia e ousadia entre funçao e forma ele mostrou que um carro pode ser tudo isso ao mesmo tempo — desde que se tenha coragem para romper com o que veio antes
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