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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #9: Citroën Traction Avant

Imagine-se em 1934. O mundo ainda digeria as consequências da Grande Depressão, os automóveis eram em sua maioria máquinas barulhentas e instáveis, montadas sobre chassis pesados, com a tração saindo de um diferencial traseiro ruidoso. Volantes grandes, comandos pesados, freios que pediam reza antes de funcionar de verdade. Era esse o cenário.

E então, a Citroën aparece com um carro que parecia saído de uma outra realidade. Baixo, elegante, silencioso, com tração nas rodas dianteiras, freios com acionamento leve e atuação eficiente, e ainda se comportava nas curvas como nada visto até então. Seu nome? Traction Avant. Literalmente, “tração dianteira”. Como se isso fosse só mais um detalhe.

Mas o que o Traction Avant representou foi muito mais do que um layout mecânico invertido. Ele era um conjunto de ideias avançadas, aplicadas de uma vez só a um carro de passeio — e por uma empresa que estava disposta a apostar tudo no progresso técnico. Tudo mesmo. Até seu próprio destino. Mas o preço valeu a pena. O Traction Avant foi mais que um sucesso. Ele foi um marco técnico na história do automóvel, e influenciou praticamente tudo o que foi desenvolvido após seu lançamento.

Hoje todos dirigem um carro com tração dianteira, carroceria em monobloco, suspensão independente e freios hidráulicos. E tudo começou com este francês de nome redundante. E ainda que o Traction Avant não tenha sido o primeiro com todas essas soluções, ele foi o primeiro a juntar tudo em um pacote coerente, funcional, bonito e, o mais importante, produzido em grande escala. Foi isso que o tornou uma lenda sobre rodas.

 

Um carro diferente de todos

Nos primeiros anos da década de 1930, o automóvel ainda era, em muitos sentidos, uma carruagem motorizada. Quase tudo seguia o padrão inaugurado no fim do século XIX: um chassi com longarinas e travessas sobre o qual se montava a carroceria — exatamente como as carruagens. A tração era traseira, porque sempre tinha sido. E as suspensões? Feixes de molas semi-elípticas, tão sofisticadas quanto as de uma carroça de carga.

Nada disso era necessariamente ruim — era só o que dava pra fazer. Engenharia automotiva ainda engatinhava, e a produção em massa ainda era relativamente recente, mesmo depois do Ford T. Conforto, estabilidade, segurança: esses conceitos não estavam exatamente no topo da lista. Um carro era bom se andasse, se não quebrasse (tanto) e não te matasse na primeira curva.

Além disso, a cultura do “sempre foi assim” reinava absoluta. A ideia de colocar o motor lá na frente e a tração lá atrás era quase religiosa. Era como se inverter isso fosse uma heresia técnica — sem contar que os fabricantes tinham medo de arriscar a confiabilidade e, pior, assustar o comprador com algo “diferente demais”.

Mas nem todos pensavam assim.

Na França, um certo André Lefèbvre achava que os carros eram máquinas de precisão, como os aviões com os quais lidou em seu tempo na Avions Voisin. Além dos aviões, Lefèbvre também trabalhou nos projetos automobilísticos da fábrica, tendo um papel fundamental no Aérodyne e no C6 Laboratoire que disputou o GP da França de 1923. Àquela altura, contudo, a Voisin estava com problemas financeiros e Lefèbvre foi para a Renault, onde ficou de 1931 a 1933, quando foi convidado pelo próprio André Citroën para trabalhar em sua empresa.

André Lefebvre

Lefèbvre levou consigo um projeto batizado de PV, ou Petite Voiture — que foi apresentado a Citroën e imediatamente aprovado para desenvolvimento. O carro era um pequeno sedã de duas portas com motores de 1.000 ou 1.100 cm³ posicionados na dianteira, onde também ficariam a transmissão e as rodas motrizes. Seu ponto chave, contudo, era a ideia de que um automóvel podia (e deveria) ser estruturalmente inteligente, com distribuição de peso otimizada, centro de gravidade baixo e materiais usados de forma funcional, não apenas decorativa.

O projeto técnico de Lefèbvre contou com uma parceria que se revelaria lendária: Flaminio Bertoni, escultor e designer italiano foi responsável pela carroceria daquele projeto. Seu traço uniu funcionalidade e elegância em um desenho baixo, fluido e moderno para a época, antecipando tendências aerodinâmicas que só ganhariam força décadas mais tarde.

A mais evidente dela é a tração dianteira. Ao colocar o motor longitudinal na dianteira e acoplá-lo a um transeixo com diferencial integrado, o carro eliminava o cardã, o túnel central e todo o mecanismo necessário para movimentar as rodas traseiras. O resultado foi o assoalho plano na cabine, espaço interno generoso e comportamento dinâmico muito mais neutro.

Depois havia a construção em monobloco. Em vez de um chassi sobre o qual se montava a carroceria, o Traction Avant usava uma estrutura autoportante de aço soldado — mais leve, mais rígida e com melhor absorção de impactos. Isso melhorava o consumo, o desempenho e a segurança, além de permitir uma carroceria mais baixa e aerodinâmica. Tudo isso saído diretamente da mentalidade de um engenheiro aeronáutico, acostumado a pensar em fuselagens.

A suspensão dianteira independente com barras de torção também era algo de outro planeta para os anos 1930. Enquanto muitos carros ainda sambavam sobre eixos rígidos e feixes de molas, o Citroën flutuava com muito mais compostura, mesmo em terrenos irregulares. Isso também ajudava na direção, já que cada roda podia reagir de forma independente às imperfeições da estrada.

Nenhuma destas inovações era inédita. Nos anos 1920, a Cord já havia usado a tração dianteira no L-29, e a Lancia havia adotado suspensão dianteira independente e construção em monobloco no Lambda. Mas o Citroën não apenas combinaria todos estes elementos em um único carro, como também tinha potencial para criar um novo padrão. André Citroën tinha certeza de que o projeto seria um sucesso e deu carta branca a Lefèbvre.

André Citroën

Era um projeto ousado e ambicioso. A Citroën demoliu sua fábrica antiga em Paris para construir uma fábrica totalmente nova onde este novo modelo seria construído, sem parar a produção do Citroën Rosalie. A demolição, a construção, o desenvolvimento do carro, o início da produção e o lançamento foram realizados em apenas dezoito meses — um prazo impensável até mesmo nos dias atuais.

Em 18 de abril de 1934, o Traction Avant foi recebido e aclamado pela multidão que foi ao Salão de Paris para ver aquele novo Citroën, e saiu entusiasmada, com a certeza de que estavam conhecendo o futuro do automóvel.

Ele era mesmo uma revolução sobre rodas. Mas por trás de sua silhueta baixa e soluções técnicas avançadas, havia uma história de pressa, problemas iniciais e uma crise financeira que quase afundou a empresa.

A pressa em lançar o Traction Avant levou a testes insuficientes. Os primeiros modelos apresentaram falhas significativas: a estrutura monobloco, embora inovadora, revelou-se menos robusta do que o esperado, e os eixos dianteiros sofriam com quebras frequentes.

A imprensa da época, inicialmente entusiasmada com as inovações, logo passou a criticar os problemas de confiabilidade. A revista francesa L’Auto destacou em junho de 1934: “A Citroën apresenta um carro do futuro, mas talvez tenha se antecipado demais ao seu tempo.” A Le Petit Parisien relatou em julho do mesmo ano: “Clientes enfrentam dificuldades com os novos modelos; a marca promete soluções rápidas.”

Outro problema crítico foram as juntas homocinéticas. Os componentes originais, baseados no design de Jean-Albert Grégoire, falhavam devido à lubrificação inadequada. Em maio de 1934, menos de um mês após o lançamento, foram substituídos pelas juntas de Alfred Rzeppa, mais confiáveis, mas ainda ruidosas.

Para demonstrar a resistência do novo design, a Citroën realizou um teste extremo: lançou um Traction Avant de uma encosta de oito metros. O carro capotou duas vezes e aterrissou sobre as quatro rodas, com danos na carroceria, mas sem comprometer a estrutura. E ao dar a partida no carro capotado, o motor funcionou ao primeiro giro da chave.

Apesar da ação, o desafios técnicos, somados aos altos custos de desenvolvimento e à reconstrução da fábrica, levaram a Citroën à falência no final de 1934. A Michelin, principal credora, assumiu o controle da empresa, transformando-a em um laboratório de inovações automotivas. Sob sua gestão, o Traction Avant foi aprimorado, os problemas iniciais foram corrigidos com o lançamento de novas versões.

De onde vem a fama… do Citroën que não capota?

A primeira leva do Traction Avant ainda não tinha este nome: era chamada de 7A — 7 era a quantidade de chevaux fiscaux, ou cavalos fiscais. Esta unidade de medida era feita com base em uma fórmula que levava em consideração, entre outros dados, o número de cilindros, o curso e o diâmetro dos pistões.

O câmbio de três marchas ficava entre a grade e o motor — o que significa que o motor ficava atrás do eixo dianteiro. A alavanca ficava no painel, ao lado do volante. Tinha três marchas, mas somente as duas últimas eram sincronizadas, além da ré. A posição da alavanca se mostrou bastante eficiente e foi levada para outro Citroën icônico, o 2CV, lançado em 1948. Foi até testada uma caixa automática — projetada pelo engenheiro francês naturalizado brasileiro Dimitri Sensaud de Lavaud — mas, pouco confiável, foi descartada.

Desconsiderados os percalços, graças à sua concepção mecânica, o Traction Avant tinha uma dirigibilidade muito parecida com a dos carros atuais e bastante apreciada na época. Mas, apesar de bem recebido, o Traction Avant ganhou uma importante atualização apenas dois meses depois de lançado — e um novo nome: 7B. O motor, agora um 1.5, tinha três cavalos a mais e, finalmente, era capaz de levar o carro aos 100 km/h.

As vendas começaram a ficar boas de verdade, e o carro ganhou várias versões em questão de meses: um conversível (Cabriolet, ou simplesmente Cab’Trac), um cupê (Sport) e até uma perua (Combi) — esta última muito utilizada por taxistas e empresas que a convertiam em limusine.

O conversível e o cupê se valiam do “banco da sogra”, que era revelado quando se abria um compartimento acima do porta-malas. Este, por sua vez, era acessado rebatendo-se o estepe, em uma engenhosa solução. O cupê ficou conhecido como “Faux Cabriolet” (“conversível falso”) pelo desenho do teto, que lembrava o de uma capota de lona.

Antes do fim daquele primeiro ano do modelo, foi lançada a versão 11A, mais larga e mais longa e com a opção de entre-eixos maior, capaz de levar até nove pessoas, conhecida como Familiale. O motor teve a capacidade aumentada para 1,9 litro e era capaz de fazer o carro acelerar até os 105 km/h. Além disso, o 7B dava lugar ao 7C, com motor de 1,6 litro — e estreava a denominação Traction Avant.

Em 1935 foi apresentada uma versão com a carroceria do 7C e o motor do 11A. Era o 11BL (de légère, ou “leve”). O 11A passava a se chamar 11B. Também era introduzida a variação Comerciale — na prática, uma Familiale com tampa traseira hatchback e sem as últimas fileiras de bancos.

Nos anos seguintes, o carro passou por poucas mudanças — até 1938, quando finalmente recebeu um motor capaz de aproveitar toda a excelência dinâmica do Traction Avant: um seis-em-linha de 2,9 litros cuja potência saltava para 76 cv a 3.800 rpm, alimentado por um carburador Solex de corpo duplo. Fez muito sucesso no mundo todo, mas em especial na Inglaterra, onde era montado na cidade de Slough e recebeu o apelido de “The Big Six”.

Batizado 15 Six, o modelo de seis cilindros teve outro papel bem importante: servir como veículo de testes para uma revolução da Citroën: a suspensão hidropneumática, que faria sua estreia no DS em 1955. Assim como a construção monobloco e a tração dianteira definiram o padrão da indústria nos anos 1950, a suspensão hidropneumática da Citroën estabeleceu o novo patamar de conforto e comportamento dinâmico dos anos 1960 em diante.

 

O Traction Avant vai à Guerra

Em 1939 as coisas prometiam melhorar para a Citroën e o Traction Avant, mas a França declarou guerra à Alemanha naquele ano e o norte do país foi ocupado rapidamente pelo exército alemão. O que se seguiu foi uma escassez de materiais usados na fabricação do carro devido ao início da produção bélica. Para tentar contornar a situação, a Citroën tirou de linha o conversível e o 7C, mas não adiantou. Todas as linhas foram paralisadas para produzir armas e artefatos de guerra.

Os alemães com o Traction

Durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, o Traction se dividia entre herói e vilão. A Gestapo usava o carro como veículo padrão: robusto, confiável, discreto, mas com presença. Era comum ver um 11 Légère preto, com rodas cobertas e o som grave do motor quatro-cilindros ecoando em ruas silenciosas — sinal de más notícias. Para muitos franceses, era o som do terror de guerra.

A Força Francesa do Interior (FFI) com um Traction

Mas o mesmo carro era também o cavalo de batalha da Resistência Francesa. Membros da Résistance usavam o Traction para fugir de emboscadas, contrabandear armamentos e transportar mensageiros sob disfarce. Seu monobloco rígido, tração dianteira e suspensão independente garantiam estabilidade em velocidades mais altas, mesmo em estradas ruins ou de terra — algo impensável para os carros com eixo rígido da época. Como muitos dos seus usuários clandestinos, o Traction parecia desaparecer na noite com facilidade — ágil, silencioso e eficiente.

 

E sai de linha para entrar na história

Com o fim do conflito, em 1945, a produção foi voltando lentamente, porém jamais voltou ao ritmo de antes. Depois da guerra, a economia da França estava muito enfraquecida, a moeda desvalorizada e, com isso, o Traction Avant ficou caro — seu preço passou de 20 mil francos para quase 150 mil francos, mesmo sem alterações significativas. A necessidade de um meio de transporte barato para a população levou à criação do 2CV, lançado em 1948.

A partir daí, o Traction Avant foi ficando cada vez menos popular — o que não impediu a introdução de novidades, como um porta-malas mais espaçoso em 1951 — mas, além do alto preço, o carro inovador de 1934 era agora um carro obsoleto, ao menos visualmente. Em uma tentativa de tornar o carro mais lucrativo, a Citroën focou nas exportações — para o Brasil, inclusive, entre 1947 e 1951. E em 1954 deu a ele uma inédita suspensão independente traseira, mas com a chegada do novo Citroën DS no ano seguinte, o Traction Avant ficou imediatamente obsoleto.

Os dois modelos ainda conviveram por dois anos, mas em 1956 a Citroën lançou uma versão mais barata do DS, batizada ID, que acabou encerrando de vez a trajetória do revolucionário Traction Avant. Foram 23 anos de estrada e mais de 760.000 unidades produzidas, um marco inédito na indústria francesa.

O Citroën ID19

André Citroën, seu criador, não pôde testemunhar o triunfo do carro que idealizou. Afastado da empresa logo após à falência, ele adoeceu e acabou morrendo em 3 de julho de 1935, aos 57 anos. Sua ousadia lhe custou absolutamente tudo: sua empresa, sua fortuna, sua saúde, sua vida. A grandeza de uma vida, contudo, não se mede pelo tempo ou pelas posses, mas pelas realizações. O Traction Avant foi um sucesso de vendas como André Citroën previu, mas se tornou um carro muito maior, que mudou a história do automóvel e pavimentou o caminho para o automóvel moderno, influenciando gerações futuras com suas soluções técnicas ousadas.

Esse impacto foi imediato, mas também duradouro. Ele redefiniu padrões, e não só na Citroën. Fabricantes alemães e italianos estudaram sua estrutura monobloco. A tração dianteira virou referência — levou décadas, mas virou norma. O conceito de “carro para todos com engenharia de elite” também se enraizou.

Na própria Citroën, o Traction estabeleceu um DNA técnico e filosófico que influenciaria tudo o que viria depois. O DS, lançado em 1955, era uma continuação direta de sua linhagem — com suspensão hidropneumática, direção assistida e carroceria aerodinâmica, mas ainda com o espírito de inovação absoluta. O SM, GS, CX, BX… todos carregavam fragmentos do Traction em seu projeto. O espírito inquieto, a recusa em seguir tendências apenas por seguir nasceu aqui.

E talvez o maior legado do Traction seja exatamente esse: ter provado que não é preciso escolher entre inovação e acessibilidade, entre engenharia e ousadia, entre função e forma. Ele mostrou que um carro pode ser tudo isso ao mesmo tempo — desde que se tenha coragem para romper com o que veio antes.