Em toda a história da humanidade, passamos por mais de 50 pandemias globais. Algumas delas foram terrivelmente cruéis simplesmente por não existir sequer um método científico de análise de causa e efeito. Outras, porque não havia desenvolvimento técnico-científico como há hoje em dia. E outras por que, infelizmente, a ciência nem sempre é capaz de dar conta do problema — a pandemia do HIV, está chegando aos 40 anos sem nenhuma previsão de cura ou imunização.
A pandemia de Covid-19 teve um pouco da falta de desenvolvimento científico, mas, felizmente, está sendo contornada com tudo o que se aprendeu com as mais de 50 pandemias anteriores.
Alguns de seus efeitos colaterais, contudo, são inéditos. Nunca uma pandemia afetou tão fortemente a geopolítica e a economia global. Isso, porque nunca a atividade industrial global teve de ser paralisada. Mesmo nos períodos mais difíceis da nossa história recente — considerando, claro, o período pós-Revolução Industrial — a atividade fabril jamais foi interrompida. Durante a Crise de 1929 ela foi reduzida a 70% da capacidade, mas não foi interrompida. Durante as grandes guerras mundiais, ela não apenas continuou funcionando, como também foi estimulada pelo esforço de guerra, tornando-se o grande motor da economia naqueles períodos, mesmo para os países que acabaram derrotados.
Mas, durante a pandemia de Covid-19, a atividade industrial teve uma paralisação de quase 100%. E para entender o impacto desta paralisação, basta pensar no que aconteceria se você, de repente, sem planejamento, deixasse de trabalhar por 45 dias. O que aconteceria com sua casa se isso acontecesse? Você gastaria sua reserva de emergência (se tiver uma), atrasaria pagamentos, teria que reduzir as despesas básicas ao mínimo possível. Após 45 dias, toda a sua receita seria dividida entre as despesas atuais e as despesas acumuladas nos 45 dias em que você não ganhou dinheiro. Então qualquer investimento que você planejava fazer, como comprar um sofá novo, uma TV maior, uma geladeira com wi-fi ou uma reforma no telhado, terão de ficar para outra hora. Primeiro você precisa remar de volta para onde estava antes de a correnteza te arrastar para trás.
Agora, imagine que, em vez de você e sua casa, estamos falando de uma fábrica. Uma fábrica que precisou parar de produzir por 45 dias, sem tempo para planejar essa parada. A partir da semana que vem, tudo será desativado por 45 dias. A fonte de renda da fábrica também irá secar, porque fábricas ganham dinheiro vendendo o que fabricam. A fábrica tem capital de giro limitado (como a sua reserva de emergência), que será fatalmente consumido pela falta de receita. Após 45 dias, a fábrica retoma as atividades, mas, antes de vender, ela precisa comprar a matéria-prima e transformá-la. Normalmente isso é feito com o capital de giro — é por isso que ele se chama “capital de giro”: serve para manter a operação girando —, mas o capital de giro foi usado para manter a fábrica parada.
Só que o cenário piora: porque a matéria-prima vem de outra fábrica que está na mesma situação. E quem compra sua produção, seja indústria ou comércio, também está na mesma situação. É literalmente o travamento do sistema. Como se reinicia um sistema travado de um jeito que nunca aconteceu?
É exatamente isso o que está acontecendo com a indústria de automóveis neste momento. A indústria automobilística parou, assim como seus fornecedores e os fornecedores de seus fornecedores. Com a retomada da atividade, houve a retomada da demanda. Pessoas voltaram a comprar carros, fabricantes voltaram a produzir carros. Mas a produção de carros depende de componentes terceirizados e matérias-primas. Como a atividade parou quase por completo, as empresas estão com menos capital de giro ou endividadas. Pouco capital de giro limita a capacidade de produção, endividamento limita o crédito, e a falta de crédito também limita a capacidade de produção (isso tudo posto de forma simplificada, ok?). Com isso a oferta de insumos diminui.
Como o sistema econômico global é complexo, as soluções não são claras — na verdade, sequer os problemas são iguais para todos, por isso as soluções são complexas. Isso é o que se costuma chamar de “Wicked Problem”, um problema complexo de difícil solução por não haver uma solução única. Cada caso se resolve de acordo com sua situação. Alguns conseguem crédito, outros têm capital de giro, outros conseguem margens maiores (novamente, isso tudo posto de forma simplificada para melhor compreensão).
Normalmente quando há menos oferta do que demanda, há uma oportunidade de fazer dinheiro atendendo a demanda. Mas desta vez esta oportunidade não pode ser explorada, porque o sistema parou. O dinheiro simplesmente parou de circular. A capacidade de produzir está temporariamente reduzida. E é por isso que os preços subiram: é preciso manter estruturas, investimento, desenvolvimento e pagamentos com um menor volume de vendas — um volume reduzido não pela falta de demanda, mas pela impossibilidade de se produzir mais.
É por isso que o preço do aço subiu quase 200% desde março de 2020, quando a pandemia começou a frear a economia. Quando a OMS decretou a pandemia do novo coronavírus, muitas siderúrgicas interromperam a produção temendo uma grande recessão pela frente. Como a queda na demanda foi menor que o previsto, há escassez do insumo. Há também outros fatores como o fato de a produção de aço ser um duopólio, na prática, mas muito dos preços atuais do aço tem a ver com a redução da oferta — algo que, segundo os analistas, só irá normalizar ao longo de 2022.
Cara, cadê meus chips?
Outro insumo que está afetando drasticamente não apenas a produção e o preço dos carros, mas de absolutamente tudo o que usa um mínimo de eletrônica hoje em dia, são os semicondutores (ou chips eletrônicos ou, simplesmente, microchips).
Eles são o cérebro e o coração dos eletrônicos. São pequenos componentes com bilhões de transistores, que permitem a passagem ou o bloqueio do fluxo eletrônico. Apesar de eles terem tamanhos variados, a maioria deles não é muito maior que uma moeda de 10 centavos. A IBM, por exemplo, lançou em maio seu chip mais avançado, previsto para entrar em cena a partir de 2024, com 50 bilhões de transistores compactados em uma peça menor que um adesivo de troca de óleo.
Estima-se que atualmente existam mais de cem bilhões de chips em uso no planeta. Sua geladeira atualmente tem alguns, seu forno de micro-ondas tem outro punhado deles. O relógio do seu fogão também. Sua TV tem dezenas. Seu computador e seu celular mais uma boa quantidade deles. O portão eletrônico da garagem, o roteador, as lâmpadas de LED também.
Os carros não ficam fora dessa: o quadro de instrumentos é eletrônico há mais de 30 anos, então ele também usa alguns microchips. O ar-condicionado automático, a ECU do motor e todas as dezenas de ECU que controlam um carro moderno, ou simplesmente o rádio do carro, tudo isso precisa de microchips para ser fabricado. E nem entramos na garagem dos carros elétricos e seus carregadores.
O problema dessa história é que os microchips sempre tiveram demanda maior que a oferta, mesmo antes da pandemia, e isso acontece porque há poucos fornecedores destes componentes. Fábricas de microchips são extremamente caras de se construir, podendo chegar a US$ 10 bilhões devido à tecnologia necessária para o desenvolvimento e produção em larga escala destes componentes. Por isso há apenas 35 fabricantes de semicondutores no mundo inteiro. E durante a pandemia de Covid-19, muitas destas 35 fabricantes interromperam sua produção.
Acontece que, como no caso do aço, a demanda não caiu tanto devido ao aumento da demanda por eletrônicos. Os pedidos chegavam às fabricantes, mas não havia meios de produzir no volume solicitado. Mesmo agora, com força total em algumas fábricas, o volume de pedidos é tão alto que não há capacidade produtiva viável para atender essa demanda com a rapidez necessária. Neste momento, um pedido de microchips tem uma espera de, no mínimo, seis meses para ser atendido.
Por causa deste cenário, as fabricantes precisam fazer uma projeção de vendas para estimar o número de microchips necessários para manter a produção ativa. E eles chegarão só daqui a seis meses. Isso causou dois problemas: os fabricantes de veículos precisam aumentar os estoques, o que custa mais dinheiro e exige mais capital de giro; e a urgência na compra de chips tende a elevar o preço negociado nos contratos de fornecimento, o que significa que o custo de produção dos produtos que usam estes microchips irá aumentar.
Além disso, o Sudeste da Ásia, que concentra quase 90% da produção global de microchips (Taiwan, Japão, China e Coreia, para ser mais específico) ainda está lidando com paralisações e lockdowns. Em junho, por exemplo, o porto de Yantian, na China, por onde passa 90% da produção global de eletrônicos, foi fechado e milhares de contêineres com microchips parados nas docas, esperando a reabertura para o embarque e distribuição. Além do represamento, o fechamento dos portos também resulta em um gargalo de escoamento da produção ao ser reaberto — afinal, o porto tem uma capacidade máxima de embarcações e carregamento.
Como os carros ficaram sem chips?
A indústria automobilística também cometeu erros nessa história. Quando a pandemia começou, muitos fabricantes cancelaram seus pedidos de microchips, projetando uma grande crise econômica. Com isso, os fabricantes de microchips, quando ativos, produziam chips para outros produtos, especialmente os eletrônicos, que tiveram um boom após o início da pandemia. Como esta mudança na produção exige a mudança do ferramental, os fabricantes de carros tiveram de entrar no final da fila dos pedidos de microchips.
Novamente, como se a pandemia não tivesse trazido problemas suficientes, uma fábrica japonesa de microchips responsável por cerca de 30% dos chips da indústria automotiva, foi afetada por um incêndio, enquanto as tempestades de inverno no Texas, onde se produz cerca de 10% dos chips do planeta, forçaram o fechamento da indústria em geral, incluindo as fabricantes de microchips. Por último, a produção de microchips exige uma grande quantidade de água, e Taiwan, que produz mais de 50% dos chips usados em todo o mundo, sofreu com um período de seca, reduzindo os recursos hídricos locais.
Negócios da China
Notou que eu falei sobre geopolítica lá no início do texto? Pois bem: Taiwan é o país que produz o maior volume de microchips no planeta atualmente. Taiwan tem uma crise de longa data com a China devido ao status político da ilha. Para resumir a história, Taiwan se considera um estado independente, enquanto a China considera Taiwan uma província “rebelde”, mas território chinês. Como vimos mais acima, Taiwan é o maior produtor de microchips do planeta, e atualmente tem um governo nacionalista que visa estabelecer o status de estado independente do país, o que alimenta as tensões com a China.
A China, por sua vez, depende da indústria taiwanesa justamente por causa dos microchips — o que a coloca em posição de vantagem sobre os EUA. Também por causa deste status incerto de Taiwan e por ser o maior parceiro comercial dos EUA, a China pode influenciar o comércio entre os americanos e taiwaneses. Joe Biden pretende aportar um investimento de US$ 50 bilhões na indústria americana de microchips, que encolheu sua participação na produção global de 37% para 12% em 40 anos, enquanto o Senado americano aprovou uma série de incentivos fiscais para fabricantes de chips. Como resultado, a Intel pretende ampliar sua capacidade produtiva nos EUA, e até empresas do Sudeste da Ásia pretendem se instalar no país.
O que vai acontecer agora?
Mas… tudo isso só terá resultados em médio prazo. A crise acontece agora. E agora há uma enorme demanda reprimida por semicondutores que afetou principalmente os fabricantes de automóveis pelas razões já mencionadas acima. A indústria automobilística estima uma redução de 7,1 milhões de unidades na produção global de automóveis em 2022.
Praticamente todos os fabricantes, incluindo a Toyota, criadora do Toyotismo, o sistema que otimizou a produtividade industrial ao produzir somente o que é necessário, no momento necessário e na quantidade necessária, se viu sem estoques de semicondutores e terá de reduzir sua produção em 40% durante o mês de setembro. A Volkswagen no Brasil, teve de vender carros sem sistema de áudio/multimídia devido à falta de insumos, e irá operar com apenas um turno em sua fabrica de Wolfsburg. A Mercedes tomou uma atitude semelhante, reduzindo temporariamente a oferta de equipamentos para evitar atrasos na produção.
A General Motors também suspendeu a produção em oito fábricas nos EUA, e prevê um aumento de cerca de US$ 3 bilhões em seus custos devido à falta de semicondutores. A fabricante tem carros prontos, aguardando os componentes para serem finalizados.
Além destas citadas, Stellantis, Nissan, Jaguar Land Rover, BMW, Hyundai (Kia) e Ford também anunciaram medidas semelhantes, que incluem redução do volume de produção ou suspensão da produção por algum período.
Tudo isso, claro, irá aumentar os preços dos carros de imediato. Mas isso não significa que a alta será permanente. Ao menos não para a maioria, afinal, a competitividade das fabricantes, quando tudo estiver normalizado, tenderá à redução dos preços.
BMW e Mercedes-Benz, contudo, anunciaram que pretendem manter altos os preços de seus modelos de luxo. E eles farão isso com a limitação da oferta, algo semelhante ao que Lamborghini e Ferrari fazem atualmente — as duas marcas produzem pouco mais de 10.000 unidades por ano, somente, o que cria uma escassez forçada e valoriza os carros. Evidentemente, é preciso ter um grande valor de marca para fazer isso, o que é o caso com os modelos de alto luxo das duas fabricantes alemãs. Este movimento, apesar de ter sido trazido à tona neste momento, já vinha sendo praticado por BMW e Mercedes desde antes da pandemia.
Quando isso vai acabar?
Apesar de haver estimativas diversas sobre quando a crise dos semicondutores irá acabar, todos os analistas e executivos do mercado concordam que ela irá se arrastar por boa parte de 2022. O CEO da fabricante de semicondutores STMicro, Jean-Marc Chery, estima que a produção será estabilizada no início de 2023. O CEO da Stellantis, Carlos Tavares, afirmou que a crise “entrará em 2022 facilmente”, enquanto o CEO da Intel, Patrick Gelsinger, estima que a crise pode durar mais dois anos.
Já o professor de Administração Internacional de Negócios em Harvard, David Yoffie, estima que a demanda deve desacelerar nos próximos seis a 12 meses, mas que o equilíbrio entre oferta e demanda deverá ser atingido somente daqui a dois anos.