Já reparou que boa parte das grandes marcas de automóveis britânicas não existe mais? Apesar de terem construído alguns dos maiores ícones automobilísticos do Século 20, marcas como Austin, Rover, Triumph, Morris, Jensen, AC, Daimler e Hillman já não existem mais há décadas. Tudo o que restou no território governado pela Rainha Elizabeth foram fabricantes artesanais de baixo volume. O resto desapareceu ou foi parar nas mãos de investidores estrangeiros como Jaguar, Land Rover, Bentley e Rolls-Royce.
É um caso espantoso e possivelmente único na história do automóvel — especialmente se considerarmos que havia mais de 30 fabricantes no Reino Unido após o fim da Segunda Guerra e que uma delas chegou a ser a quarta maior fabricante do planeta antes de se tornar a famosa British Leyland, também classificada como quarta maior fabricante de automóveis de sua época.
Agora.. como uma empresa com tamanho poderio industrial (e também político, indiretamente) pode simplesmente desaparecer do mapa? A resposta passa por um crescimento desenfreado, seguido pela falta de gestão, que levou à estatização parcial, seguida por uma sequência interminável de greves, que por sua vez derrubou a qualidade dos carros e resultou no desmantelamento da empresa como única saída viável. Mas antes de chegar ao fim, precisamos entender como tudo começou, mais precisamente nos anos 1930, ainda no período entre guerras.
Começando com fusões
Nessa época o Reino Unido tinha apenas dois grandes fabricantes de automóveis: a Morris e a Austin. A primeira era controlada por William Morris e seu braço-direito Leonard Lord, enquanto a segunda era comandada por Herbert Austin. No período entre-guerras as duas empresas cresciam paralelamente, adquirindo fabricantes e encarroçadoras em um modelo semelhante ao dos conglomerados americanos.

Em 1927 a Morris adquiriu a Wolseley, que foi seguida pela MG em 1935 e pela Riley em 1938. Nessa mesma época, Leonard Lord deixou a Morris e acabou contratado pela Austin, onde seu fundador estava procurando alguém para substituí-lo desde que seu filho único fora morto na Primeira Guerra. Assim, Leonard Lord se tornou diretor-geral da Austin em 1938 e assumiu a presidência da fabricante quando Herbert morreu, em 1941.

Durante a Segunda Guerra as duas fábricas foram convertidas em fornecedoras de material bélico — a Morris produzindo jerry cans e os aviões de Havilland Tiger Moth e a Austin fabricando ambulâncias. Após a Segunda Guerra, a Austin arrematou a encarroçadora Vanden Plas e, no final da década Leonard Lord reuniu-se com seu antigo chefe (e agora rival) para negociar uma fusão entre as duas empresas, algo que se concretizou em 1952 e resultou na criação da British Motor Corporation (BMC).
A fusão colocou sob o mesmo comando, além da Austin e da Morris, a MG, a Rover, a Riley a Wolseley e a Vanden Plas, e transformou a BMC na quarta maior fabricante de automóveis do planeta. Após a fusão, a BMC ainda criou as marcas Austin-Healey (uma divisão de esportivos) e os modelos Princess, oferecidos como marca separada.

A história da BMC (e da indústria automobilística britânica) mudaria para sempre em 1965, quando a holding adquiriu a Pressed Steel, que fornecia as carrocerias para praticamente todas as fabricantes britânicas, entre as quais a Rover, a Rolls-Royce e a Jaguar. Com a aquisição da Pressed Steel pela BMC, Sir William Lyons percebeu que a melhor forma de garantir o futuro de sua marca seria aproveitar o embalo e juntar-se à BMC.
Primeiro porque isso garantiria a continuidade do fornecimento de carrocerias. Depois porque desde a morte de seu filho John Lyons em Le Mans, Sir William não tinha um plano de sucessão para o comando da Jag. Para a BMC, a compra da Jag seria interessante porque a marca era lucrativa e bem-sucedida nos EUA. E foi assim que a Jaguar entrou na BMC.
A aquisição da Pressed Steel e da Jaguar resultou na formação de uma nova holding, a British Motor Holdings Limited (BMH) em 14 de dezembro de 1966. Mas esta nova empresa só duraria 13 meses.
O nascimento da “GM britânica”
Com o controle da Jaguar e da Pressed Steel a BMC, ou melhor, a BMH, se consolidava como uma das maiores fabricantes do planeta e, melhor ainda, passava a ter acesso ao mercado norte-americano.
Acontece que ao mesmo tempo em que se tornava gigante, a BMH também estava sem recursos para investir em novas fábricas e em novos modelos. Para complicar a situação, o Reino Unido estava entrando em uma fase de declínio econômico no final dos anos 1960, apesar do aumento na qualidade de vida da população. Como forma de manter suas fábricas competitivas o governo da época, comandado pelo trabalhista Harold Wilson, incentivou uma série de fusões na indústria em setores estratégicos com um plano nacional de reestruturação industrial.
Depois que a Chrysler adquiriu o Grupo Rootes, um conglomerado que reuniu seis fabricantes britânicos nas décadas anteriores, entre eles a Hillman, a Humber e a Sunbeam, (para depois vender o grupo à Talbot, que acabou integrada à Peugeot) houve pressão do Ministério da Indústria para que a BMH se fundisse à Leyland Motors para conter o risco de falência da BMH.
A Leyland Motors era uma fabricante independente de caminhões e bondes fundada no final do século 19, que acabou arrematando a Triumph em 1960 e a Rover (que fazia os Land Rover) em 1967 e era razoavelmente próspera na época, ainda que fosse bem menor que a BMH.
Mesmo assim, a fusão aconteceu e, em 1968, foi criada a British Leyland Motor Corporation, que juntou as dez marcas da BMH às três da Leyland, e se tornou responsável pela produção de 40% dos veículos britânicos. O presidente da Leyland, Sir Donald Stokes, foi nomeado presidente da British Leyland também por influência do governo. O ministério da indústria esperava que a experiência de Sir Stokes pudesse transformar a British Leyland na GM britânica.
Como todo plano inicialmente brilhante, a fusão entre as empresas começou a dar errado logo nos primeiros dias. Sir Stokes descobriu que, apesar de a BMH ter lançado os primeiros modelos de tração dianteira do mercado, eles estavam gastando uma fortuna com a garantia, o que matava a lucratividade dos modelos — no caso o Mini e o Austin 1100/1300. Pior ainda foi descobrir que a BMH não tinha nenhum plano para substituir os projetos mais antigos à venda, tampouco para fazer frente às novidades dos concorrentes, como o Ford Escort e o Ford Cortina.
Sindicalistas e estatização
A fabricante ainda se tornaria famosa pela atividade sindical que corria solta em seu chão de fábrica. Com mais de 40 unidades de produção espalhadas por todo o Reino Unido, a British Leyland se tornou um alvo fácil para agitadores sindicais o que afetava a eficiência de sua produção. Mesmo com tantas fábricas, a British Leyland ainda não havia otimizado a cadeia produtiva de forma que se uma única unidade fosse paralisada pelos grevistas, toda a produção ficaria comprometida. Isso também comprometeu a qualidade dos carros — notadamente no Morris Marina e no Austin Allegro, que embora tenham sido sucessos comerciais, afundaram a reputação da marca.
Foi nesse deslize da British Leyland que a Ford e a GM (Vauxhall) ganharam território e chegaram à liderança do mercado britânico. Quando a agitação trabalhista começou, as duas americanas unificaram suas subsidiárias da Inglaterra e da Alemanha. A Ford fez a Ford of Europe e a GM transformou a Vauxhall em uma subsidiária da Opel. Assim, quando uma fábrica fosse paralisada pela greve, bastaria aumentar a produção em outra unidade não afetada para suprir a cadeia produtiva.
Mas este era apenas mais um dos problemas da British Leyland. Havia ainda a falta de integração entre as concessionárias e, principalmente, entre os funcionários. Muitos operários das fábricas originárias da Morris inexplicavelmente se recusavam a trabalhar na produção de modelos da Austin e o mesmo acontecia com os operários das fábricas originadas da Austin.
Esta situação absurda frustrou qualquer tentativa de compartilhamento de plataformas e resultou em uma concorrência interna forçada: em vez de cortar os custos pela metade, ela gastou em dobro, uma vez que os modelos compartilhados só podiam ser produzidos nas fábricas onde os projetos foram desenvolvidos.
Ou seja: os projetos de origem Austin (independentemente da marca) só poderiam ser feitos nas fábricas da Austin, e os projetos de origem Morris somente nas fábricas da Morris. E isso ficou agravado com a chegada das marcas da Leyland (Rover e Triumph) a ponto de haver sabotagem entre as equipes de desenvolvimento.
E como se não bastassem seus problemas internos, a British Leyland ainda deparou com a crise do petróleo de 1973, com a semana de três dias (uma medida emergencial de economia de energia adotada pelo governo conservador do início dos anos 1970) e alta da inflação. Resultado: em 1975 a gigante britânica estava quebrada.
Interlúdio: a Aston Martin
A esta altura você deve estar se perguntando onde estão Rolls-Royce, Bentley e Aston Martin. Afinal, a indústria britânica não se resume à British Leyland. Bem… no fim dos anos 1960 as três não estavam em situação muito melhor que a da BMH. A Bentley era uma subsidiária da Rolls-Royce desde 1931, quando faliu após o crash de 1929, e a Rolls-Royce foi liquidada e nacionalizada em 1980, pertencendo a uma holding pública criada para salvar a indústria britânica.
A Aston estava passando por dificuldades financeiras sob o controle de David Brown e acabou se tornando a primeira fabricante britânica vendida para estrangeiros. David Brown conseguiu impedir a falência da Aston quitando suas dívidas de 5 milhões de libras em 1972 antes de vender a empresa para um banco de investimentos por 101 libras em 1972, e foi vendida novamente para uma sociedade chamada Sprague and Curtis, formada por um empresário americano chamado Peter Sprage, um canadense chamado George Minden e pelo britânico Alan Curtis em 1975.
A sociedade permaneceu somente seis anos à frente da Aston Martin e chegou a cogitar a compra da MG para desafogar a British Leyland, mas uma recessão em 1980 levou a Sprague and Curtis a refazer seus planos e a Aston acabou vendida de volta a um proprietário britânico: Victor Gauntlett, da Pace Petroleum.
Gauntlett é frequentemente citado como o homem que salvou a Aston Martin tendo conquistado o Royal Warrant of Appointment (um certificado de fornecedor da família real), renegociado o uso dos Aston com a franquia 007 da Eon Productions para que ele se tornasse o carro oficial de James Bond novamente, e recolocado a Aston de volta no automobilismo internacional.
Sua última tacada foi a renovação do motor V8 da marca e a negociação da Aston com a Ford, o que abriu o caminho para que ela se tornasse o que é hoje. Em 2007 a Ford vendeu a marca para um consórcio multinacional liderado por David Richards da Prodrive, e em 2012 foi adquirida pela holding italiana Investindustrial, que foi quem organizou a empresa para sua oferta inicial pública (IPO), tornando a Aston Martin uma empresa de capital aberto, listada na bolsa de Londres como Aston Martin Lagonda Global Holdings plc.
O socorro estatal e o começo do fim
A falência da British Leyland poderia resultar não apenas no colapso da indústria automobilística britânica, mas também no desemprego de mais de 200.000 pessoas diretamente e outro tanto indiretamente. Para minimizar o risco de uma catástrofe sócio-econômica, o governo novamente intercedeu, mas desta vez adquirindo parte da British Leyland por meio de uma holding que basicamente estatizou a corporação.
A reestruturação consistiu na divisão da British Leyland em quatro subsidiárias: a Leyland Cars (automóveis), Leyland Truck and Bus (ônibus e utilitários), Leyland Special Products (veículos militares, maquinário pesado e refrigeração) e Leyland International (exportações). Os resultados preliminares foram positivos, com novos modelos ganhando espaço no mercado, caso do Rover SD1, e até mesmo investimentos em pesquisa e desenvolvimento de modelos mais modernos e aptos a encarar a concorrência mais atualizada, ainda que Ford e Vauxhall continuassem dominando o mercado.
Em 1977 veio nova mudança no comando. Apontado pelo conselho da holding estatal, Sir Michael Edwardes decidiu desfazer as divisões, cortar excessos e concentrar no fortalecimento das marcas individualmente. A Leyland Cars foi transformada na BL Cars e subdividida em duas: a Austin Morris faria os modelos de grande volume e incorporava a MG, enquanto a Jaguar Rover Triumph (JRT) ficaria responsável pelos esportivos e modelos de luxo.
Em um primeiro momento a Land Rover seguia como divisão da Rover, mas acabou separada da JRT para se tornar o Land Rover Group. Com o desmembramento da Rover, a BL Cars acabou separando a Jaguar da Rover e Triumph em 1978, formando a Jaguar Car Holdings com a Daimler e a Vanden Plas.
As mudanças funcionaram e em 1980 a BL finalmente conseguiu lançar um modelo para substituir o Mini: era o Austin Metro, um compacto de três portas feito para enfrentar o Fiesta e o Chevette com uma modernidade que o Mini não conseguia oferecer. O modelo acabou se tornando um dos mais populares no Reino Unido durante os anos 1980, e foi seguido pelo Morris Ital, pelo Rover 200 e pelo Austin Ambassador.
Apesar do aumento nas vendas da BL, a empresa ainda era ineficiente e a qualidade de seus carros era questionável. Com a reeleição de Margareth Thatcher em 1983, a “Dama de Ferro” acelerou o processo de privatização das estatais britânicas e a Jaguar Car Holdings foi uma das primeiras a ser vendida logo em 1984, sendo arrematada pela Ford.
Naquele mesmo ano a British Leyland continuou a enxugar custos para tornar a empresa mais eficiente e atrativa para a privatização. Os modelos Morris e Triumph deixaram de ser produzidos. Restavam apenas o Mini, os MG, os Rover, Austin e os Land Rover. A BL foi rebatizada como Rover Group e privatizada em 1988 após a venda para a British Aerospace, que manteve apenas duas subsidiárias — Austin Rover e Land Rover.
O grupo permaneceu sob o controle da British Aerospace até 1994, quando finalmente foi vendido para a BMW. A marca alemã descontinuou os modelos da Austin em 1998, vendeu a Land Rover para a Ford, manteve as marcas Mini, Triumph e Riley e vendeu a MG Rover, que se tornou um grupo independente em 2000. Sete anos mais tarde a MG Rover foi adquirida pelos chineses da Nanjing Automobile, que posteriormente foi arrematado pela SAIC, já sem nenhuma relação com a antiga MG britânica.
E a Rolls-Royce?
Quanto à Rolls-Royce, sua temporada como estatal não foi muito mais produtiva que a da British Leyland. A divisão de carros foi separada da divisão aeroespacial e permaneceu independente até 1980, quando foi comprada pela Vickers, uma empresa de engenharia estatal criada para produzir os veículos de defesa do Reino Unido.
Nessa época a Rolls-Royce e a Bentley continuaram unidas e compartilhando projetos — os Bentley eram basicamente Rolls-Royces reestilizados — até 1997 quando a Vickers decidiu vender a Rolls-Royce Motors. A BMW parecia a compradora mais provável pois já fornecia componentes para a Rolls, mas sua oferta final de 340 milhões de libras esterlinas foi superada pela oferta da Volkswagen, que ofereceu 430 milhões de libras.
A Volkswagen, contudo, adquiriu os projetos, os nomes dos modelos, as fábricas e o registro do design da grade da Rolls-Royce, mas não adquiriu o direito de usar o nome e o logotipo da Rolls-Royce, que pertenciam a uma empresa separada, a Rolls-Royce Holdings, devido ao compartilhamento da imagem da marca com a divisão aeroespacial.
Em 1998 a BMW adquiriu os direitos de uso do logotipo e do nome Rolls-Royce e encerrou o contrato de fornecimento para a Rolls-Royce Motor Cars, o que pegou a Volkswagen desprevenida. Com isso, iniciou-se uma negociação para que os dois grupos chegassem a um acordo sobre as marcas britânicas. O acordo foi que entre 1998 e 2002 a Volkswagen usaria o nome e o logotipo da Rolls-Royce contanto que a BMW fosse sua única fornecedora. E foi assim que, em 2003 a Volkswagen ficou com a Bentley e a BMW com a Rolls-Royce.
Bonus track: Lotus Cars
Você não achou que iríamos terminar esta história sem falar da Lotus, não é? A marca fundada por Colin Chapman permaneceu independente até sua morte, em 1982. Nessa época, contudo, a Lotus Cars já estava endividada e muito perto da falência. Foi quando apareceu um cara chamado David Wickins comprou parte da Lotus junto com um consórcio de investidores estrangeiros que conseguiram salvar a marca.
Contudo, apesar das dívidas pagas, a Lotus não tinha dinheiro para desenvolver os novos modelos previstos. Em janeiro de 1986 a marca foi vendida para a General Motors, que ficou no controle até 1993 e vendeu a Lotus para uma holding de Luxemburgo controlada por Romano Artioli, o mesmo homem que tentou trazer a Bugatti de volta nos anos 1990. Em 1996 Artioli vendeu a Lotus para a fabricante malaia Proton. Os malaios permaneceram no comando até 2018, quando a Lotus foi vendida para os chineses da Geely e, finalmente, parece estar financeiramente estável.