Quando pessoas normais vão fazer uma viagem de carro, a preocupação é escolher a rota mais rápida, segura e que consuma menos combustível. É claro que, para os entusiastas, a beleza da paisagem e a diversão que a estrada em si pode proporcionar também são levadas em conta para uma verdadeira road trip, mesmo que não tenham um carro bacana de verdade.
E quando me refiro a um carro bacana de verdade, falo de alto nível. Do nível de Harry Metcalfe, fundador e ex-editor da revista Evo, que hoje é consultor técnico na Jaguar Land Rover e amealhou ao longo dos anos uma bela garagem, cuja estrela mais conhecida, sem dúvida, é seu Lamborghini Countach 5000 QV 1987. Como não está mais na Evo desde 2013, Metcalfe tem dedicado seu tempo livre ao seu canal no Youtube, Harry’s Garage que, bem… é o que o nome diz: em seus vídeos, Metcalfe dá detalhes de como é conviver com os carros de sua garagem.
E, como estamos falando de um dos mais respeitáveis jornalistas automotivos do Reino Unido, os carros que ele escolheu para habitar sua garagem são todos especiais de alguma forma. Além do Countach, ele tem uma Ferrari Testarossa (que também leva para viagens, claro), um Jaguar Project 7 que foi feito sob medida para ele (são as vantagens do cargo…), um Renault Clio Trophy e, até 2013, tinha também um Pagani Zonda.
O Countach, que completa trinta anos de fabricação neste mês, está com Metcalfe há sete, e já rodou dezenas milhares de quilômetros desde então.
Para celebrar o aniversário de seu Countach, no último dia 17 de setembro, Metcalfe decidiu percorrer a chamada Rota de Napoleão, trecho entre a França e a Itália que Napoleão cruzou em 1815, quando retornava para casa após um ano de exílio na Ilha de Elba, na região da Toscana.
Napoleão, contudo, viajou sentido sul-norte. Metcalfe fez o contrário: saiu da cidade de Beaune em direção a Grenoble, de onde seguiria novamente para o norte ao longo de 1.300 km até Neuchatel, na Suíça, onde o Countach participaria de um Concorso d’Eleganza realizado com apoio oficial da Lamborghini. É a primeira vez que a fabricante se envolve em um evento deste tipo.
A primeira parte da viagem foi documentada neste vídeo, no qual Metcalfe mostra como é se preparar para sair com um Countach e explica algumas curosidades interessantes a respeito do carro. Além, é claro, de nos presentear com o ronco de seu clássico supercarro italiano enquanto costura pelas curvas dos Alpes franceses, que proporcionam uma bela vista. Especialmente se você for o tipo de cara que tem um Lamborghini Countach de real importância histórica e não tem medo de pará-lo na beira de um precipício para apreciar a vista e descansar um pouco os ouvidos (porque, como você já deve ter notado, o V12 ronca alto).
O Countach de Metcalfe é todo original e muito bem preservado, valendo-se do uso constante para ficar sempre em forma. Isto já bastaria para justificar sua presença no Concorso, mas tem mais: seu carro é exatamente o exemplar que a Lamborghini levou para o London Motor Show de 1987, ocasião na qual foi apresentada a versão 5000 Quattrovalvole, ou 5000 QV, para o mercado britânico (na Itália ela foi lançada em 1985).
Àquela altura, o Countach já havia ganhado os para-lamas alargados e os componentes aerodinâmicos nada discretos que lhe tornaram um símbolo oitentista (mesmo que tenha nascido na década anterior), mas foi só em 1987 que veio o motor de 5,2 litros com os seis carburadores Weber montados no topo do motor, e não ao lado como era na versão de 4,8 litros, além de cabeçotes com quatro válvulas por cilindro em vez de duas. O resultado foi um aumento significativo na potência, de 375 cv para 475 cv.
Houve, porém, um efeito colateral: os carburadores no topo exigiram um “calombo” na cobertura do motor, o que piorou a já ruim visibilidade traseira. Observação: os carros exportados para os EUA não tiveram este problema, porque o 5000 QV americano trocou os carburadores por um sistema de injeção Bosch K-Jetronic em uma medida para tentar reduzir o consumo de combustível e emissões – que era uma preocupação bem maior nos EUA do que na Europa. De fato, o carro de Metcalfe fez uma média de 5,3 km/l. Por sorte, o tanque do Countach comporta 110 litros, suficientes para uma autonomia de quase 600 km. Not bad at all!
Antes de partir para a primeira parte da viagem, de cerca de 300 km, Metcalfe coloca a bagagem no porta-malas, que é surpreendentemente espaçoso – especialmente se você remover as laterais do revestimento, dando acesso a um espaço vazio atrás de cada lanterna. Este espaço não é parte “oficial” do porta-malas de 240 litros, mas é o que permite que, por volta dos 3:40 do vídeo, Metcalfe coloque ali duas malas grandes, mais a bolsa de sua câmera. É surpreendente, de verdade.
Depois de abastecer (e fazer uma paradinha para o lanche, usando a asa traseira como mesa), Metcalfe começa a viagem de verdade. E assim que pega a via expressa (mais ou menos aos 5:50), ele consegue nos mostrar o quanto que o Countach é barulhento. O motor V12 logo atrás de sua cabeça gosta de girar, e a 110 km/h as rotações estão perto das 4.500 rpm. A 130 km/h, não dá para ouvir o que Metcalfe está dizendo.
Além do ronco do motor, há também o ruído das engrenagens do câmbio. O barulho sai pela grelha do câmbio, e Metcalfe usa um pedaço de tecido (com estampa de oncinha!) pra atenuá-lo.
Isto, é claro, sem falar no fato de o Countach já ser um carro naturalmente de “difícil” convivência. Carros de 30 anos exigem muito mais comprometimento e disposição caso se queria utilizá-los no lugar de algo mais moderno e confiável, isto é fato. Mas, no caso do Countach, há todos os sintomas colaterais de se ter um supercarro projetado nos anos 70: a carroceria em forma de cunha, por mais absurdamente cool e aerodinâmica que seja, resulta em um carro com interior apertado, pouca visibilidade (vê o tamanho das janelinhas que se abrem de verdade? Mal entra vento!), muito barulho e ergonomia meio estranha para certas tarefas (como fazer uma baliza, por exemplo).
Da metade para a frente, o vídeo consiste em tomadas onboard e quase nenhum comentário – Metcalfe deixa o ronco do V12 italiano falar. Quase não se percebe que o vídeo já passou da metade de seus quase vinte minutos de duração. E é aí que a gente nota como até mesmo um vídeo consegue transmitir o tamanho da diferença entre, por exemplo, um Countach e um Aventador. Ouve-se o ronco do motor com muito mais clareza, e dá para escutar também alguns acabamentos batendo. Vê-se que é preciso sempre corrigir o volante um pouquinho, que a direção é dura e que trocas de marcha são constantes. Se fosse um Aventador, Metcalfe poderia relaxar nos trechos mais tranquilos e só se empenhar no volante na hora de contornar as curvas da Rota de Napoleão. Com o Countach, é preciso domar o touro bravo o tempo todo.
De qualquer forma, o modo como ele conduz a viagem, parando em pontos estratégicos para olhar o mapa (de papel, pois o Countach não tem navegador GPS, obviamente) com toda a calma do mundo e explicando os desvios que faz para pegar os melhores trechos, faz parecer que ele está com um carro qualquer.
É uma viagem completamente analógica, e fica mais admirável quando a gente lembra que o destino era um Concorso d’Eleganza – o tipo de evento frequentado por carros que passam a vida em garagens climatizadas e são transportados em carretas cobertas, sem sequer encostar os pneus no asfalto. Em 1.600 km, o carro poderia ter quebrado, se acidentado ou mesmo sofrido qualquer pequeno dano que comprometesse seu desempenho no evento, mas Metcalfe dá um verdadeiro tapa na cara de quem só se preocupa com isto, dizendo: “e daí?”
Na verdade, me senti até um pouco envergonhado pelas vezes em que fiquei preocupado antes de uma longa viagem com meu carro moderno, econômico e barato, usando o Google Maps para achar o caminho, enquanto o velho Metcalfe viaja com um Lamborghini carburado de 30 anos e um mapa.