Luca Cordero di Montezemolo está fora da Ferrari. Na verdade ele fica ocupando a vaga até 13 de outubro, data em que a Fiat Chrysler Automobiles começa a operar em Wall Street. Os motivos para a saída de Montezemolo não estão claros — cada um aponta para um lado: dizem que ele quer entrar na política, outros dizem que ele não quer fazer parte da fase “americana” do Grupo, ou que ele já está velho e cansado e quer passar mais tempo com a família, que pretende trabalhar na Alitalia e várias outras especulações.
Uma delas, contudo, tem um bom embasamento lógico: a Ferrari vai mal na Fórmula 1. A escuderia ganhou seu último título há distantes seis anos, e desde então conquistou apenas 12 vitórias em 107 Grandes Prêmios — nenhuma delas nesta temporada. A situação fica ainda pior quando se considera que a equipe passou por um fiasco em casa neste último GP de Monza, com um abandono de Alonso e um nono lugar de Kimi Raikkonen às vésperas de abrir seu capital na bolsa de Nova York.
Contudo, foi sob o domínio de Luca di Montezemolo que a Ferrari teve sua melhor fase na Fórmula 1. Primeiro entre 1974 e 1977, quando ele foi nomeado chefe da equipe pelo próprio Enzo Ferrari e conquistou três títulos de construtores e dois de pilotos, estes vencidos por Niki Lauda.
Depois de ser promovido a cuidar de todas as atividades de competição do grupo Fiat em 1976, ele ocupou um cargo executivo na fabricante até 1991, quando foi indicado por Gianni Agnelli para a presidência da Ferrari. A fabricante não ia muito bem desde a morte de seu fundador em 1988, e Luca foi escolhido para colocar as coisas em ordem.
Foi quando ele realmente começou a escrever seu nome na história. Até então a Ferrari era uma empresa com espírito garagista, formada por um punhado de trabalhadores construindo carros para bancar a equipe de corridas, sem se importar muito com a qualidade final ou com a inovação dos modelos.
Esse estilo de produção funcionara até ali, mas com a morte de Enzo a fábrica perdeu sua capacidade de inovar e planejar o futuro. Para piorar: os carros bancavam uma equipe que já não tinha a competitividade nem os ídolos de seus melhores momentos — da morte de Gilles Villeneuve até o vice-campeonato de Prost em 1991 a Ferrari não teve chances reais de disputar um título de pilotos, e embora tenha conquistado alguns vice-campeonatos entre 1983 e 1991, ela se mantinha amarrada à tradição de um motor V12 pesado, que cantava lindamente, mas tinha um desempenho que ficava cada vez mais inferior em relação aos V10 da Renault e da Honda.
Ferrari F1/86, um dos mais problemáticos da Scuderia
Além da exclusivíssima F40, a linha de modelos tinha apenas três opções: a Mondial, de 1980, a Testarossa, de 1984, e a 348 de 1989 — que tinha visual muito semelhante ao do modelo V12. A produção era minúscula e tudo era feito praticamente de modo artesanal. Sem uma revolução a Ferrari estava fadada ao fracasso, como aconteceu com a Lamborghini sob o domínio da Chrysler e com a Bugatti nas mãos de Romano Artioli.
Fábrica da Ferrari no começo dos anos 1990
Mas Luca di Montezemolo compreendeu que a Ferrari podia ir muito além daquilo. Como ele mesmo diz aos seus funcionários, “a Ferrari não vende carros. Ela vende um sonho”. E assim ele começou sua revolução na marca do cavalinho rampante.
O primeiro passo foi modificar a 348, que segundo suas palavras é um “carro de merda que só faz barulho e não anda” (se você duvida, veja o vídeo abaixo). Depois ele criou uma sucessora para a série 400, lançando a 456 GT, evoluiu a 348 para tornar-se a 355, que foi a precursora da linhagem da atual 458 Italia.
Logicamente nada disso seria possível sem evoluir também a fábrica e torná-la cada vez mais rica. Em 1993, seu segundo ano à frente da fabricante, a receita anual da Ferrari foi 230 milhões de euros.
Em 2013 a Ferrari faturou nada menos do que 2 bilhões de euros. Uma boa parte deste dinheiro vem do ramo de licenciamento da marca, que a tornou ainda mais popular — a ponto de chegar ao limite da vulgarização da marca, vendendo até mesmo perfumes, cadernos e canecas em postos de gasolina.
Fábrica da Ferrari atualmente
Contudo, Montezemolo sacou que a paixão pela equipe não sustentaria o negócio, mas sim a qualidade dos carros de rua — algo que Enzo Ferrari já fazia no fim dos anos 1940. Assim ele garantiu um investimento de 20% do faturamento em pesquisa e desenvolvimento, e a sede da Ferrari deixou de ser um galpão onde um punhado de operários construíam carros, e hoje se parece mais uma empresa de tecnologia de ponta — o que não deixa de ser verdade, considerando as inovações da F1 que foram parar em seus carros de rua e, posteriormente, em modelos das marcas mais populares do grupo.
A produção aumentou de algumas centenas de unidades anuais para 7.000, um número limitado pelos planejadores da marca. Os operários têm uma série de benefícios sociais como material escolar gratuito, plano de saúde, creche para os filhos, e até crédito para compra de imóveis — tudo oferecido como cortesia da empresa que foi considerada o “melhor lugar para se trabalhar na Europa” pelo jornal Financial Times de Londres — a conquista da qual Montezemolo diz mais ter orgulho.
Enquanto isso, nas pistas, à frente da equipe de Fórmula 1 que ele já havia levado à glória nos anos 1970, ele conseguiu um domínio como poucas vezes se viu na categoria. Montezemolo foi o responsável pelas contratações de Michael Schumacher, Ross Brawn, Jean Todt e Rory Byrne.
Em três anos a Ferrari voltou a conquistar um título da F1 depois de um jejum de 15 temporadas e manteve-se no topo por seis anos consecutivos, até 2005 — consagrando Schumacher heptacampeão (seus cinco últimos títulos foram pela Ferrari) — e ainda voltaria a vencer outros dois campeonatos de construtores em 2007 e 2008 com Felipe Massa e Kimi Raikkonen no cockpit.
Desde então as coisas parecem ter desandado em Maranello. Foram apenas 12 vitórias em mais de 100 GPs — 11 de Fernando Alonso e uma de Kimi Raikkonen — e nem mesmo o talento do bicampeão foi capaz de reverter a situação. Ao mesmo tempo Montezemolo também vinha se tornando muito crítico em relação às mudanças da Fórmula 1 — caso do congelamento dos motores, ou da proibição de treinos e testes particulares — dizendo que elas tiram a competitividade do negócio. Talvez ele tenha alguma razão, ou talvez seja apenas reclamação de quem se acostumou a vencer.
É difícil dizer ao certo o que levou à saída de alguém que transformou a Ferrari no que ela é hoje — para o bem e para o mal. Talvez essa nova fase do grupo Fiat exija líderes menos apaixonados por suas marcas, algo que Montezemolo sempre foi pela Ferrari, a ponto de considerá-la tão importante quanto sua família.