Na semana passada foi sancionado pelo governo federal o decreto que regulamenta o Programa Mobilidade Verde e Inovação, que substitui o Rota 2030 e visa promover a sustentabilidade, a inovação tecnológica e a eficiência energética no setor automotivo brasileiro, visando a redução em 50% das emissões de carbono até 2030.
O programa é formado por um conjunto de regras dispostas pela lei 14.902 de 2024, e pode mudar significativamente a indústria automobilística brasileira e o mercado de carros — tratam-se das mudanças mais drásticas dos últimos 40 anos, uma vez que o Programa prevê incentivos para pesquisa e desenvolvimento, para a modernização dos carros fabricados no Brasil, incentivos para fabricá-los localmente, além de fomentar mudanças na forma de produzir automóveis localmente, além de finalmente propor uma mudança na base de cálculo do IPI, hoje anacrônica por ser baseada na cilindrada em tempos de downsizing e hibridização.
A legislação é extensa e abrangente e, embora traga muitos pontos positivos, também há alguns pontos que merecem ser avaliados de forma crítica com mais atenção, pois a lei já começará a vigorar a partir de 1º de junho deste ano. Por isso, ao longo da última semana, analisamos o texto da lei para trazer um resumo de tudo o que irá mudar e como isso poderá afetar o cenário automobilístico industrial e comercial do Brasil. A seguir, elencamos os tópicos propostos pela lei, seguidos de uma leitura crítica de cada um deles.
Novas regras para venda de carros
A mudança mais significativa são as novas regras para se vender um carro nacional ou importado no Brasil a partir de 1º de junho deste ano. Os carros deverão atingir níveis mínimos de eficiência energética em dois ciclos distintos: “tanque à roda”, que mede as emissões da operação do veículo; e o ciclo “poço à roda”, que considera também as emissões da produção da energia (combustível ou elétrica) dos veículos.
Também será exigido um nível mínimo de reciclabilidade veicular e a adesão aos programas de rotulagem veicular referentes à eficiência energética, à segurança, e ao conteúdo e origem dos componentes, além de níveis mínimos de desempenho estrutural e tecnologias de assistência de condução.
Como já mencionado, as medidas visam modernizar a frota brasileira, tornando-a mais sustentável e segura — uma intenção positiva. A questão é que a adoção de tecnologias por força de lei tende a encarecer os carros em um primeiro momento, o que exige aumento no poder de compra do consumidor para que o objetivo final — a renovação da frota — seja atingida. Caso contrário, o efeito poderá ser oposto: o envelhecimento da frota pelo aumento da demanda por carros usados, que permanecerão mais tempo no mercado, mantendo padrões antigos e/ou obsoletos de segurança e emissões.
Incentivos para produção e desenvolvimento no Brasil
Visa aumentar o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) no Brasil. A lei cria um regime específico de incentivos fiscais para empresas que investirem em P&D, engenharia automobilística, produção de tecnologias inovadoras e integração com instituições de ensino e pesquisa. Com isso, as empresas habilitadas podem receber créditos financeiros de até 50% dos investimentos em P&D e de até 250% dos investimentos em tecnologias sustentáveis, eletrificação, automação ou descarbonização. Os créditos poderão ser recebidos na forma de compensação tributária ou ressarcimento em moeda corrente.
Os efeitos esperados desta medida são a instalação de centros de engenharia no Brasil, um ponto crítico depois que a China e a Tailândia se tornaram o centro global de desenvolvimento de modelos para mercados emergentes/em desenvolvimento, algo que traria maior valor agregado à produção local por tornar as indústrias mais que meras fabricantes, mas também centros de desenvolvimento tecnológico.
Esta medida também pretende evitar o cenário crítico mencionado mais acima, no qual os preços dos carros podem aumentar pela adoção forçada de tecnologias relativamente novas. Com o incentivo para produção e desenvolvimento local, é possível reduzir custos e amenizar o impacto que o custo de implementação das novas tecnologias, especialmente pela exportação de parte da produção. É importante lembrar, contudo, que os insumos da indústria são cotados em dólar, então a eficiência dessa medida dependerá também da estabilidade da moeda brasileira.

Além disso, a medida exigirá a criação ou manutenção de centros de P&D no Brasil, que deverão atingir metas rigorosas previstas pelo Programa, algo que pode não apenas aumentar os custos operacionais, mas também exigem investimentos que dependem da expansão do mercado e da estabilidade econômica. Caso contrário, veremos a situação de crise que ocorreu após 2013, quando o endividamento do consumidor em longo prazo reduziu a demanda por carros novo. E mais: os principais incentivos têm validade de apenas cinco anos — um prazo que pode não ser suficiente para retorno dos investimentos.
Outro ponto crítico é que a lei depende de atos futuros do poder Executivo para definir indicadores, pesos, medidas, metas e métodos, o que pode abrir margem para discricionariedade política em longo prazo. E mais: os incentivos dependem de avaliações técnicas constantes, o que exige estrutura governamental eficiente, o que nem sempre é garantido. Isso permitiria, por exemplo, que empresas usem projetos de impacto ambiental pouco relevante para captar incentivos.
Por último, as empresas que já desfrutam de benefícios de outros regimes vigentes atualmente, não poderão acumular os novos benefícios, o que pode causar conflitos e desestimular os investimentos em P&D.
Possível mudança no IPI
O Programa também propõe uma nova forma de se calcular o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) incidente sobre os carros. Atualmente, a alíquota do IPI é baseada no tipo do motor e em seu deslocamento — um método anacrônico, uma vez que o downsizing permite que motores de até 999 cm³ tenham potências antes obtidas por motores de maior deslocamento, aproveitando-se das alíquotas menores, originalmente criadas para carros populares ou de menor valor agregado.
A resolução assinada na semana passada, contudo, não modifica as alíquotas nem as categorias. Em vez disso, o IPI poderá ter descontos baseados nos créditos financeiros dos investimentos locais e, a partir de 2027, também poderão receber estes créditos os veículos que atenderem aos requisitos obrigatórios de eficiência energético-ambiental, de reciclabilidade veicular, de rotulagem veicular e de desempenho estrutural e tecnologias de assistência.
Por exemplo: os veículos que tiverem um mínimo de 85% de materiais recicláveis, itens de assistência de condução e estiverem dentro dos níveis mínimos de eficiência (emissões e consumo) poderão ser beneficiados com um IPI mais baixo pelo crédito financeiro concedido.
Poder sem responsabilidade?
O programa Mover é, em essência, uma legislação baseada nos países desenvolvidos aplicada a um país ainda em desenvolvimento. É uma situação semelhante à do atual Código de Trânsito Brasileiro, na época de sua instituição. O próprio Código de Trânsito é um exemplo prático do que acontece quando há esse descompasso entre a letra da lei e a realidade social: as famosas “leis que não pegam” e entraves burocráticos que freiam o desenvolvimento e evolução sócio-econômica e cultural.
Um exemplo: até hoje o Código de Trânsito Brasileiro não tem um enquadramento para hot rods, nem uma regra uniforme para alterações das características originais em todas as Unidades da Federação. Também não há sequer uma regulamentação sobre a fiscalização de características originais — qual a definição precisa de “característica original”? Como um agente de trânsito tem acesso às “características originais” das centenas de modelos homologados no Brasil?
As mudanças propostas pelo Mover, podem acabar na mesma situação: aplica-se o que é viável. O que não for, fica à margem da lei, dependendo de interpretações das autoridades, ou à eterna espera de resoluções que nunca chegam. E isso é um problema pois compromete a prática da cidadania, por exemplo. Como um cidadão pode cumprir uma lei que não é clara? O que impede o Estado de usar esta lei opaca para repressão?
O principal problema destes programas “modernizadores” propostos pelos governos nos últimos 40 anos, é que eles preveem obrigações por parte da iniciativa privada — sejam pessoas jurídicas ou físicas — sem uma contrapartida proporcional do Estado, no âmbito econômico, inclusive.
Veja o que aconteceu com o Inovar-Auto, por exemplo: o Estado brasileiro forçou os fabricantes a desenvolver tecnologia e produção local. Em troca, ofereceu o mercado consumidor brasileiro, na época embalado por uma bonança econômica baseada na oferta de crédito. É uma estratégia econômica que pode funcionar — nos EUA, por exemplo, o mercado imobiliário e da construção civil funcionam desta forma desde os anos 1950.
Mas não houve a contrapartida do Estado: gastos públicos continuaram elevados, taxas de juros continuaram elevadas, a inflação foi manipulada e o que as fabricantes receberam, ao concluir suas fábricas e investimentos locais, foi um mercado em recessão pelo endividamento do consumidor. A partir de 2013 houve uma redução do volume de vendas que fez a indústria regredir a volumes menores que dos anos 2000 — e que até hoje não voltou aos números de 2011 a 2013, os anos que antecederam a crise.
Claro, o problema tem a ver com o valor do dinheiro e a produtividade: a economia é globalizada, os carros são “comoditizados”, seus preços naturalmente serão influenciados por moedas estrangeiras. Quando maior a disparidade entre estas moedas e o nosso dinheiro, mais caros os carros ficam para os brasileiros. O resultado é o envelhecimento da frota e a frustração das metas do programa que visa modernizar os carros brasileiros com suas leis de países desenvolvidos.
E para não ficar somente na economia, o Estado também tem de oferecer contrapartidas também no âmbito de segurança e emissões. Teremos carros modernos, com capacidade de frear sozinhos, manter-se dentro das faixas de rodagem, em sua maioria com airbags e ABS. Mas eles rodam por uma infraestrutura que, na prática, tem mais de 40 anos.
Embora o total de rodovias federais duplicadas tenha aumentado 116% entre 2006 e 2024, passando de 3.487 km para 7.552 km nestes 18 anos, esse total corresponde a somente 11,5% da malha rodoviária federal. Aqui é importante citar que, segundo a Agência Nacional do Transporte Terrestre, há 14.100 km de rodovias federais concedidas à iniciativa privada — cerca de 21% do total. Isso significa que quase 90% das rodovias federais, concedidas ou não, têm pista simples, onde um carro com 5 estrelas no EuroNCAP e 7 airbags pode perder o controle ao deparar com algum problema estrutural destas rodovias.

Sim, porque segundo a Pesquisa de Rodovias de 2024 da Confederação Nacional do Transporte (CNT) que avalia as condições das rodovias brasileiras, somente 32,5% da malha rodoviária pavimentada brasileira tem “bom” ou “ótimo” estado — isso significa que 67,5% das rodovias brasileiras avaliadas foram classificadas como “regulares”, “ruins” ou “péssimas”. Considerando o total de 111.500 km avaliados pela CNT e que 36.250 km estão em estado “bom” ou “ótimo” e que cerca de 28.000 km estão sob concessão à iniciativa privada, fica evidente mais uma falha da contrapartida do Estado neste aspecto. O mesmo estado que quer carros mais seguros — e, consequentemente, mais caros.
Por último, há o aspecto das emissões, outro ponto-chave do programa, que não tem contrapartida do Estado: o controle de emissões.
O Brasil tem o maior consumo de biocombustíveis do mundo, o que é um ponto positivo. Mas ao mesmo tempo, a frota está envelhecendo e pode não acompanhar as regras de emissões desejadas. Não apenas pela falta de renovação da frota, mas também por que não há controle de emissões. A idade média da frota brasileira é similar à americana e europeia — cerca de 12 anos. Na Europa e EUA, carros e caminhões precisam passar por verificações periódicas de emissões. No Brasil não — é mais uma lei do Código de Trânsito que está quase completando 30 anos e “não pegou”.
Além disso, na Euroa e EUA, os caminhões estão sujeitos à fiscalização nas estradas (roadside inspections), o que resulta na manutenção e atualização dos sistemas de controles em caminhões mais antigos. No Brasil não há controle de emissões dos caminhões, o que significa que, apesar da idade média ser semelhante à dos EUA e Europa, é possível que a frota brasileira tenha maior emissão de gases e partículas pela falta manutenção e atualização, estimulada pela ausência de fiscalização periódica e pontual.

O Brasil ainda tem a questão do diesel. Somos o único país do mundo que proíbe o uso de diesel nos carros de passeio — uma proibição imposta em 1976 devido ao subsídio do óleo combustível para o transporte rodoviário. Hoje é um cenário positivo, considerando os problemas que o diesel em carros de passeio causou às metrópoles europeias.
Mas uma brecha na legislação sempre permitiu que carros de passeio tivessem motor diesel — basta que ele seja capaz de transportar 1.000 kg ou mais, ou tenha marcha reduzida. Com a evolução tecnológica, as fabricantes conseguiram validar as marchas de relações curtas em transmissões automáticas como mecanismo de redução. E assim foi possível homologar carros de passeio a diesel no Brasil, caso dos SUV e caminhonetes “dupladas” vendidos nos últimos 40 anos por aqui.
Isso fez com que milhões de carros de passeio a diesel circulassem pelas ruas brasileiras, nas o Ministério do Transporte não separa os tipos de veículos por combustível, — ao menos seus dados públicos não têm essa separação. Só estão disponíveis os dados de veículos por tipo sem segmentação por combustível, ou por combustível sem segmentação por tipo de veículo, o que pode indicar que o Ministério não monitora quantos veículos de passeio a diesel existem no Brasil.
Considerando que não há inspeção obrigatória de emissões, é possível que parte destes veículos esteja rodando sem o filtro de partículas ou com alterações no motor — como o aumento da pressão da bomba de combustível, alteração muitíssimo comum para se aumentar a potência do motor diesel.
Em última análise, o “império das leis” exige que cada proposta seja avaliada não apenas pela sua redação, mas pelo impacto real que provocará. Já dispomos de normas para fiscalização de emissões, moderação de tráfego e prevenção de acidentes; não precisamos de mais leis ou novas leis. O desafio é garantir que o Estado ofereça as contrapartidas necessárias em infraestrutura, crédito/economia e fiscalização, para que a letra da lei efetivamente promova as transformações desejadas. Caso contrário, teremos somente mais obstáculos para o nosso desenvolvimento, sob o pretexto de estarmos pagando o custo da modernização.