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Car Culture

Como os carros conectam os filmes de Quentin Tarantino?

Qualquer um que tenha assistido aos filmes de Quentin Tarantino com um olhar um pouco mais atento, já percebeu que há conexões muito sutis entre os filmes do diretor. Essa relação foi muito bem explicada no curta-metragem brasileiro “O Código Tarantino”, no qual dois caras em um bar (interpretados por Selton Mello e Seu Jorge), engatam um diálogo típico dos filmes do diretor americano, enquanto um deles explica que decifrou o suposto código de Tarantino – uma série de pistas que interligam os filmes entre si, como se fosse um grande roteiro dividido em várias partes independentes.

Mais recentemente, o próprio Quentin Tarantino confirmou a “teoria”, explicando que seus filmes acontecem em dois “universos” criados por ele — um universo “mais real que o real” (que é o universo dos seus filmes) e um universo dos “filmes dentro dos filmes”. Resumidamente, os filmes que têm elementos fantasiosos, como “Kill Bill” ou “Um Drink no Inferno”, são os “filmes dentro dos filmes”. Os filmes realistas como “Pulp Fiction” ou “Django Livre”, fazem parte do outro universo, o dos filmes do Tarantino.

A explicação de Tarantino é aceitável, mas não muito convincente. Por exemplo: a teoria sugere que a maleta roubada em “Cães de Aluguel” (1992) é a mesma maleta que Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) vão buscar no início de Pulp Fiction (1994) — o que faz sentido, pois os dois filmes fazem parte do mesmo universo. A teoria também diz que o Mr. Blonde (Michael Madsen) do primeiro filme, é o irmão de Vincent Vega, uma vez que se chamava Vic Vega — o que também faz sentido pelo mesmo motivo acima.

Mas aí você tem a espada Hanzo de Beatrix Kiddo/A Noiva (Uma Thurman) em “Kill Bill” (2000), que supostamente é a mesma que Butch (Bruce Willis) pega na loja de penhores para salvar Marsellus Wallace (Ving Rhames)  em “Pulp Fiction”. Se os filmes são de universos diferentes, como eles se conectam? O mesmo ocorre com o túmulo de Paula Schultz no início de “Kill Bill 2”. Tarantino usa sobrenomes para conectar personagens, fazendo deles parentes em diferentes filmes. Em “Django Livre”, o dr. King Schultz (Christoph Waltz) diz ser viúvo, o que leva a especulações sobre Paula Schultz ser sua esposa. Mas, novamente, como os dois universos se conectam, se eles são separados?

Tarantino nunca confirmou essa relação entre os dois universos, mas seu filme mais recente, “Era Uma Vez em… Hollywood” (2023), supostamente transita entre os dois universos. E isso me deixa cético sobre a honestidade de Tarantino em relação à teoria dos universos.

Outra coisa que me deixa cético sobre a honestidade de Tarantino em relação a essa teoria é “Jackie Brown”, seu filme de 1997 que homenageia os filmes da blaxploitation, dos anos 1970. Tarantino e os teóricos da internet dizem que ele não faz parte destes universos porque não foi escrito pelo diretor, mas… por que cazzo Tarantino deixaria de fora um filme que ele adaptou o roteiro e dirigiu, e incluiria filmes que ele não dirigiu, como “Um Drink no Inferno”?

Bem… quem disse que ele deixou?

Eu não acho que ele foi sincero ao confirmar a teoria, não da forma que ele confirmou. Acho que a confirmação foi mais uma pista sobre o universo dos filmes, para fazer o público continuar pensando e teorizando sobre tudo. Também acho que ele não precisa explicar sinceramente. Afinal, seria como explicar uma piada… o que tira toda a graça da brincadeira.

Além disso, eu acho que Tarantino não foi sincero porque há uma outra relação entre os filmes que, até agora, ninguém percebeu. Pode procurar no Google em inglês, ninguém vai fazer a relação entre os filmes do jeito que eu estou fazendo aqui. E ninguém fez isso porque para fazê-lo, você precisa ser um pouco cinéfilo, um pouco gearhead e tem que ter um espaço para tornar sua teoria pública — uma combinação pouco convencional que, por acaso, temos aqui no FlatOut.

Diferentemente de “O Código Tarantino” e da teoria dos universos, que incluem os filmes com roteiro e produção e Tarantino como “Amor à Queima-Roupa” e “Assassinos por Natureza”, minha teoria inclui apenas filmes dirigidos por ele – até mesmo o filme “Grande Hotel” (Four Rooms, 1995), que é formado por quatro partes dirigidas por quatro diretores diferentes, sendo Tarantino um deles.

Este filme (Grande Hotel) em especial, porque ele é a peça-chave da minha teoria: a…

“Teoria dos carros”

Segundo essa teoria que estou propondo, quem conecta os filmes de Tarantino são os carros. E a partir da conexão estabelecida por eles, você consegue organizar os dois universos citados pelo próprio diretor.

Mais que personagens com semelhança física ou nomes parecidos, o elemento mais recorrente nos filmes de Tarantino é um Honda Civic branco do final dos anos 1970. É bem provável que você nem lembre dele, mas o compacto japonês aparece em nada menos do que quatro filmes do diretor: Pulp Fiction, Grande Hotel, Jackie Brown e Kill Bill 2. E foi justamente ele que despertou minha atenção para essa conexão entre os filmes pelos carros.

O elemento de roteiro que conecta o Honda Civic entre os filmes está escondida no esquecido segmento “The Man From Hollywood” do filme “Grande Hotel” (1995). Como todo mundo esquece que Tarantino escreveu e dirigiu esse trecho do filme, quase ninguém percebe a ligação entre os filmes pelo Honda.

Nessa curta história, três amigos estão bêbados em uma festa na cobertura do hotel onde se passa o filme — um dos quatro quartos do hotel, daí “four rooms” do título em inglês. Os amigos são o diretor de cinema Chester Rush (Tarantino), Norman (Paul Calderón) e Leo (Bruce Willis), além de Ted (Tim Roth), o mensageiro do hotel que conecta os quatro segmentos do filme.

No alto da bebedeira do réveillon, Chester aposta que Norman não consegue acender um isqueiro dez vezes seguidas. Se vencer a aposta, Norman leva o Chevrolet Chevelle 1964 de Chester — um “lindo carro vermelho” segundo Leo. Se perder, terá que arrancar seu dedo mindinho com um cutelo. Norman se vê tentado a faturar o belo clássico, pois dirige “um Honda Civic branco que sua irmã lhe vendeu“. Nesse trecho de pouco menos de cinco minutos, temos duas informações fundamentais para estabelecer a relação dos filmes. Você pode assistir à cena aqui.

Primeiro, o Honda Civic branco da irmã de Norman.

Esta seria uma informação corriqueira se não fosse o fato de que um Honda Civic branco é o carro de Jackie Brown (Pam Grier), a protagonista do filme de mesmo nome (Jackie Brown, 1997). Depois de faturar o Mercedes SL do traficante Ordell Robbie (Samuel L. Jackson) ela certamente não precisa mais de seu velho Honda e pode muito bem tê-lo vendido ao seu irmão.

Em Pulp Fiction o Civic branco 1980 volta a aparecer, mas agora pertence a Fabienne (Maria de Medeiros), namorada de Butch (Bruce Willis), um lutador que trapaceia para fugir com o dinheiro dos mafiosos no segmento “The Golden Watch”. Por último, o Honda Civic também aparece em “Kill Bill 2”, discretamente parado no estacionamento de uma boate, sem indícios de quem seja seu dono.

Em “Pulp Fiction” o carro é destruído por Butch, antes de usar a espada na loja de penhores. Parece um forte indício de que “Kill Bill” se passa antes de “Pulp Fiction”, não?

Sendo assim, a cronologia proposta pelos teóricos do “Código Tarantino” e corroborada pelo pequeno Civic branco coloca “Kill Bill” antes de “Jackie Brown”, que é seguido por “Grand Hotel” e “Pulp Fiction”. O carro pertence a um proprietário desconhecido no primeiro — que pode ou não ser Jackie Brown, que o vende para o irmão Norman, antes de passar a Fabienne e ser destruído por Butch. Faz sentido pra você?

A segunda informação da aposta de “Grande Hotel” é que o diretor tem um Chevrolet Chevelle 1964, e que ele é “um belo conversível vermelho”.

O Chevelle conversível vermelho

Bem, desculpem contar o final de “Grande Hotel”, mas Norman não ganhou a aposta e, de alguma forma, o Chevy vai parar nas mãos de Vincent Vega (John Travolta) em “Pulp Fiction”, que usa o carro para levar Mia Wallace (Uma Thurman) a um jantar no Jackrabbitt Slim’s e depois acaba destruindo o conversível ao bater contra a casa de seu fornecedor de drogas quando Mia tem uma overdose (deve ser por isso que não vemos o carro em nenhum outro filme). Essa cronologia também bate com a teoria de que “Grand Hotel” se passa antes de “Pulp Fiction”.

Mas não pára por aqui.

Contudo, para continuar, precisamos manter a hipótese de interação dos universos de Tarantino e que essa hipótese é corroborada pelo filme “Era Uma Vez em Hollywood”.

Kill Bill é, supostamente, parte do universo do “filme dentro do filme”, certo? Mas você notou que o Honda Civic une o universo realista ao universo fantasioso por “Kill Bill”? A explicação pode estar em “Era Uma Vez em… Hollywood”.

Isso, porque “Kill Bill 2” tem um outro carro que atravessa os universos de Tarantino: o Karmann-Ghia azul conversível, dirigido por Beatrix Kiddo durante uma perseguição. Ele é exatamente o mesmo modelo dirigido por Cliff Booth (Brad Pitt) em “Era Uma Vez em Hollywood”.

E não apenas isso: em uma das cenas de “Era Uma Vez..”, podemos ver o Karmann-Ghia estacionado ao lado do Cadillac Coupé DeVille de Rick Dalton (Leonardo DiCaprio). Coincidentemente (ou não), o Cadillac Coupé DeVille é o mesmíssimo carro usado pelo Mr. Blonde/Vic Vega (Michael Madsen) em “Cães de Aluguel”.

Mr. Blonde/Vic Vega e seu Coupe DeVille…
Cliff Booth e Rick Dalton no Coupe Deville, quase 25 anos antes

E permitam-me fazer aqui uma análise semiótica livre: “Era Uma Vez em… Hollywood” é um filme que navega entre os dois universos de Tarantino — há filmes dentro do filme e há o realismo, e os personagens fazem parte dos dois universos, pois são atores. Estes dois carros — o Cadillac do filme “realista” (Cães de Aluguel) e o Karmann-Ghia do filme “fantasioso” (Kill Bill) — parados juntos, lado a lado, neste filme que combina os dois universos, acabam sendo uma imagem concreta da união dos universos de Tarantino. E também uma evidência da minha “teoria dos carros”.

O DeVille e o Karmann juntos em “Era Uma Vez em Hollywood”

Os bons observadores perceberam que está faltando um filme nessa história: “À Prova de Morte” (2007). A conexão com os outros filmes está no carro do vilão Stuntman Mike (Kurt Russell): um Chevy Nova modificado para ser usado em manobras de ação. É o mesmo modelo usado por Jules e Vincent em “Pulp Fiction”. Ok, eu sei que os anos dos carros são diferentes — assim como o Karmann-Ghia azul conversível de Cliff Booth e Beatrix Kiddo, mas isso é algo irrelevante para objetivo final, que é a ligação entre os filmes. As sutilezas dos anos-modelo são algo que só os nerds por carros percebem. Desconsidere isso e concentre-se na aparência geral dos carros.

Jules recorre aos serviços de Winston “The Wolf” (Harvey Keitel), um “limpador” da máfia depois de atirar acidentalmente em Marvin no banco de trás e deixar o carro todo ensanguentado. Eles limpam o carro e deixam o Chevrolet Nova com Winston, que é especialista em sumir com os vestígios de crimes. O que acontece com o Nova depois disso? Será que ele não foi parar nas mãos de Stuntman Mike?

É tão plausível que até mesmo o fato de ter sido palco de um crime em Pulp Fiction colabora para a aura maligna do carro, não?

Com isso, a cronologia dos filmes baseada na “teoria dos carros” seria a seguinte: “Era Uma Vez… em Hollywood”, “Cães de Aluguel”, “Kill Bill”, “Jackie Brown”, “Grande Hotel”, “Pulp Fiction” e “Death Proof”. Os outros três filmes em que não há carros (ou que eles são figurativos), por serem de época, têm sua cronologia muito clara: Django Livre é o mais antigo, depois “Os Oito Odiados” e “Bastardos Inglórios”.

“Death Proof” ainda tem algumas outras referências ao universo dos carros de cinema — incluindo ao próprio Quentin Tarantino, mas essa é uma história para outra hora…


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