Em julho de 2017 eu completava o tanque do meu carro com o litro de álcool mais barato que já paguei em toda a minha vida como motorista. Os quarenta-e-poucos litros que entravam no tanque, que sempre andava cheio, me custaram menos de R$ 90.
Na época, graças a uma disputa entre distribuidores e importadores, o álcool bateu a mínima de ridículos R$ 1,899 no meu posto de confiança. Na maciota, na estrada, isso significava R$ 0,20 por km percorrido. Na cidade, não chegava aos R$ 0,30. Mas… como já dizia Agostinho dos Santos, tristeza não tem fim, felicidade sim.
Naquele mesmo mês, o então presidente Michel Temer, por questões de ajuste fiscal, em uma canetada, aumentou o PIS/Cofins e provocou um aumento imediato de R$ 0,40 em todos os combustíveis. Da noite para o dia, meu querido etanol barato se tornou menos barato. Foi a R$ 2,299, voltando ao patamar anterior à farra das importações. Na época fiquei revoltado. Era como se o presidento estivesse me dizendo: “Você, brasileiro otário, não tem o direito de pagar barato por nada. Ao menor sinal de satisfação com os preços, vamos enfiar a caneta no papel e você vai pagar caro por ter pago barato.” Mal sabia eu o que viria.
Os preços dos combustíveis até que ficaram bem controlados por algum tempo. Mesmo com a nova política de preços da Petrobras, adotada por Temer após a Tomada da Pastilha (quem é bom em história vai sacar a referência) e mantida pelo atual presidente, os preços se mantiveram orbitando um patamar aceitável diante da realidade. Na verdade, tivemos até uma redução dos preços estimulada pela pandemia — a queda da demanda, motivada pelas paralisações e quarentenas, fez os preços dos combustíveis baixarem e se manterem baixos durante boa parte de 2020.
A retomada da atividade econômica ao longo do primeiro semestre de 2021, contudo, devolveu ao mercado a demanda por combustíveis. E, apesar de esta demanda ser, na prática, a mesma de antes das quarentenas, os preços começaram a subir. Entrou em cena uma guerra de narrativas — e aqui, serei obrigado a pisar no poço de lama e excremento que é a política em geral.
O governo federal, que tem a caneta “mágica” da Petrobras, se apressou em apontar que fez o possível para reduzir os preços nas refinarias, mas que não pode modificar a política de preços da Petrobras por que isso afetaria o valor da empresa e afugentaria os acionistas minoritários. Além disso, jogou o abacaxi no colo dos governadores, responsabilizando os impostos estaduais pela ineficácia das medidas para reduzir os preços.
Do outro lado, a oposição aponta que a política econômica do governo federal somada à resistência em interferir mais assertivamente nos preços, é que resultaram na desvalorização do Real e nos preços dos combustíveis em alta.
Como eu já disse anteriormente, existe uma maldição que abate o brasileiro, que nos faz endereçar todos os problemas do mundo — e suas soluções — a uma abstração chamada “governo”. Novamente, “governo” não é um negócio concreto. Porque aqui temos dois governos — ou melhor: 28 governos. Que pode ser multiplicado por três, pois temos três poderes — o que dá 84 governos. E se você não consegue apontar quais medidas devem ser tomadas, como elas devem ser implementadas, e por quem elas devem ser implementadas, então “o governo” é uma abstração que você criou como uma entidade mística sobrenatural e onipotente capaz de resolver os problemas com uma canetada mágica.
Por isso, qualquer hipótese que aponte fatores internos como responsáveis isolados pela disparada nos preços dos combustíveis é, no mínimo, ingênua — para não usar adjetivos indecorosos. Porque a alta dos preços dos combustíveis é um fenômeno global, e mais uma herança maldita das quarentenas.
O petróleo nas quarentenas
Sabe a crise dos semicondutores? E a do aço e do magnésio? Pois então. Existe uma do petróleo, motivada pelos mesmos fatores: a projeção de uma queda acentuada na demanda, a redução do volume de produção e a lenta retomada motivada pela interrupção da cadeia produtiva. Pense nisso como um sofá sendo arrastado pela casa: enquanto ele se move, é fácil arrastar. Se você parar, a força necessária para começar a movê-lo novamente será muito maior que a força para mantê-lo em movimento. Com o mercado funciona do mesmo jeito.
Quando a Organização Mundial da Saúde declarou a situação de pandemia global, os governos reagiram com medidas restritivas e o mercado reagiu a estas medidas impostas emergencialmente. A reação foi a única possível em situação de emergência: avaliação do cenário atual, projeção baseada nas condições encontradas no momento e simulação de cenários futuros.
Foi com base nesse planejamento que as refinarias americanas decidiram cortar a produção de combustíveis em cerca de 40%, saindo de uma produção de 1.800.000 barris/dia anterior à pandemia, para 1.100.000 barris por dia em maio de 2020. E não apenas isso: temendo mudanças permanentes resultantes da pandemia — como a adoção geral do trabalho remoto e ensino à distância, algumas refinarias foram permanentemente desativadas, reduzindo a capacidade de produção local em 4,5% — ou seja: além de se produzir menos, a capacidade total também está menor. Isso nos EUA.
No Oriente Médio e na Rússia, a história foi igual, mas diferente — porque, afinal, estamos falando de um cartel de fato. O problema naquela região do mundo é que a turma do Oriente Médio precisa manter o preço médio do barril na casa dos US$ 70 ou mais, o que favorece os EUA e desagrada a Rússia. E você não consegue controlar os preços de uma commodity apenas pela força de vontade. Você precisa controlar a produção.
Então, embora eles tenham feito um showzinho de negociações no início da pandemia, derrubando o preço do barril para US$ 25 — porque a Rússia estava cansada de ser superada pelos EUA e, por isso, mandou o acordo com a OPEP às favas e aumentou a produção — eles logo entraram em um acordo para limitar a produção de petróleo a partir de abril de 2020. Com isso, os preços subiram e a demanda diminuiu.
Quanto? Bem… durante a pandemia o barril do petróleo chegou a ter valor negativo (sim: eles pagavam pra você levar os barris de petróleo estocados), mas, no fim, chegou aos US$ 10. Durante o ano de 2020, com exceção do enorme vale formado nos primeiros meses da pandemia, o barril Brent flutuou em torno dos US$ 40.
Então, em dezembro, com a gradual retomada da economia, os bilhões injetados pelos governos, o aumento da demanda, mas não da produção, os preços começaram uma escalada e passaram dos US$ 80. Ou seja: o preço do barril de petróleo é o dobro do ano passado.
Os outros fatores
Fora isso, a Líbia zerou completamente sua produção devido a um conflito interno. Embora não esteja entre as maiores produtoras de petróleo, sua produção anual equivale aproximadamente à redução da capacidade total dos EUA pelo fechamento permanente das refinarias. Somente com o fechamento destas refinarias e a interrupção de produção na Líbia, o mundo já teve 1,5% menos petróleo.
Além disso houve o fator climático. Por si, o inverno no hemisfério Norte aumenta a demanda por combustíveis, pois os diversos sistemas de aquecimento e anticongelamento queimam querosene e diesel. O inverno também foi especialmente cruel com os EUA, pois o Texas sofreu com três grandes tempestades de inverno que forçaram o fechamento de refinarias, reduzindo ainda mais a oferta.
E, vejam só, até mesmo nossa ensolarada América do Sul entrou nessa história. Você certamente notou que quase não choveu no Brasil em 2021 e que até foi criada uma tarifa emergencial devido ao volume de energia elétrica produzida por termelétricas. Pois essa seca afetou toda essa metade sulista da América e, caso você não saiba, nossas termelétricas são movidas a gás natural. Ele não é um derivado do petróleo, mas a demanda sul-americana competiu com a demanda da Europa e América do Norte, o que significa que a oferta de gás natural para o povo do Norte também foi reduzida e, parte dela, transferida para o mercado de derivados de petróleo, fazendo os preços aumentarem ainda mais.
O resultado prático — ou: o que aconteceu no mundo real?
— Capitão Óbvio, poderia por favor dizer o que aconteceu?
— Claro, Leo. Os preços dos combustíveis subiram no mundo todo porque há menos petróleo e, mesmo com a retomada da produção, o volume ainda é o menor desde 2014.
— Obrigado, Capitão.
Depois desta explicação muito necessária do capitão, vamos aos exemplos práticos usando o preço da unidade mínima de venda (galão ou litro) de gasolina comum em março de 2020 e em novembro de 2021.
EUA
Antes da pandemia: US$ 1,90/gal.
Depois da pandemia: US$ 3,20/gal. (maior valor desde 2014)
Variação: ~70%
Inflação no período: ~6,3%
Brasil
Antes da pandemia: R$4,40/litro
Depois da pandemia: R$ 6,71/litro (recorde histórico)
Variação: ~ 53%
Inflação no período: ~12%
México
Antes da pandemia: $ 17,90/litro
Depois da pandemia: $ 20,30/litro (recorde histórico)
Variação: ~15%
Inflação no período: ~6,3%
Reino Unido
Antes da pandemia: 113,54p/litro
Depois da pandemia: 143,70p/litro
Variação: ~26%
Inflação no período: ~3%
Índia
Antes da pandemia: Rs 87,9/litro
Depois da pandemia: Rs 106,9/litro
Variação: ~22%
Inflação no período: ~4,3%
Rússia
Antes da pandemia: €0,57/litro
Depois da pandemia: €0,72/litro
Variação: ~27%
Inflação no período: ~8,14%
África do Sul
Antes da pandemia: R1.536/litro
Depois da pandemia: R1.907/litro
Variação: ~24%
Inflação no período: ~5%
Coréia do Sul
Antes da pandemia: ₩ 1.465,4/litro
Depois da pandemia:₩ 1.716,6/litro
Variação: ~17%
Inflação no período: ~4%
Austrália
Antes da pandemia: 140,7 cpl (cents per litre)
Depois da pandemia: 166,2 cpl
Variação: ~18%
Inflação no período: 3%
E o álcool?
Bem… o etanol é simples, prezados flatouters e flatoutars: se o seu principal concorrente tem um preço mínimo mais caro que o seu, você pode, simplesmente, aumentar sua margem até o limite da competitividade.
Por exemplo: se a gasolina é vendida na refinaria por 10 Flatcoins, e o álcool tem 70% da eficiência da gasolina, por que você venderia o álcool or menos de 6,90 Flatcoins? Por este preço, ele ainda será mais vantajoso que a gasolina, porque o custo por quilômetro será sutilmente mais barato. Então você ainda é competitivo e maximiza seu lucro.
Ainda há outros fatores, como a produção de outras variações de álcool — a demanda por álcool 70º, por exemplo —, além do concorrente natural do etanol: o açúcar. Ele é uma commodity sujeita às mesmas variáveis que influenciam o preço dos combustíveis. Quando a oferta diminui e a demanda se mantém, seu preço sobe e ele se torna vantajoso no mercado internacional.
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