No Japão, os carros costumam ser pequenos por um bom motivo: falta de espaço. Se você já viu fotos do centro de Tóquio (ou já foi até lá, claro), sabe do que estamos falando. Ruas estreitas, apartamentos minúsculos, vagas de garagem caríssimas e todo mundo “empilhado” são algo a que os residentes das metrópoles nipônicas já se acostumaram.
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E a legislação acompanhou. Por exemplo: no Japão, os kei cars só existem para incentivar as pessoas a comprar carros pequenos e econômicos, obedecendo a critérios bastante rígidos para dimensões, deslocamento e potência. Então, é compreensível que, da mesma forma que os ocidentais cobiçam alguns carros que só existem no Japão, alguns entusiastas japoneses sejam doidos pelas máquinas do ocidente.
Case in point: a cena das Dajiban.
Não, não tem nada a ver com o Jiban, clássica série de ação tokusatsu japonesa. “Dajiban” é como os japoneses pronunciam “Dodge Van” – e é exatamente disso que se trata: um bando de malucos que fazem de tudo para levar as clássicas vans americanas dos EUA para o Japão, fuçam tudo o que podem na mecânica e as colocam na pista para disputar corridas. Simplesmente porque no Japão não é muito comum ver vans enormes com motor V8 rodando nas ruas. (Na verdade essa lógica também vale para o Brasil… mas vamos fingir que não, ok?)
A verdade é que os japoneses são loucos por vans de forma geral. Elas existem por lá em todos os formatos e tamanhos – que vão das kei vans, com menos de 3,4 metros de comprimento e motor de até 60 cv (e existem literalmente dezenas delas), às luxuosas vans executivas como a Toyota Alphard. Muitos transformam suas vans em réplicas – não muito fiéis, é verdade – de modelos ocidentais, como as pequenas Subaru Sambar transformadas em imitações em miniatura da Kombi. E ainda existem as vans Bosozoku, que levam ao limite os aparatos aerodinâmicos para destacar-se da multidão.
Então, no caso das Dajiban, fica fácil entender o apelo – além de “a grama do vizinho ser sempre mais verde” (mesmo que, no caso, “vizinho” não seja uma descrição muito adequada), elas são simplesmente fodásticas.
Quando falamos de Dajiban, nos referimos especificamente à Dodge Ram Van, fabricada entre 1971 e 2003. Apesar de ter uma série de versões e configurações mecânicas, e de ter passado por atualizações pontuais, o projeto básico foi o mesmo ao longo de 32 anos – na verdade, a plataforma AB, sobre a qual a Ram Van era produzida, foi uma das mais longevas da indústria americana.
O apelo da Ram Van, surgida no auge da febre pelas vans nos Estados Unidos, era justamente o de oferecer muito espaço interno e capacidade de carga em um veículo com acabamento, conforto e desempenho de automóvel. Tanto é que, em sua primeira fase, que durou até 1978, a Dodge Ram Van usou os mesmos motores que fizeram sucesso em vários modelos do grupo Chrysler – o seis-em-linha Slant-6 nas versões básicas e uma seleção de motores V8 LA nos modelos mais caros. Havia não só o V8 de 318 pol³ (5,2 litros) que é muito conhecido dos brasileiros, mas também as variantes de 360 pol³ (5,9 litros) 400 pol³ (6,8 litros). Sem falar no V8 da família RB, com seus 7,2 litros. Em seu auge, o motor de 440 pol³ era anunciado com 380 cv ao ser equipado com conjunto Six Pack de carburação tripla – era esta a potência que ele tinha no Dodge Challenger em 1971.
Claro que, na Ram Van, o acerto do motor era diferente, priorizando a entrega de torque em baixas rotações e a economia de combustível. Ainda assim, era uma van com alma de muscle car – tem como não achar o máximo?
O mais curioso é que “ninguém sabe, ninguém viu” como a moda das Dajiban começou. Existem poucos artigos artigos em inglês a respeito, alguns deles inacessíveis sem algum tipo de truque para recuperar páginas perdidas, e todos eles apontam para uma oficina inaugurada em 2016 nos subúrbios de Tóquio: a Abe Chuko Kamotsu – o que, traduzindo livremente, quer dizer algo como “Abe Vans de Carga Usadas”. O lugar foi aberto por Abe Takuro, hoje com seus 55 anos de idade, simplesmente porque ele próprio era fã da Dodge havia muito tempo. Há mais de duas décadas, quando trabalhava em uma importadora de carros americanos, Abe comprou seu próprio Dodge Viper e, um dia, viu que uma Dodge Ram Van 1994 estava ficando para trás: ela foi importada para o Japão e ninguém se interessou em levá-la para casa. Depois de fazer uma oferta bem baixa, com a desculpa de ajudar a desovar o pátio, ele foi dirigindo a van para casa. E ficou encantado.
Em um artigo de 2018 na revista Road and Track, Abe compartilhou um pouco da sua filosofia. Todos os carros que ele teve – incluindo o Viper – foram modificados por ele próprio, muitas vezes usando componentes de fabricação própria porque as peças eram impossíveis de encontrar no Japão pré-Internet. E, sem exceção, cada um deles teve sua cota de horas na pista. Então, foi basicamente uma questão de fazer o de sempre: montar o carro e correr com ele.
A diferença é que mais pessoas começaram a curtir a ideia – foi a partir dos anos 2000 que as vans americanas começaram a invadir o Japão. Curiosamente, porém, apenas as vans da Dodge ficaram populares entre os ratos de track day.
O próprio Abe tem sua teoria para explicar o fenômeno. Para ele, o problema das Ford é que elas só tinham motores V6, o que obviamente não satisfaz a vontade de ter um V8. Já as vans da GM até tinham motores V8, mas suas dimensões não eram tão amigáveis às ruas do Japão – só as Dodge ofereciam a combinação de motor V8 + entre-eixos curto que tanto agradou aos entusiastas.
Outro japonês envolvido com a oficina é Takahiro Okawa, que explica um pouco melhor a “moda”. Começou pouco depois que Abe comprou sua própria Dodge Ram Van – alguns motociclistas começaram a utilizá-la para levar as motos da oficina até a pista. Um deles decidiu colocar a própria van para acelerar no circuito, só para ver no que dava – e acabou que todo mundo se divertiu bastante. Então, gradualmente, as coisas foram ficando sérias, e colocar os utilitários na pista passou a ser a atração principal, e não só uma piada.
Em poucos anos, formou-se uma espécie de campeonato exclusivo para as vans da Dodge. Nada oficial – não havia um regulamento, nem categorias, e nem prêmios. Mas, sempre que podiam, os fãs das Dodge Ram Van alugavam um autódromo por um fim de semana ou dois e sentavam a bota.
A receita para cada Dajiban é praticamente a mesma: geralmente se utiliza o motor V8 318, simplesmente por ser o mais fácil de encontrar, com preparação aspirada para render pouco mais de 300 cv. O peso é aliviado como de costume – remove-se bancos, carpete, tapetes e outros itens de acabamento desnecessários para andar rápido; a suspensão ganha molas e amortecedores mais firmes; freios Brembo ou equivalentes são instalados; as rodas originais dão lugar a peças de 16 ou, no máximo, 17 polegadas; e o restante fica a critério do dono – cores, elementos aerodinâmicos (que invariavelmente são apenas decorativos), adesivos e outros itens de personalização.
O mais engraçado é que as vans nunca se tornam canhões na pista – elas ganham potência, claro, e qualquer coisa com câmbio manual e tração traseira na pista fica divertida. Mas continuam pesadas, com centro de gravidade alto e, por isso, meio desajeitadas. Acontece que… dane-se: o importante é que elas roncam alto, bebem bastante combustível e proporcionam uma enorme quantidade de gargalhadas a cada volta.
Até pouco tempo atrás havia até um site dedicado às corridas – o DodgeVanRacing.com. Hoje em dia o endereço está fora do ar, o que nos leva pensar duas coisas: ou os caras desistiram de correr com as vans, ou simplesmente pararam de divulgar as provas para que nós paremos de bisbilhotá-las.